“Por um instante teve inveja daquela liberdade para voar”
Chegou fatigado de tanto trabalhar e já foi tirando os sapatos. Muito organizado, guardou o par de meias no cesto de roupa suja, arredou os calçados para baixo da cama e mudou o fardamento para o pijama xadrez de estimação. Há anos está atrelado ao mesmo emprego de chefe do almoxarifado, e esse ramerrão transformou seus hábitos mais simples em um roteiro sem espasmos. Do quarto mesmo, gritou um “boa noite, mãe!” e ia desligar a luz, quando um ponto preto lhe bateu na cara. “Estranho, uma mosca aqui?” – espantou-se o intrigado rapaz. Sem achar aquilo importante, deu de ombros e pôs-se a dormir.
No outro dia, o sono deu lugar às lides da rotina. Elaboração de pedidos de compras, recebimento e distribuição dos materiais, controle de estoque, emissão de ofícios e inventários, controle de custos. Poderia haver algo mais emocionante na vida de um rapaz do que chefiar um depósito na Universidade? De quando em vez aparecia em seu gabinete um professor perdido pelos corredores, outro aluno querendo saber do professor sumido. Era seu passatempo ver o rosto das pessoas que batiam à sua porta sem desconfiar onde entravam.
Ao final do expediente, ia direto para casa, onde dava sequência ao protocolo. Meias ao cesto, sapatos sob a cama, arrumou bem o cordão do robe e se deitou. No teto, percebeu o ponto preto destacado pela sombra. Era a mosca novamente. Sobreveio então o grito:
– Mãe, pode mosca em apartamento?
– Só se tiver planta ou bicho morto.
Mas nada disso ali havia, ao menos era o que ele constatava. Ficou na cama mesmo, a admirar o inseto repousado. “Como conseguia manter-se tão fixa de ponta-cabeça?” – indagava-se. Por um instante teve inveja daquela liberdade para voar.
Na manhã seguinte, o despertar vagaroso e habitual é abortado por um choque. Agora, três moscas lhe faziam companhia. Uma colada no vidro da janela, outras duas ladeavam o molho das chaves, sobre a mesa. Mãe, tem mosca no meu quarto. O inseticida está na despensa, vá buscar.
Nada demovia a ideia de “trabalho com afinco” da cabeça do rapaz. Controle de ofícios e inventários, distribuição de estoque, distribuição e emissão dos materiais, elaboração de custos, recebimento de pedidos de compras, o toc-toc sucedido por um “foi engano”. Nem pedem desculpas!
Não mais planejava o futuro, sequer sentia-se motivado para isso desde que começou a trabalhar na Universidade. A boa remuneração recebida era poupada religiosamente, e a previsão era de que em dez anos, mais ou menos, se quisesse, poderia parar de trabalhar. Viver só de renda, mas para que continuar vivendo?
Quando retornou ao apartamento, correu sarapantado em direção ao quarto, causando estranheza à mãe que se acostumara a ver o filho caminhando sempre num ritmo de romaria. Abriu a porta e confirmou a hipótese. Mais nove moscas, ao menos foi o que conseguiu contar das visíveis, se incorporaram ao grupo das três residentes. Não fazia calor, até chovia naquela época do ano. Plantas, não as tinha por ser alérgico a pólens e a coisas naturais. Pôs-se a revirar por baixo dos cômodos em busca de algo putrefato que justificasse a situação. Nada. Ouviu-se lá do outro quarto:
– Mãe, isso daqui está um moscaredo.
– Já disse para usar inseticida.
– Não adiantou.
– Ah, não sei.
Então, encerrou-se no quarto e decidiu que conheceria suas inquilinas mais de perto. Com movimentos sutis, sentou-se sobre a cama e aguardou que alguma delas pousasse próximo. Em pouco tempo veio uma, no seu voo diplomático, parou em seu joelho. Deixou-se agarrar. Fascinado com o zumbizar do inseto dentro da mão fechada, colocou-a perto do ouvido, quis saber das novidades guardadas para ele. Uma sucessão de zês. Estendeu a palma ante os olhos e notou que a mosca repousava solene. Mirou bem, mas aquilo não era comum. As asas eram douradas e com meticulosos adornos negros na borda. O corpo, rajado de linhas brancas, visco contra a luz assumia várias matizes, que iam do azul-metálico à prata. Grandes bolotas vermelho-vivas formavam os olhos que agora lhe fitavam de maneira animalesca. Foi nesse instante que aquela revoada turva arremeteu-se contra o pescoço à mostra, algo sem controle. De nada adiantava abanar-se, eram várias e hábeis voadoras contra duas mãos cheias de dedos desengonçados.
O dia clareou quando a mãe percebeu a ausência dos sons rotineiros que a despertavam. Não havia mais o abrir e fechar de portas, a torneira escorrendo água e o cha-cha-cháda escova contra os dentes. Levantou-se da cama e foi até o quarto onde poderia estar dormindo ainda o filho. Viu a cama feita e pensou: “deve ter saído para trabalhar mais cedo que o de costume. Muito estranho!” Mais anormal que isso eram os vários insetos espalhados nas paredes e no teto. A mãe, com toda calma e sapiência, recorreu ao mata-moscas, há tempos esquecido num cantinho da despensa. Uma a uma, as treze moscas iam sendo abatidas. E abriu bem a janela, clamando por novos ares. “O vento vai espantar esses bichos!”