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E ELES TORTURAVAM ALI, NA CABECEIRA DA PONTE, ENQUANTO OS FILHOS DORMIAM EM SEUS CAIXOTES. por ROGER BAIGORRA MACHADO

Eu fui criança nos anos 80 e, como boa parte delas, cresci ouvindo histórias do tempo em que meu pai e meus tios eram militares do Exército, lá pelo período entre os 60 e 80. Estas narrativas de quando eles estavam no “quartel” continham histórias de todo tipo, umas engraçadas, outras nem tanto, mas eles sempre deixavam um mesmo sentimento passar, o medo. Todos sempre relatavam que havia uma tensão com a invasão argentina e com os comunistas.

Sim. Nos anos 70, mais precisamente, depois de 1976, os adolescentes uruguaianenses que estavam no exército eram bombardeados com o medo da invasão argentina e com o pânico moral em relação aos comunistas brasileiros. Esse medo foi tão profundo na psiquê destes jovens, que mesmo depois de adultos, nas histórias que contavam, deixavam transparecer a tensão com que viviam as rotinas militares, os serviços e as rondas.

Mesmo sendo criança, isso nunca me fez sentido algum. Como assim? Os argentinos queriam invadir o Brasil? Eles viriam por onde? Seria pela ponte? De barco? Qual o motivo?

Eu conhecia os argentinos, ora, eu os via quase todo mês, quando cruzava a ponte para ir nos “Buraco” com meus pais. Quem lembra dos “Buraco”, assim mesmo, no singular, tem como eu boas lembranças. Lá eu descobri que os argentinos faziam o melhor doce de leite, as melhores balas de leite, tinham os torrones e o tatin, era sempre uma alegria voltar de Paso de Los Libres. Os argentinos eram pessoas boas, sempre sorridentes, por que cargas d’água em algum momento eles se tornaram inimigos que queriam invadir o Brasil?

Com o tempo, conversando, lendo, estudando e pesquisando, fui compreendendo que nunca houve nenhuma tentativa de invasão por parte dos coirmãos, salvo, as rusgas territorialistas do século XIX. A única coisa que tinha invadido, ambos os países, eram os militares argentinos e brasileiros, ávidos pelo poder político, armados e propagadores de teorias conspiratórias importadas do norte da nossa América.

Do lado brasileiro, o golpe militar ocorrera antes que do lado argentino, em 1964. Do outro lado da ponte, os argentinos só conheceriam a tragédia de uma ditadura civil-militar em 1976. Os argentinos morreram aos milhares, até hoje mães e avós andam pela Praça de Maio em busca dos corpos de seus filhos e netos.

A violência extrema é um dos traços mais assustadores das ditaduras latino-americanas e das ditaduras mundo afora, seja de que lado estiverem no espectro político.

Em Buenos Aires, os alvos do terrorismo de Estado eram professores, estudantes, políticos, líderes sindicais, mulheres grávidas, adolescentes, qualquer alguém que falasse algo no bar, todo tipo de gente que pudesse ser visto como “opositor” e “subversivo”. Pois estas pessoas eram torturadas, espancadas, depois de presas por dias, eram colocadas em aviões militares.

Empilhadas com as cabeças raspadas, eram despidas e drogadas. Os aviões sobrevoavam o mar, as portas traseiras se abriam e os corpos vivos e inertes eram jogados lá do alto. Os “voos da morte” sobrevoavam regularmente o oceano, estima-se que os militares argentinos mataram mais de 4 mil pessoas.

A “invasão argentina” que os milicos uruguaianenses temiam nos anos 70 era, na verdade, uma fuga em desespero de outros seres humanos. Diante do terrorismo dos militares argentinos, a maneira de sobreviver era fugindo. Se jogando no rio, tentando passar pela ponte dentro de um táxi. Escondido num ônibus. A crueldade de tudo isso é que eles fugiam para o Brasil, país dominado pela mesma ideologia militar de morte, tortura e perseguição. Os argentinos pulavam da frigideira e acabavam caindo na fogueira.

Quando eu ainda era estudante de História na Universidade Federal de Santa Maria, depois da aula, eu fui para o bar do Seu Zé, lá pelos idos de 2003/2004. O Seu Zé era um português gente bueníssima, dono do Café Cristal. O bar ficava ao lado do Taperinha, prédio onde eu morava. Ou seja, eu sempre passava na frente, quando não parava para um café, era para um vinho no final do dia. Naquela noite, parei para tomar um vinho, como ainda não tinha nenhum conhecido, fiquei no balcão para conversar com o Zé.

No balcão, quando cheguei, lá já estavam dois senhores sentados, cujos nomes eu não lembro, e se lembrasse, por obviedades jurídicas, não diria. Eu já os havia visto no bar, mas sempre sentavam no fundo, nunca no balcão. Os dois tinham cabelos brancos, rostos de vovôs, jeito de pessoas tranquilas, queridas. Ali, entre um gole e outro de um bordô colonial, um deles me perguntou de onde eu era. – De Uruguaiana, respondi de voleio. Os dois se olharam e riram. Parece que eu havia disparado um gatilho nas memórias. Sentaram numa das mesas do canto da parede de madeira, eu sentei junto, ao lado da mesa do Osmann e do Glênio, outros dois senhores, meus amigos de bar. O Osmann já nos deixou, era aposentado da UFSM e o Glênio, que espero ainda esteja conosco, era ferroviário aposentado.

“Bah, passei por poucas e boas em Uruguaiana!”, afirmou um deles. Começaram a falar do tempo em que ambos serviram em Uruguaiana, um deles havia servido na cidade como Fuzileiro e o outro como Sargento do Exército. Os dois haviam servido bem na época das memórias e do medo da “invasão dos argentinos”. Bem na época das histórias da minha infância.

Eu me preparei para rir, afinal, se as histórias forem iguais àquelas histórias dos meus tios, do meu pai, vai ser diversão garantida. Mas a lembrança da minha infância se desfez tão logo eles começaram a contar as histórias deles. Como vocês sabem, “in vinu veritas”. Ou como diria um amigo, “o álcool entra e a verdade sai”.

Na última, a pior de todas, o senhor que foi sargento em Uruguaiana na metade dos anos 70, contou-me que uma vez uma família de argentinos tentou passar pela ponte, mas foi detida por policiais brasileiros e pela Polícia do Exército. A família estava só com a roupa do corpo, sem documentos e só diziam que estavam indo ver parentes no lado brasileiro. O sargento ficou encarregado de levá-los até o prédio que fica na cabeceira da ponte, ao lado das torres de entrada, onde até hoje tremulam de vez em quando as bandeiras de Brasil e Argentina. De acordo com o que ouvi, lá trabalhavam agentes do SNI (Serviço Nacional de Inteligência) e outras pessoas responsáveis pela migração.

Nesse prédio que fica na cabeceira da ponte, a família toda foi torturada. Um homem, uma mulher, um menino de uns doze anos e uma adolescente. Entre um gole de vinho e outro, o Sargento, afirmou que não participou da tortura, que jamais participou, que apenas os agentes do SNI espancaram os quatro argentinos.

No entanto, ele sorriu várias vezes, enquanto contava para o outro senhor sobre os gritos que a mulher dava. O fuzileiro falou das vezes em que prendeu argentinos em barcos e chalanas que cruzavam o rio noite a dentro, lembrou que sempre levava os presos para o mesmo prédio. O prédio ao lado da entrada da ponte. Depois, os presos eram entregues para a Gendarmeria argentina. Os dois riam, como que se lembrassem de uma época boa e divertida das suas vidas.

Ao perceberem meu mal estar, ambos mudaram de assunto, fizeram piada sobre a dupla Grenal, um deles reclamou da rua onde morava em Camobi e eu mudei de mesa.

E eles torturavam bem ali, bem na entrada da ponte. Depois daquela noite, anos depois eu voltei para Uruguaiana e ainda hoje, sempre que passo por ali, pela cabeceira da ponte, eu me calo. Eu me entristeço. Brasileiros e argentinos foram torturados naquele prédio.

Na Argentina, os torturadores foram julgados e receberam prisão perpétua. No Brasil, eles envelheceram, parecem avôs simpáticos, ainda estão por aí, escreveram livros de suas memórias, andam nos bares, bebendo e rindo.

Agora, antes que você diga “eu fui militar na ditadura e não vi nada disso” ou “sou filho de militar e nunca ouvi falar disso”, siga lendo.

DEBAIXO DO CAIXOTE: OU SOBRE COMO FILHOS DE MILITARES POUCO SABEM SOBRE A DITADURA.

Vejam, esse título é só um exercício, não um dogma, quão muito é uma afirmação universal. Ele, na verdade, ocorreu-me hoje, antes do almoço, enquanto conversava com minha esposa. Falava para ela que eu havia bloqueado um número grande de pessoas no meu perfil do Facebook, em sua maioria, por ofensas, por defenderem golpes militares, negarem as torturas, tanto aqui quanto na Argentina.

O curioso, é que vários destes “bloqueados” apresentavam uma mesma lógica nas suas falas. Muitos usavam a seguinte argumentação:

“Eu sou filho(a) de militar, cresci nos anos 70 e nunca ouvi falar de tortura em Uruguaiana”.

A primeira parte da minha argumentação é simplória, parte da obviedade: Nem todos os militares se envolveram com tortura, assim como, nem todos os brasileiros foram torturados. Logo, foi uma prática realizada por grupos de militares contra grupos específicos de brasileiros.

Dito isso, quero deixar claro que se você, que está lendo este texto, é filho de militar, isso não quer dizer que seu pai praticou tortura em alguém. Ser militar entre os anos 60/70 não significa ser torturador. Eu acredito nos ex-militares da época que vieram no meu perfil e afirmaram não terem ouvido ou visto tortura. Acredito.

No entanto, a lógica inversa também é válida, se naquela época você era filho de alguém que era militante político de esquerda, certamente seu pai passou por alguma situação ruim causada por militares.

Noutro dia, um colega de universidade me relatou que o seu pai, professor universitário, era semanalmente retirado de casa, geralmente de madrugada, e levado para o antigo prédio do QG de Uruguaiana (onde hoje é o Centro Cultural Dr. Pedro Marini) e lá ficava toda a madrugada. Nunca apanhou, mas era privado do sono, forçado a ficar confinado numa sala enquanto o questionavam sobre sua vinculação com o PCB. Nem sempre a tortura era uma violência física.

Agora quero que você vá comigo para o cinema italiano, para um filme do Roberto Benigni, chamado “A Vida é Bela”. É uma obra de 1997 e que deu o Oscar de melhor ator para Benigni. O filme se passa na Segunda Guerra Mundial, narra a origem de uma família e também a sua tragédia. Começa com um casal se apaixonando e termina com uma família sendo levada para um campo de concentração alemão.

A mãe, Dora, é levada para uma parte do Campo, enquanto que o pai, cujo nome é Guido, e o pequeno Giosué, o filho, passam a viver junto com outros judeus. Em boa parte do filme, existem momentos engraçados que só nos pioram a sensação de impotência. É que Benigni consegue fazer graça diante da desgraça, como andar atrás de um soldado alemão, imitando sua forma de caminhar.

A estratégia de Guido é não deixar que o filho, uma criança de uns cinco anos, perceba o tipo de mundo onde ele está. Assim, Guido cria aventuras, faz imitações, brinca, faz caretas, tudo para que Giosué não perceba que ambos estão no pior lugar do mundo, vestidos com as roupas listradas que os judeus tinham de vestir, sofrendo agressões, torturas, vendo pessoas desaparecendo diariamente, mortas, de fome, de doença ou de tiro. A missão de Guido está dada.

A personagem de Benigni se esforça para alienar o filho de tudo que acontece ao redor. Giosué não percebe nada, o campo de concentração é uma bela vida infantil de diversões. Guido faz brincadeiras diante das piores situações. Enquanto Giosué é alienado pelo pai, Guido tenta fazer contato com a esposa. Num dia, sorrateiramente, consegue falar no rádio dos alemães “buongiorno principessa!”. Sua voz é ouvida em todos alto-falantes do campo de concentração. “Buongiorno principessa” era a forma como ele falava com sua amada antes de serem presos.

Mas o terror é o que ronda a história de A vida é Bela. Os alemães quando derrotados, começam uma matança e fuzilam os judeus. Enquanto o caos toma conta, numa última brincadeira, Guido diz que se Giosué quiser ganhar um “grande prêmio”, ele deve ficar escondido debaixo de um caixote de madeira. “Só saia quando estiver silêncio”. Enquanto o filho está escondido, Guido revira o campo de concentração em busca de sua esposa. Mas ele não encontra Dora.

No entanto, ele acaba sendo abordado por soldados alemães. Ao ser levado preso e ao perceber que estava passando diante do caixote onde Giosué estava escondido, Guido faz continência para o filho e marcha em um passo escrachadamente militaresco e engraçado. Era a marcha para sua morte, ali, diante dos olhos do filho que espiava tudo por uma fresta, debaixo do caixote.

Guido é fuzilado logo adiante, mas longe dos olhos do filho.

Agora a segunda parte do meu pensamento. Antes, saiam do filme do Benigni e voltem para Uruguaiana e para a história que ouvi lá no Café Cristal de Santa Maria. Voltemos para os argumentos que tive de ler ontem e hoje: “Eu sou filho de militar e nunca ouvi falar de tortura”.

Os filhos, cujos pais militares viveram nos anos de ditadura civil-militar, tem razão em me afirmar que quando crianças jamais ouviram falar em tortura. Eles jamais poderiam saber de nada. Não faz sentido que saibam.

Se soubessem sobre as torturas, seus pais teriam falhado vergonhosamente na tarefa de serem pais. Até mesmo os torturadores são pais. Hoje, adultas, muitas daquelas crianças sequer devem compreender o que significa “Golpe Civil-Militar” ou “período de exceção”. Eles não viveram isso. E “tortura”, obviamente, é palavra vazia de sentido, pois não fez parte do cardápio das palavras cotidianas dos churrascos em família. Os filhos dos militares pouco sabem sobre as atrocidades da ditadura militar. O Motivo? Eles estavam dormindo protegidos debaixo do caixote.

Já no filme “A Vida é Bela”, quando Giosué sai de debaixo do seu caixote, o pai já estava morto. Os tanques e soldados americanos estão invadindo, vitoriosos, o campo de concentração. O “grande prêmio” de Giosué foi um passeio na carroceria de um tanque de guerra.

Para outras crianças, incapazes de sair de debaixo da caixa, o prêmio foi uma vida em ignorância histórica. No entanto, é possível saber. Um início pode ser o trabalho de Sabrina Steinke, ” A repressão política na fronteira Uruguaiana – Paso de los Libres no final da década de 1970″, Tese defendida na Universidade de Buenos Aires. Existem muitos outros livros, dissertações e teses sobre a Operação Condor, as rotas de fugas, os torturadores em Uruguaiana, as torturas nas fronteiras com a Argentina, só que é preciso sair de debaixo do caixote…

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana.É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.

 

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