por Maria Alice Bragança
Mesmo passados mais de 230 anos entre o período em que se desenvolve a narrativa de “Carta à Rainha Louca”, de Maria Valéria Rezende, o ano de 1789, e o Brasil atual, ainda estão presentes muitas das questões que perpassam a obra como o machismo, a sociedade patriarcal que amordaça suas mulheres e a misoginia. Fruto de uma pesquisa cuidadosa, com linguagem elaborada, recheado de aventuras interessantes, é o livro escolhido na “Estante” para comentar hoje.
Quinto romance da carreira da escritora Maria Valéria Rezende e terceiro lugar no Prêmio Oceanos em 2020, o livro foi publicado pelo selo Alfaguara da Companhia das Letras em primeira edição em 2019. “Carta à Rainha Louca” é um romance epistolar, ou seja, contado por forma de cartas. Protagonista e narradora, Isabel Maria das Virgens escreve uma longa carta para a Rainha Maria I, mãe de Dom João VI, também conhecida como Rainha Louca, em que conta sua história pessoal e os sofrimentos das mulheres nas mãos dos homens da Coroa.
Isabel Maria das Santas Virgens é uma personagem fictícia inspirada em uma mulher real. Durante uma viagem à Portugal em 1982, enquanto realizava pesquisas no Arquivo Ultramarino de Lisboa, Maria Valéria Rezende encontrou a história de uma mulher que mantinha, na região das minas brasileiras, uma casa para acolher “sobrantes”, como ela denomina as mulheres que não faziam parte do sistema colonial, ou seja, não serviam para o casamento por não possuírem dote e não podiam ser escravizadas por terem a pele branca. Descartadas pelo sistema, essas mulheres “sem lugar” eram acolhidas na casa da tal senhora, cujos documentos a escritora achou, e foi a história dessa mulher que a inspirou a escrever “Carta à Rainha Louca”.
Endereçada à Coroa e escrita para se defender, na carta encontrada pela escritora, a senhora avisava logo estar ciente de que suas tolices não seriam lidas com seriedade porque era mulher, mas como a defesa era obrigatória, ela cumpriria o dever. Ela era acusada de fundar uma ordem religiosa em região de exploração de ouro, uma proibição estratégica da Coroa. Embora não estivesse comercializando ouro e apenas acolhendo mulheres em situação de vulnerabilidade, ela teve que se defender da acusação escrevendo para a Coroa Portuguesa. Por saber que não seria lida com seriedade, por ser mulher, então preenche sua carta com ironias e toques de irreverência.
Assim como a personagem real, a protagonista de Maria Valéria, Isabel das Santas Virgens, escreve uma carta dirigida à Coroa Portuguesa. Já no início do livro sabemos que ela está presa em um convento de Recolhimento da Conceição, na cidade de Olinda, em Pernambuco.
A história é trágica, mas carregada de humor. Encarcerada por ser “louca e desobediente”, Isabel das Santas Virgens inicia sua carta no ano de 1789. Desde o começo, ela denuncia como as leis são mais duras para as mulheres, e sobre os maus tratos sofridos pelos pobres. Sua intenção, na carta, é informar à rainha dona Maria, em Portugal, sobre os infortúnios das mulheres na colônia. A própria Isabel das Santas Virgens é filha de um capataz de engenho, português que cruzou o Atlântico em busca de sucesso. É uma das sobrantes, sem dote nem futuro como parideira, e acaba em uma casa de recolhimento, misto de prisão com convento, após o sumiço do pai em decorrência do assassinato de um capitão do mato que tentou abusar dela.
Com o passar dos anos — as cartas são separadas entre os anos de 1789 a 1792 —, conhecemos a infância da protagonista em um dos engenhos da Bahia, seus anos reclusa em um convento ao lado de Blandina, sua irmã de criação e sinhazinha de nascimento elevado, até o momento em que ela vai parar nos caminhos de Minas Gerais.
Em vários momentos da narrativa, são descritas situações que levavam mulheres a serem aprisionadas em mosteiros. Essa clausura podia ser temporária, como quando os maridos partiam em viagens e queriam evitar uma possível traição das esposas. E podiam ser situações mais permanentes, quando as mulheres eram enviadas pela família ou pelas autoridades, por fugirem dos padrões esperados e serem consideradas loucas.
Assim como é atribuída a dona Maria a condição de demente, a narradora sabe bem como será acusada de louca por pegar pena e papel para se queixar. Com isso em mente, destila sua raiva, propositadamente riscada durante vários trechos do livro. As rasuras são acompanhadas de um pedido de desculpas: papel é coisa rara em casa de mulheres, por isso ela não pode desperdiçá-lo. Nesses trechos, estão as maiores verdades da carta.
Com idas e vindas, sem seguir uma ordem cronológica precisa, o texto da carta parece seguir um fluxo de pensamento da personagem. Em alguns momentos, Isabel comenta fatos do seu tempo presente, como a busca por papéis, tinta e penas, para que possa escrever. Retorna então ao passado, narrando os dissabores sofridos até chegar ao encarceramento.
A obra se passa no final do século XVIII, e a história de Isabel das Santas Virgens está entrelaçada à história do Brasil Colônia, de seus engenhos, estradas sem lei, minas de pedras preciosas e os infortúnios das mulheres que ali vivem. O fato de Isabel saber ler e escrever é algo bastante incomum, ainda mais por não ser de uma família rica.
Para Isabel das Santas Virgens, escrever foi a um só tempo danação e salvação. Ordenar pensamentos em palavras e escrevê-las no papel foi o recurso usado pela personagem para manter a sanidade quando estava presa, enclausurada. Também foi uma forma de garantir sua subsistência, como escrivã de cartas e contratos, testamentos e petições. Entretanto, por escrever sem a autorização de Portugal, sofreu castigos e punições, inclusive por reproduzir e vender poemas.
Esses recortes sobre “Carta à Rainha Louca” tentam registrar alguns dos atributos que fazem desse livro de Maria Valéria Rezende uma leitura envolvente e necessária, entre outros títulos excelentes da autora, destacados com importantes premiações nos últimos anos.
Boa leitura.
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Maria Valéria Rezende nasceu em 1942 em Santos, São Paulo, onde viveu até os dezoito anos. Em 1965, entrou para a Congregação de Nossa Senhora – Cônegas de Santo Agostinho. Integrou a direção nacional da Juventude Estudantil Católica. Dedicou-se sempre à educação popular, primeiro na periferia de São Paulo e, a partir de 1972, no Nordeste, vivendo em Pernambuco e depois na Paraíba, no meio rural até 1988 e, desde então, em João Pessoa, onde está até hoje. Em 2001, lançou seu primeiro livro de ficção, “Vasto mundo”. Ganhou o Prêmio Jabuti em 2009, na categoria Literatura Infantil, com “Ouro dentro da cabeça”. É autora de “O voo da guará vermelha”; “Modo de apanhar pássaros à mão””; “Quarenta dias”, vencedor do Jabuti nas categorias Romance e Livro do Ano de Ficção, em 2015, “Outros cantos”, vencedor dos prêmios Casa de las Américas (Cuba, 2017), terceiro lugar no Prêmio Jabuti 2017 e melhor romance pelo Prêmio São Paulo, em 2017; e “Cartas à Rainha Louca”, terceiro lugar no Prêmio Oceanos em 2020. Entre outras obras, é autora o livro “Ninho de haicais”, 2018, e, em parceria com Alice Ruiz S., de “Conversa de passarinhos”, também de haicais.
Graduada em Língua e Literatura Francesa pela Universidade de Nancy e em Pedagogia pela PUC (SP), Maria Valéria é mestre em Sociologia (Universidade Federal da Paraíba) e uma das primeiras organizadoras do movimento nacional Mulherio das Letras, que teve sua primeira edição em 2017, em João Pessoa, na Paraíba.
MARIA ALICE BRAGANÇA
Nasceu em Porto Alegre, RS. Poeta e jornalista. Diplomada em jornalismo pela FABICO/UFRGS, mestre em Comunicação Social pela PUCRS, redatora e editora de emissoras de rádio e de jornais, como Correio do Povo e Zero Hora, foi também professora de comunicação social e artes visuais na Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, RS. Foi diretora de comunicação da Associação Gaúcha de Escritores (AGES), gestão 2019/2020. Publicou poemas em jornais, em antologias nacionais e em Portugal, além dos livros de poesia: “Quarto em quadro” e “Cartas que não escrevi”. Mantém, sem periodicidade, o blog “Alice & Labirintos” (alicelabirintos.blogspot.com) e participa do coletivo feminista Mulherio das Letras (RS, Portugal e Europa). Tem poemas publicados nas revistas literárias Gente de Palavra, Literatura & Fechadura, Mallarmargens, Germina e InComunidade (Portugal) e participou, neste ano, do Festival Internacional de Poesía – FIP Parque Chas Luis Luchi 100 Años (Buenos Aires, Argentina).
Parabéns, Maria Alice. Excelente resenha!