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Felipe Freitag e alunos. Foto: arquivo pessoal do autor.

Do menino-professor com o olho vesgo de poesia, por Felipe Freitag

Em homenagem aos professores Sadi Centenaro e Nilsa Luersen Piaia

“Há um menino

Há um moleque

Morando sempre no meu coração

Toda vez que o adulto balança

Ele vem pra me dar a mão.”

(Bola de meia, bolda de gude, Milton Nascimento)

Aos cinco, seis anos de idade (as pupilas da memória falham na exatidão vezenquando), um menino aguardava os estalos do pão quente saindo do forno. Tal menino morava, em uma pequena cidade do interior, cidade-aldeia de espaços amplos que permitiam o folgar da poesia com as flores, as árvores, as pedras, a água de pequenos fluidos de alegria. Quintais são escolas de criadores de poetas. Ouviu-se uma buzina em frente à sua casa. Mais do que de pressa, o menino dirigiu-se para a entrada de sua casa, tomou o caminho das escadas, esteve na rua feita de pedras pontiagudas (dizem que fruto do trabalho pesado de negros daquela cidade; a maioria da cidadela sempre esteve convencida de que o lugar daqueles era o da inferioridade). Um carro, um senhor conhecido, professor aposentado, esposo de uma professora, pai de uma professora.

O menino recebera uma pasta do senhor de suspensórios e de boina na cabeça. O que haveria naquela pasta pretinha como as jabuticabas que o menino colhia no quintal de sua casa? Havia, soube mais tarde, o futuro do menino, guardado em livros, folhas matriciais e desenhos para colorir.  Então, aquele senhor disse ao menino, vaticinando: Você vai ser professor! No restante daquele dia, o menino juntamente com sua amiga laranjeira pensou, pensou, pensou: Eu quero ser professor.

Nos dias que se seguiram, o menino procurou tijolos e madeira; roubou a mesa verde de jogo de futebol de botão (posse de seu irmão mais velho). Embaixo de uma escadaria, construiu classes e cadeiras com o material encontrado, assim como fez o quadro negro com a mesa de jogo de futebol de botão de seu irmão mais velho. Ele tinha uma escola, finalmente. Convocou as crianças mais novas de sua rua a serem suas alunas. Crianças que ainda não frequentavam a escola da cidade. Alfabetizou-as. O menino, que aos dois anos de idade havia perdido quase que completamente a visão do olho esquerdo, em um acidente, ficando um pouco vesgo, agora podia ver seu futuro sob uma escadaria. Mal sabia aquele senhor de suspensórios e de boina na cabeça, que havia mudado para sempre o destino do menino que conversava com sua amiga laranjeira todas as tardes.

Dos seis aos doze anos, o menino aquele ensinou para diferentes crianças, em locais também diferentes. Na cidadezinha, brotavam comentários acerca do menino-professor. Foi até notícia de um jornal local (ah, queria encontrar o recorte da notícia que se perdeu com o tempo). Em um domingo, o pai do menino, com sua ajuda, construíram uma casinha de madeira que fora a sede de sua escola por algum tempo. Alguns professores do menino faziam cópias com matrizes para ele entregar aos seus alunos. Fico a pensar: será que, hoje em dia, vocês sabem o que são folhas de matriz e mimeógrafo?

Onde estaria esse menino-professor atualmente? O menino-professor tornou-se um leitor voraz de Literatura e com a ajuda da biblioteca particular de uma professora falecida de sua cidadezinha devorava livros junto da luz amarelada de seu quarto todas as noites. Contam por aí que o menino-professor começou a ficar muito melancólico quando algumas pessoas do seu município o achavam estranho por ler demais. É que ler demais é perigoso, pois acaba tornando as pessoas mais curiosas em desvendar os segredos do mundo e a questionar a realidade. Hoje, seria o menino-professor um professor ainda com o olho vesgo de poesia? A realidade do sistema escolar brasileiro tirou, por certo, um tanto da poesia de ensinar do menino-professor, mas nunca será capaz de destruir, de aniquilar, apesar de todos os boicotes pelos quais ele passou, o amor que o mesmo tem pela Educação.

 

 

 

FELIPE FREITAG é graduado em Letras Português e respectivas literaturas (licenciatura) pela UFSM e é mestre em Estudos Linguísticos pela mesma instituição. Professor a mais de dez anos, dedica-se, também, à escrita literária. Atualmente, voltou a escrever com certas constância (o que tem sido maravilhoso para um sujeito com depressão que chegou a perder o sentido da vida…)

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