As flores
Há um agradável perfume no ar.
Um estranho cheiro de terra,
de relva e de mar.
São flores que desabrocham
nos mais diversos lugares.
São girassóis, margaridas
e camomilas ao sol.
São rosas nos pomares.
São pétalas esparramadas
aos cuidados dos nevoeiros
das primeiras horas.
Há uma essência de flores na cidade.
Múltiplos aromas que exalam cheiros
de todas as idades.
É um cheiro de crianças
que imploram trocados nos cruzamentos.
É um cheiro de mulheres
que rogam por seus rebentos.
Nesses dias que antecedem o inverno,
temos aromas de antigos amores
nos catres vazios.
Esses dias preenchem os sonhos
com perfumes ausentes.
E proliferam cheiros de jovens amantes.
É alguma coisa delirante.
Imprudente.
É um cheiro de atrevimento e contestação.
A cidade está impregnada
pela essência de trabalhadores
que assentam ilusões.
Que contam segredos
e fogem dos medos
quando o sol se põe.
É um perfume de mulheres
feridas em seus corações.
De mulheres que enfrentam a vida
batendo tábuas, varrendo o chão
e catando gravetos.
Há um aroma de sanga, de poeira
e de crepitar de lenhas no fogão.
É um cheiro dos errantes,
dos que chegaram antes
e dos que chegaram depois,
esse cheiro é de nós dois.
É um cheiro novo, mas é conhecido,
é a essência do povo.
E essas flores são imensas,
densas e acabadas.
São pétalas molhadas pelas chuvas do outono.
São pétalas sem dono.
Nesse jardim só há nomes de mulheres.
São todas fêmeas, belas e apaixonadas.
São descaradas.
Anita, Isabel, Olga e Rosa.
E tantas mais, mas todas mulheres,
e, “das Flores”.
E as flores desse quintal são imprescindíveis.
Mas há uma fragrância de democracia.
Uma mescla de paixão e rebeldia.
De liberdade e utopia.
É um cheiro de ira contra as injustiças,
que fala, grita e que faz.
E que gira.
Essas flores têm perfume de gente.
Lá no sul do alambrado
É largo o verde da travessia,
Que a cena do pampa modela,
O tempo fecha a cancela,
E o vento Pampeiro anuncia,
Uma noite de estrela-guia,
Nos acordes de uma guitarra,
Saltam da mata em algazarra,
Milongas e versos americanos,
Que “Por el correo temprano”,
Vive na voz de Violeta Parra.
Tenho um tronco Maragato,
E uma existência aragana,
Na peleia da sina veterana,
O meu lenço é o fogo-fátuo,
E o fio-de-bigode é um trato,
Pra quem troteia no Pampa,
A voz clama e se agiganta,
E vara rincões e aramados,
No rio soturno dos afogados,
Afoga mágoas, afina a garganta.
Estou liberto do mapa,
Das divisas e do varzedo,
Dos riachos e do arvoredo,
Onde a cor do lenço retrata,
O canto do cardeal na mata,
Um rito campeiro de louvores,
Vem do encanto os olores,
Na voz de Jayme Caetano Braun,
E no canto de Facundo Cabral,
Vou no rastro dos payadores.
A minha vista rasga o céu,
Na “zamba de mi esperanza”,
Nos olhares de uma criança,
E nas bordas do meu chapéu,
O pôr do sol é um fogaréu,
Que minha alma extravasa,
Nas platibandas das casas.
Do pampa eu sou prisioneiro,
Deixei rastros de um braseiro,
E sonhos dormentes na brasa.
A vida é um sopro do Minuano,
O tempo é um barco à deriva,
Vou em frente com a mente altiva,
Esquivando os pealos dos anos,
E assim eu não me engano,
Circundo as fronteiras do pago,
E na América me resguardo,
Num encontro com Cenair Maicá,
É vermelho o meu lenço acolá,
Distante… lá no sul do alambrado.
O meu horizonte é austral,
E a outra margem é infinita,
No ventre desta terra bendita,
No recanto de Gabriela Mistral,
Numa querência meridional,
Sou um gaudério abandonado,
Um xiru dos quatro costados,
Tropeando desde noventa e três,
Deixei serena a minha tez,
Distante… lá no sul do alambrado.
Nas andanças nestes quadrantes,
Sorvo mate com Yupanqui e Zitarrosa…
…Victor Jara e Mercedes Sosa.
Nos poemas de versos viajantes,
Sob um teto de estrelas brilhantes,
Foi-se a distância num mate lavado,
Sigo levado pelas plagas do amargo,
Dedilho notas de Noel Guarany,
E os versos vagueiam por aí,
Distante… lá no sul do alambrado.
Três Marias em nuvens de chumbo
I – Maria catadora das penas
Maria catadora das penas,
Revira migalhas no arrebol,
Verte saudades nos dias de sol,
E traz recuerdos de noites serenas.
Debulha rosários em uma novena.
Maria envolve as penas urbanas,
Mendiga migalhas de alma profana,
Segue errante nas vias sem fim,
Roga silêncios que não dizem sim,
E embala rebentos na sina mundana.
Maria das penas sonha que um dia
A vida seria sem o fio dos punhais
Livre dos potros e velhos baguais
Por isso gritava por sua alforria
Pagando promessas em romaria…
Maria que sonha com alvos lençóis
Mas vaga na noite por entre os faróis
Envolta em trapos e morta de fome
Vai solitária num passo disforme
Com ombros pesados de luas e sóis
II – Maria catadora de ausências
Maria catadora de ausências
Medita silêncios em sua clausura
Vibra ilusões de fluída amargura
Recolhe traumas na sua existência
Soluça lágrimas em confidência
Maria é seiva que pede piedade
Revolve sossegos por caridade
E um sol na tarde é um lamento
O olhar tristonho no firmamento
Alvoroço da urbe e da realidade
Maria medita semanas a fio
Pacata ausência de tocante figura
Grassa desejos de insólita lisura
E um vasto pensamento vazio
Profundo e pardo nas águas do rio
Maria intensa de pura negritude
A mão vagueia na vasta amplitude
Sintetiza normas e rusgas eternas
Indicador em riste: é a lei materna
E segue a vida num rumo rude
III – Maria catadora de horizontes
Maria catadora de horizontes
Cata ventos e partiu para o infinito
Leva no ventre um filho bendito
Encara tempos e chuvas na fronte
E desbrava planuras e montes
Maria cata quinquilharias
Um desalento no seu dia a dia
Cruza oceanos e afoga os olhares
Águas soturnas e dias melhores
E um sonho além da fantasia
Maria catadora de margem distante
Léguas de chão e trilhas de pó
Milhas de sal e águas sem dó
Frenética fuga da sina migrante
Ela não cansa e caminha ofegante…
Maria à deriva um sonho extravasa
Teve a certeza da ilusão que abrasa
Na margem oposta o fim da utopia
E o troco da vida, estranha ironia
Partiu Maria… pariu longe de casa
IV – Três Marias em nuvens de chumbo
Três Marias em nuvens de chumbo
Três olhares em triste harmonia
Marias da noite… Marias de dia…
Passos rudes em caminhos imundos
Pobre sina num corpo rotundo
Três destinos de vidas errantes
Marias atrás… Marias adiante…
Três Marias inundadas de mundo
Três batidas sincopadas de um bumbo
Eternas mulheres… Marias andantes…
São três Marias num triste calvário
Sobram penas, ausências e horizontes
Atitudes francas nos dias em reponte
Marias da Fé de joelhos no santuário
Marias das Dores… Marias do Rosário
E seguem no rumo de trilhas e trilhos
Ilusão de desejos num longo martírio
A sina de aço das Marias guerreiras
Levam abraços cobertos de poeiras
Cultivam silêncios e sonhos dos filhos
Última payada
O chimarrão que o maragato
Cevava na cuia morena
Descansando as chilenas
Pra sorver o verde regato
Que veio do tosco do mato
Mateando quieto e despacito
Com o olhar no infinito
Nos causos do seu silêncio
Manchou com erva o lenço
E chimarreou com seu piazito
E o guri cresceu assim
No gosto pelo chimarrão
Pra quem nasceu neste chão
Cevando mateadas em mim
Em largas proseadas sem fim
Nas vastas tardes da pampa
Quando o quero-quero canta
Na calmaria da terra gaúcha
Com a cuia feito garrucha
Identidade guapa que encanta
Quando o “Velho” anoiteceu
Num mês de maio fatal
Deixou de lado o buçal
Fez de conta que esqueceu
Todas as lidas que viveu
Com a cuia, bomba e sovéu
Cevou um mate com mel
E em silêncio foi embora
Batendo esporas na aurora
Em algum rincão do céu
Herança: a velha bomba
De alpaca e ouro folhada
Ficou um taura na invernada
Num dedilhar de milonga
Na tarde cada vez mais longa
Daquele mesmo domingo
Que cevei um mate antigo
E sorvi a Última Payada
Naquela bomba de alpaca
Que sempre carrego comigo
O fio da faca
Só! É a faca presa na bainha.
E um talho divide em duas…
As partes iguais da esfera.
O trio sangra… tridente na carne
A espera do corte preciso do aço.
E a graxa queima na brasa!
Quatro são luas no firmamento.
E os elementos no extremo sul.
Nos metais de luas e noites,
E na euforia de golpes fatais.
E o despertar… da faca na garganta.
Cinco são os dedos das mãos,
Calejadas nos talhos do tempo.
No cabo da faca e desenganos,
Ódio das adagas… paz dos anos,
Dos tauras veteranos de solidão.
Seis é sexta sem as amarras.
Seis os fios nos alambrados,
Que marca e encerra a fera.
A poeira maragata que estampa,
Que vibram e ferem patas,
Seis… a praga da besta-fera.
E na volta… arde o fio na garganta!
Sete são os pecados capitais,
Que expõem nossas agruras.
Varam ruídos e gritos fatais,
No desvão dos becos e das ruas.
O mando eterno dos coronéis,
Nas noites repletas de sombras,
No alvoroço das adagas em bordéis.
Oito é o infinito no horizonte,
Que traz mansidão e lonjuras:
– um canivete na espiral do fumo –
– um fogo de chão no meio do pampa –.
Oito é um sol que se vai,
E outro sol que se levanta.
Trilho de luz no longo do dia.
Uma “Solingen” enferrujada descansa.
Sem volta… não arde o fio na garanta.
ATHOS RONALDO MIRALHA DA CUNHA. Nascido em Santiago do Boqueirão-RS, em 30.10.1960, é graduado em Engenharia Civil e funcionário aposentado da Caixa. Autor dos seguintes livros: Os agachados – crônicas da Era Lula (edição 2012), Contos de Chumbo (Chiado Editora 2015), Tintos e Contos (Penalux 2017), O código Locatelli – romance – (Penalux 2018), Sofrendo em Paris – crônicas – (Penalux 2018), Contos de prata (Penalux 2020), O Zapzap das flores – crônicas – (Penalux 2022), Peleias – contos – (Martins Livreiro 2022) e Última Payada – poemas – (Penalux 2024).
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