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(Imagem da obra Porta do Inferno, de Auguste Rodin).

Covid: O inferno e o céu por Ricardo Mendes

Eu estava pensando em mais um amigo com COVID e recordei que, quando tinha 14 anos, li Entre Quatro Paredes, de Jean-Paul Sartre. O livro estava em uma coleção de clássicos contemporâneos na biblioteca da minha escola e causou um impacto enorme em mim, em quem me tornei ao longo da vida.

É uma peça de teatro em que os personagens estão trancados no inferno. Lá não há espelhos e nem castigos terríveis e dolorosos como se vê, por exemplo, em A Divina Comédia, de Alighieri.
Em Dante, as trevas estão repletas de pessoas e de seus pecados. Eles são punidos, dependendo – mais ou menos – da gravidade de cada um. O inferno Dantesco é representado por um funil, onde os tiranos são castigados mais ao fundo do cone. Já na obra de Sartre, um existencialista, “o inferno são os outros”, o sofrimento que cada indivíduo impõe aos demais pela convivência – ou por sua falta. E também há a ausência de reflexos, de imagens, de poder se perceber como se é.
Tenho mais dois outros amigos queridos que estão com COVID – e vão ficar bem, acredito. Vejo muita gente dizendo que vamos deixar este lugar em que nos metemos em breve, mas precisamos ter fé – avaliam. E esta é uma lógica bem católica: o sofrimento é justificado por uma compensação mais à frente. Embora minha formação seja cristã, há um bom tempo vejo o mundo como uma mistura de várias tintas, várias representações de fés e espiritualidades. E nenhuma das minhas percepções encontra justificativas para o que acontece agora em um futuro premiado.
Então, é quase inevitável pensar sobre qual ideia de paraíso faria mais sentido no nosso contexto. Um céu, em oposição ao inferno de Dante? Ou o céu seremos nós mesmos, em um espaço aberto e com espelhos, para podermos nos enxergar, finalmente percebermos quem somos? Seria assim uma espécie de “o outro lado da moeda” do existencialismo de Sartre? Cada um faz as suas escolhas, tiranos ou não, os que chamamos de pessoas más ou boas. Mas é fato que para descobrir o inferno ou paraíso é inadiável morrer. E, embora também inevitável, a verdade é que ninguém quer isto. Nem eu, nem meus amigos, nem os milhões de infectados pela COVID no Brasil.

Ricardo Fontes Mendes
Jornalista internacional com 33 anos de experiência. Formado pela PUC de Campinas, é mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos e autor do livro Para Onde os Gatos Vão Quando Dormem.
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