A antiga solidão das mulheres contemporâneas
Deságua é o primeiro romance da escritora Dani Langer, formada em publicidade e propaganda, mestra em Escrita Criativa/PUC, lançado na Feira do Livro de Porto Alegre, em meados de novembro de 2024, pela editora Zouk. A orelha é assinada pela Júlia Dantas e o posfácio pela Leila de Souza Teixeira. Antes de discorrer sobre o livro, gostaria de ressaltar a importância do feito, considerando a grande contribuição da Dani em diversos segmentos culturais e do livro na nossa cidade. Em 2011 publicou um maravilhoso livro de contos “No inferno é sempre assim e outras histórias longe do céu”, mostrando a que veio. Participou de diversas antologias, grupos de estudos e crítica literária, integra a curadoria do Pororoka – grupo de leitura de livros escritos por mulheres que se reúne mensalmente, na Macun Livraria, em Porto Alegre.
O livro inicia com Antônia relembrando o momento em que recebeu a notícia de que a irmã, Sofia, havia caído do décimo segundo andar de um edifício, em SP. A morte de Sofia propicia à Antônia um mergulho no mais íntimo de si mesma, em busca das raízes e razões que levaram a irmã mais velha ao suicídio. Dani traz a música, diversas, para a costura com a trama concedendo leveza ao texto, pois não é simples nem leve tratar do tema do suicídio. “A vida é cheia de buracos” da Patti Smith é uma delas e empresta densidade poética ao drama vivido. A referência a Patti e ao Robert Mapplethorpe – uma singularíssima história de amor, em Só garotos, situa os desafiadores parâmetros perseguidos por Antônia. Ela quer muito do amor e da vida. Não por acaso há o diálogo com o emblemático casal.
Antônia desencadeia um movimento pendular de ir ao passado vivido com a irmã e retornar ao presente de sua ausência irreversível, na tentativa de extrair o que ainda não sabe ou não enxergou. A irmã mais nova busca amarrar as pontas que levaram ao trágico desfecho.
O fato sobre o qual a trama se desenvolve em um curto espaço de tempo, do suicídio até a viagem de Antônia de Porto Alegre a SP para tomar conta do espólio da irmã – em exígua linha do tempo, desdobra-se no imensurável tempo da infância e adolescência com cenas de pura poesia em prosa. Há também a narração dos passeios e brincadeiras das manas na estância que dizem da infância de qualquer uma/um de nós: “Em despedida, olhamos muitas vezes pelos espelhos retrovisores até chegarmos à rodovia, e o rio e a nossa infância não passassem de intuição.” (pg 47)
Compõem a família com Antônia e Sofia, o pai, a mãe e a avó. A figura nebulosa e frágil da mãe, em contraste com a adaptada a qualquer circunstância do pai, confirma a inabalável estrutura patriarcal da sociedade.
Sofia vai morar com a avó aos 14 anos, em SP, e havia três anos de diferença entre elas, por isso Antônia não soube da fragilidade da irmã, mas os demais sabiam. A avó mostra-se uma personagem interessante, mas impotente para buscar outros meios que não os já conhecidos por ela, aceitando as limitações da neta como expressão máxima de seu amor e cumplicidade. A insistência de Antônia em se aproximar da irmã, e a negativa de Sofia em aceitar, esvazia a potência do entorno, das figuras do pai e da avó, só para citar as já referidas. Assim como das amigas em comum, uma vez que a pouca diferença de idade as coloca na mesma geração. É certo que nunca saberemos de todas as motivações que levam alguém a cometer um suicídio, mas os sinais da doença ou da fragilidade mental são perceptíveis não apenas no círculo estritamente familiar.
A condição social das personagens salienta valores individualistas do lugar que ocupam e o alargamento da visão de mundo é forjado quando a realidade se faz trágica e irreversível. Afinal, o que poderia ter sido feito ou dito que aliviasse a culpa que atravessa Antônia? Ao que parece, somente esse aspecto poderia ser amenizado nesse duplo mergulho deflagrado no início do livro. A tragédia de Sofia foi também uma tragédia anunciada, nos moldes de uma triste solidão tão nossa das mulheres, tão antiga e, ao mesmo tempo, muito contemporânea.
O livro traz nuanças da realidade vivida por mulheres insubmissas e invisibilizadas, nos instigando a buscar mais conexões entre elas. O texto deságua e continua no leitor e na leitora como os grandes livros fazem.
Porto Alegre, janeiro de 2025
Cátia Castilho Simon
Poeta e escritora