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Jaider Esbell

Do luto, da pandemia e do carnaval por Rosana Zucolo

Num cotidiano de estranhamentos confluem conversas e escutas sobre pandemia, luto e carnaval na véspera do dia de finados.  Busquei entender os nexos entre eles após ouvir no rádio, enquanto dirigia de volta para casa, uma vereadora local defender a realização do carnaval  em 2022 como acontecimento necessário à retomada das atividades econômicas, “tão vitais ao município e aos que dependem desse momento para ter ganhos”, ainda que os lucros tenham diferentes níveis de acordo com as classes sociais.

Ouvir estes argumentos entre outros, tais como: ” a solução para pensar a sustentabilidade, trabalho para a população de baixa renda, já é possível e necessário retomar a vida normal”,  situando o carnaval como saída num contexto de muito achismo e poucas evidências é algo que revolta.  Explico: primeiro porque paira sobre grande parcela de brasileiros um luto que remete às mais de 600 mil mortes no país. Se hoje os óbitos reduziram, não pararam. Nas redes de trabalho e pesquisa não cessam os comunicados de colegas que se foram em decorrência da Covid. Vivemos perdas cotidianas que não serão neutralizadas/minimizadas com a festa. É preciso sensibilidade histórica.

Segundo, porque a pandemia ainda não acabou e a previsão dos cientistas é a de que ela encerre somente em 2024. A probabilidade é de que entre o natal e o ano novo possamos ter aqui outra onda, uma vez que a Europa e a Ásia estão com novos surtos. Sessenta dias é o tempo previsto para que chegue ao Brasil, ainda que salvaguardado pela vacinação. Quiçá continuemos assim.

Terceiro, porque perceber que a “normalidade” continua centrada nas clássicas estratégias econômicas e que nem mesmo o poder público é capaz de visualizar outras alternativas criativas e solidárias é, no mínimo, desalentador. Derruba por terra a esperança de uma real mudança de protocolos entre humanos e seu modus operandis.

Quarto, porque a administração pública e o legislativo tem a obrigação de se pautar pela ciência em defesa da vida e do interesse público. Cabe procurar assessoramento competente porque isto envolve a saúde e a vida das pessoas.

Quinto, porque a função do jornalismo (no caso a do jornalista que conduzia o programa) é questionar, explorar, expor todas as facetas de uma questão tão relevante. É necessário gerar um debate plural e com informações profícuas, e não alinhar com a opinião da entrevistada. Há um limite entre  a cordialidade e a bajulação, e a falta dele se evidencia com muita força no rádio.

Talvez minha reação seja parte do cansaço gerado pelo luto prolongado desse momento histórico.  A morte reina em todas as suas formas e paira sobre as gentes, como se a pandemia tivesse aberto as portas do mundo para todas as mazelas da humanidade. Todos os dias morre-se de Covid, de tristezas, de indiferenças, de negligências, de negacionismos, de omissões, de violências, de ganâncias, de fome.

Quando Jaider Esbell, artista plástico originário da etnia Macuxi, foi encontrado morto na última terça, 2, justamente no dia de finados, imaginei que ele se fora por excesso de cidade, asfalto, cimento e cinza.

Pata- Jaider Esbell

Representante dos povos originários, defendia o “artivismo” como ação política capaz de impregnar o mundo branco com a cosmologia indígena. E foi assim que coloriu os museus com sua arte e a de outros indígenas que se fazem presentes na Bienal de SP.  Só consigo imaginar que Esbell cansou de segurar o céu para esse antropoceno que não deu certo e do qual  somos os representantes.

Em meio à tristeza, no mesmo dia, chegou o manifesto poético-musical em vídeo  Canção pra Amazônia, do compositor Carlos Rennó  musicada por Nando Reis. 

Amazônia, “razão de tanta insânia e tanta insônia”, reúne 31 artistas em defesa da maior floresta tropical do mundo. O vídeo impacta e emociona. E não só pela sensibilidade e apelo, mas pela dura realidade que mostra e nos expõe enquanto uma sociedade irracional.

Ao menos parte de nós parece ter acordado, ainda que tarde, diante da talvez irreversível devastação  que assola não só a floresta, mas o planeta. É quando se percebe estar vivendo uma urgência histórica que salta à consciência e diz que não dá para fingir que está tudo bem.

Não está tudo bem. E mesmo que o fim das pandemias costume ser celebrado com grandes festas coletivas capazes de exorcizar o terror vivido, é bom lembrar que estamos apenas no início do fim de uma delas.

Há registros históricos  sobre o que se sucedeu após a gripe espanhola,  maior pandemia do século passado e que ceifou 50 milhões de vidas. Em 1931, no Rio de Janeiro, o carnaval foi o maior de todos os tempos e durou aproximadamente três meses. 

Agora, a cidade foi a primeira a se manifestar favorável à realização da festa internacionalmente famosa pelos desfiles das escolas e pelos blocos de rua. Na sequência vieram São Paulo, Recife e Salvador, cidades onde o carnaval costumam reunir aproximadamente um milhão de pessoas entre nativos e turistas.  Como é de praxe, passada a festa, as viroses chegam à população. Na Bahia até ganham nomes, só que até então, elas  não eram tão letais quanto a Covid. Prefeituras e governos dos estados estão em divergência quanto à questão. Resta saber o que prevalecerá.

ROSANA ZUCOLO

Jornalista, professora universitária (UFN), mestre em Educação(UFSM) e doutora em Comunicação(Unisinos). Nascida gaúcha, mora em Santa Maria, tem alma cigana, a Bahia como segunda terra e o mundo como casa. Se diz  ” parideira de jornalistas” e renasce com eles todos os anos. Descobriu ter uma certa predileção por pares: dois filhos, dois gatos, dois prêmios Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, dois empregos por muito tempo, dois projetos de cursos de comunicação, dois blogs,  duas casas, dois irmãos, dois cachorros, duas cachorras…

 

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