Há “tardes que morrem voluptuosamente”, escreveu Florbela Espanca, mas também há tardes que morrem embaralhadas em agitação e fúria. Entardeceres confusos, nos quais a vida ganha um ritmo alucinado e nos escapa do controle. Foi assim, certa vez, que vivi um final de dia em Paris, uma cidade que ocupa o nosso imaginário desde sempre.
Eu vinha de uma temporada em Roma e me enturmei com um grupo de turistas brasileiros, no qual se encontrava minha antiga companheira. Com essa turma vivi uma semana de belos programas, daqueles que só confirmam o encantamento da cidade: passeio de barco pelo Sena, almoço com direito a champagne, caminhada pela Champs Elysées, visita ao Palácio de Versalhes e dia inteiro no Louvre. Cada lugar saborosamente aproveitado e rememorado até hoje. Mas houve um dia, apenas um dia, em que a situação escapou do controle.
Nem sempre minha companheira e eu andávamos com o grupo e muitas vezes nos afastámos para passeios apenas nós dois (como tantas vezes fizemos, em São Paulo e Rio de Janeiro, Buenos Aires e Havana, Lisboa e Madri). E assim mergulhamos no Louvre, tanto conferindo as famosas “Vênus de Milo” e “Mona Lisa”, quanto nos surpreendendo com “Retrato de Madeleine”, de Marie-Guillemine Benoist, que, naquela época, deixava de ser “Retrato de uma negra” e ganhava o nome da modelo, Madeleine, uma empregada da família da pintora.
Uma tarde, porém, a situação se embaralhou. Naquele dia, saímos com o grupo no início da manhã para um tour no coração da cidade e pegamos o metrô até a Estação da Ópera Garnier. A ideia era visitar a Ópera por dentro, mas o teatro estava fechado. Seguimos para as luxuosas Galerias Lafayette, andamos pelas arcadas da Rue de Rivoli, almoçamos num restaurante com garçom escolado em atender clientes sem domínio do francês, conferimos os buquinistas das margens do Sena e fomos visitar a igreja de Saint Chapelle, a Conciergerie, terminando na cela onde ficou aprisionada Maria Antonieta antes de ser guilhotinada (hoje, local com altar para culto à rainha).
A partir daí, um cansaço tremendo e um café na Praça Stravinsk, para encerrar a jornada. Ou, pelo menos, foi o que imaginei: usufruir a mansidão do entardecer e retornar ao hotel. Mas o grupo optou por continuar e, quando dei por mim, estava nas imediações da Praça Concorde, alterado, tentando convencer minha companheira a terminar aquele passeio. Forcei-a a sentar num bar no início da Champs Elysées, enquanto o grupo continuava na direção do Arco do Triunfo.
Paris esconde e escancara maravilhas, mas aquele era o momento de parar. A tarde morrera, viera a noite e as luzes da cidade explodiam ao meu redor. Champs Elysées estava freneticamente iluminada e movimentada, pedi uma taça de vinho (delicioso, comprovei, anotando seu nome no folder da exposição sobre Maria Antonieta, na Conciergerie, que até hoje não reencontrei). Bebi observando o movimento, enquanto minha companheira, indignada, me fuzilava com os olhos.
Nem todas as tardes morrem voluptuosamente prenunciando atmosferas de sonho, como poetiza Florbela Espanca, e eu bem sei (já sabia naquele tempo) que há entardeceres feitos de agitação e fúria, sobre os quais não temos nenhum controle e é melhor esquece-los. Mas entardeceres assim, vividos em Paris, até é bom recordar.