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Foto de autoria de Yago Luís Nóbrega Mendes

Dente-de-leão, por Yago Luís Nóbrega Mendes

Os olhos avistam. Uma esfera de plumas brancas cresce solitária na vastidão do relvado verde alto. Figura única e destoante das repetições verdejantes de folhas verticais. Folhas erguidas como braços estendidos em súplica. Suplicando que lhes acabem com a fome. Famintas. Famintas por luz. Por fotossíntese. Então, fotossíntese é feita, em público mesmo, sem a menor etiqueta, tabu ou escrúpulo. Precisam matar a fome e é assim que se a mata. Mata. Uma verde e alta mata que precisa se saciar. Às vezes, depois que se mata, surge do cadáver um espectro fantasma. Espectro flutuante, misterioso e alvo. Similar àquela figura branca destacada no verde e que tremulava com a suave brisa. Como uma alma depois que se mata uma vida, perdida estava em meio àquela viçosa e faminta mata.

Se aproximam os olhos da figura fantasmagórica em um acesso de curiosidade. O que será? A resposta é dada quando a imagem torna-se próxima e totalmente focada: um lindo dente-de-leão. Dente-de-leão. Leão. Macio e felpudo como a pelagem de um. Dente. Branco era a cor, diferente dos reais dentes que são amarelados. Amarelo era a cor da sua flor antes de maduro. Também do sol que sobre tudo ardia infravermelho. Vermelho. Vermelho das veias e artérias dilatadas, dos olhos arregalados de encantamento. Pupila dilatada. Íris luminosa. E esclera avermelhada de sangue. Não mais branca como a própria planta à sua frente admirada. Como se essa cor fosse destinada unicamente ao dente desse leão vegetal e proibida às demais criaturas.

A mão esquerda se fecha em torno do caule e todo o cenário, por um instante, treme violentamente. Quebra com um baixo som. Creck. O caule cede fácil com o dano. Dano. Daninha. Erva daninha. Dano na erva daninha. É macia e bastante maleável a erva. É erguida à altura da visão e detalhadamente admirada pela aparência sedosa e peculiar de seus frutos. Pequenos alfinetes almofadados. Dispostos em todas as direções e para todas as direções foram postas. Papus é o nome. Dos feixes aveludados no topo. Das estruturas alvas que se abrem em formato de flor, de pluma, de anêmona-do-mar. Dispersas pelo adocicado vento. Isso! Para isso foram feitas as delicadas. Mestras do intangível e do gasoso ar. O ar que se torna furacão e brisa e vento. Vento repentino e forte que vem da boca atrevida que sopra. E sopra e sopra. Tanto sopra que as cípselas, puxadas por seus tímidos flutuadores, cedem, desgrudam e alçam voo ao desconhecido. Subindo rápido cada vez mais. Ascendendo sem precedentes como um arrebatado. Arrebatada também está agora a boca. A boca boquiaberta que não mais sopra, mas só se encanta aberta.

Sementes aladas espalham-se no ar. Os braços erguem-se na tentativa de apanhá-las e falham. As sementes sobem. Descem e tornam a subir. Emparelham-se. Giram em seus próprios eixos como hélices. Se alternam em rotação. Algumas em seus espaços individuais no céu. Algumas agrupadas em pares ou trios, como irmãos siameses grudados pelas cabeças. Todas bailam pelo ar com movimentos suaves e cativantes. Coreografia. Flocos de neve orgânicos para cima ao invés de para baixo. A candura de uma brisa inicia a dispersão desses fragmentos de pluma.

Micro estrelinhas em constelações que começam a se afastar e expandir em um universo próprio. Espalham-se aos quatro ventos. Até o próximo capítulo em flor. E ao capítulo de suas histórias. Conduzem os genes para toda uma nova geração de vida e narrativas. Buscam narrar de maneira ativa suas histórias. Narrativa. Enfim, perpetuar. A vida continua.

De forma religiosa, os braços permanecem esticados como em súplica. Os braços lembram o relvado verde esticado em direção ao sol. O relvado verde lembra os braços. Ciclo. A relva faminta se ergue para alimentar-se do sol. Os braços já estão alimentados. Alimentados de dente-de-leão. A planta, há muito desfeita em poeira cósmica, trouxe paz e alegria ingênua. Tremor nos braços erguidos. Suspiro quente pela boca. Vermelhidão intensa nos olhos. Toda a experiência foi medicinal e alimentou de maneira não convencional o espírito. Dente-de-leão. Os suplicadores braços baixaram e repousaram paralelos ao corpo. A boquiaberta boca cerrou-se em um sorriso sutil. E os vermelhos olhos uniram suas pálpebras para a escuridão. Quando voltaram a se abrir, não eram mais vermelhos. Não. Eram brancos novamente. Brancos como um dente-de-leão no verão.

 

 

Yago Luís Nóbrega Mendes: nasceu em Registro – SP e cresceu em Miracatu – SP, possui graduação em Ciências Biológicas – Bacharelado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e atualmente cursa mestrado no Programa de Pós-Graduação em Agrobiologia na mesma instituição. Apaixonado pela natureza e literatura desde sua infância, se ampara em ambas como fontes de paz, bem-estar mental e inspiração. Em seu tempo livre gosta de fotografar a natureza, escrever e ler, principalmente, Gabriel García Márquez e Clarice Lispector, seus autores prediletos.

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