Home / * PORTAL / Como dormir com os olhos abertos? | por Natália de Andrade

Como dormir com os olhos abertos? | por Natália de Andrade

Durmo mal.

Ao que parece, é um dos sintomas dos nossos tempos acelerados, de império do digital, excesso de informação, etc., etc. Desde a pandemia, sofri esta grande perda: a da capacidade de me entregar ao sono profundo. Apagar. Quando mais jovem, achava graça dos bebês que, “babando de sono”, resistiam ao dormir. Se têm tempo, pensava, por que simplesmente não dormem?

Há muito em jogo no adormecer: separar-se do outro; a perda do estado de vigília; a entrega aos processos inconscientes; a relação disso tudo com a morte. O mundo existe quando não o percebo? E eu sigo existindo quando desacordada? Papai e mamãe estarão aqui quando eu retornar? O que habita o escuro? Posso confiar que, na minha ausência, outros cuidarão de mim?

Volto. Conversei com mulheres mais velhas que compartilharam comigo suas experiências com o sono. Segundo dizem, “só vai piorar”. Animador.

Quando olhamos para a situação dos bebês, fica mais claro que zelar pelo sono é um trabalho coletivo. Alguém, em geral, ainda uma mulher, empresta seu corpo, o leite, seu psiquismo, suas palavras e sacrifica valiosas horas de sono para acompanhar o bebê no muito complexo processo de entregar-se a esse desconhecido que logo, logo, animará seus sonhos. A mãe é uma e a primeira representante de um outro social que comparece (ou não) para garantir junto ao bebê algum registro de segurança para o necessário descanso. Segurança também concreta: faz diferença a saciedade ou a fome; a proteção de paredes firmes ou a casa em risco de alagamento.

E na vida adulta?

Bem, os processos não se acabam. É por isso que falo sobre ter “perdido” algo da experiência – que me era muito satisfatória – de dormir profundamente. História que se repete para muitas pessoas desde a pandemia, período de marcante insegurança social (sanitária, financeira, política…).

Hoje. O que dizer sobre o caso de Gisèle Pelicot, mulher francesa que foi repetidamente sedada pelo marido, convertida em objeto inerte de suas perversões? E sobre as diversas matérias dedicadas a expor o crescente comportamento masculino (mais um no famigerado campo da ‘broderagem’) de produzir e divulgar imagens das companheiras – por vezes, das filhas – nuas, dormindo?

Penso na insônia. Nos despertares noturnos. Nos corações acelerados. Nos corpos enrijecidos.

Que coletivo cuida do sono das mulheres?

Como escapar dos efeitos paranoicos de uma realidade que supera os piores pesadelos? Quais homens ousam propor e praticar novas gramáticas do masculino? Quais oferecem palavras de acalento e segurança, suporte das melodias que podem ninar suas parceiras – amigas, leitoras, parentes, filhas, colegas, irmãs, semelhantes – até a terra dos sonhos?

Alienadas, corremos o risco de “dormir no ponto”, acordar vítimas sem sequer compreender o que nos aconteceu. Despertas para a realidade da misoginia, do machismo, chegamos ao fim dos dias exaustas, mas de olhos arregalados.

Gisèle Pelicot é valente. Levanta-se frente a um tribunal, a um país e por todas nós, para declarar que não estava “se fingindo de morta” nas cenas gravadas de abuso. Para denunciar que foi violentada pelo parceiro com quem escolheu dividir a vida, a intimidade e a cama. Onde supôs segurança, cuidado mútuo, encontrou algo ainda difícil de nomear. Como andará seu sono?

Precisamos dormir. Dormir e descansar.

Mas, ainda:

Quem zelará por nós?

 

Natália de Andrade: Psicóloga e Psicanalista. Escritora, nas horas de angústia. Trabalha com crianças, adolescentes e adultos, em consultório particular (Porto Alegre – RS).
Please follow and like us:

Comente

comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.