Queridas crianças:
Escrevo-lhes para confessar que sempre fui cético quanto à existência de vocês. Tenho saído toda véspera de Natal mais à procura da verdadeira criança do que para cumprir a missão de entregar-lhes presentes. Sim, porque o compromisso é o de fazer surpresas agradáveis às que foram boazinhas ao longo do ano. Entretanto, olhando de longe, da minha casa na Lapônia, do alto do meu trenó, fica difícil saber se estou sendo fiel ao meu trabalho. À noite, quando saio com minhas renas, vocês estão dormindo, não as tenho visto (e faço questão de não ser visto), portanto, como dizem, vocês são uns anjinhos neste estado.
Tenho de confiar em seus pais, e vocês sabem, é difícil confiar nos adultos. Por isso, não se espantem, para mim é difícil acreditar que vocês existem. Eu explico.
Quando surgi, há muitas décadas, começavam a existir projetos para as crianças, as quais, por séculos foram simplesmente ignoradas na sua infância. Em pleno século XIX, os estudiosos começavam a entender que o adulto era fruto de tudo o que acontece com os pequenos. Nesse início, as crianças ainda eram tratadas quase que como adultos em miniaturas, e muitas coisas que se exigiam das crianças eram comportamentos dos mais velhos, com um pouco menos de seriedade. Não se admitia a fantasia e o aspecto lúdico das suas atividades. Só que (eu já sabia) os estudos confirmaram que os infantis não distinguem o que é do jogo do que é do sério. Em suas narrativas, em seus pensamentos, portanto, não há uma transição do que é dado na realidade para a invenção fantástica. Para vocês é simplesmente a vida, e é bonita. Ho ho ho, esta eu devo ao Gonzaguinha, o qual, pelo diminutivo no nome, deve ter levado a fantasia de criança a sério.
Depois, vieram teóricos que entenderam a alminha infantil, e colocaram vocês em um pedestal. Houve avanços na compreensão do papel da criança; vocês passaram a aprender melhor e a ter menos traumas. Mas tudo tem lá o seu efeito colateral, vocês também passaram a desconsiderar a autoridade dos pais, a não apenas questionar os professores, mas também a ignorar o conhecimento que poderiam obter deles, e passaram a fazer com eles o que eles faziam com vocês – falo do uso da palmatória. Vocês ficaram respondões, soberbos, violentos. Sim, os adultos ficaram melhores ao compreenderem o que deviam fazer com vocês. Até chegar à Lei da Palmada (que passou a considerar violência o recurso do “psico-tapa”) é uma longa estrada, mas não sei onde vão chegar.
Se lhes escrevo hoje, é para dizer que, apesar de tudo, eu insisto em querer acreditar em vocês. Que o futuro do mundo estará garantido se, apesar das guerras, das crises e da turbulência urbana, eu tiver na lista a gurizadinha que se comportou bem (como crianças) ao longo do ano. Sei que estou sendo um tanto erudito no que digo, mas entendam, estou velho. Mas ainda continuo um bom velhinho. É que no fundo, mesmo, estou falando para os adultos, vocês entendem. Façam os seus pedidos, montem as suas árvores, que eu também quero um Feliz Natal. Assinado, Noel.
ORLANDO FONSECA
Orlando Fonseca nasceu em Santa Maria, em 7 de outubro de 1955. Professor Titular aposentado da UFSM, onde atuou por 31 anos, na área de produção textual nos Cursos de Comunicação Social e Letras. Doutor em Teoria da Literatura, pela PUCRS, 1997, e Mestre em Literatura Brasileira pela UFSM, 1991. Exerceu o cargo de Secretário da Cultura de Santa Maria, no período de 2001-2004; Pró-Reitor de Graduação na UFSM, 2010-2013. Patrono da Feira do Livro de Santa Maria em 2005. Cronista do Jornal Diário de Santa Maria e Site claudemirpereira.com.br. Presidente do Conselho Municipal de Política Cultural (CMPC – 2018-2019); Presidente do Coletivo Memória Ativa (2018-). Tem romance publicado pela parceria Rede Sina| Bestiário.