“Você sempre dizia que os negros tinham que lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa o corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.”
Jeferson Tenório – O AVESSO DA PELE
Minha mãe e meu pai nunca sentiram necessidade de conversar comigo sobre “possíveis” situações de ameaça de vida e/ou sofrimento psicológico, nasci com a pele branca, eu não sofreria preconceito nas brincadeiras de rua. Não sofreria a dor de ouvir alguém dizer: minha filha, não te mistura com aquela negradinha. Não seria constrangida na escola ou em quaisquer outros lugares privados ou públicos. Será que consigo imaginar o que seja um olhar traiçoeiro a atravessar meu corpo, corpo este que o imperialismo sagrou branco (?)
O AVESSO DA PELE traz à tona a necessidade de criar “meu lugar de fala” por estar ao lado de quem se constrói antirracista, mas que conserva na sua ancestralidade branca o ranço do racismo, as mãos tatuadas de tortura e (em)cobertas pela indecência do que foi o sistema escravagista nas Américas. A obra de Jeferson Tenório põe luz sob o “avesso da minha pele”, tez estrangeira que desconhece todo tipo de dor e constrangimento provocados pelo preconceito da cor da pele. Pelas infinitas tentativas de mortes de línguas e culturas trazidas da “Mãe África”.
Não há perdão e esquecimento pelos quase quatro séculos de sobreutilização dos corpos de negros e negras pelo “mundo branco”. Não fosse pela luta das pessoas pretas, antes e pós 13 de maio de 1888, teríamos, brancos e negros, perdido a rica cultura dos tambores que palpitam atravessando nossos corpos até chegar ao AVESSO DA PELE e ao avesso da razão para tornar a todas e todos antirracistas.
Neli Germano é natural de Torres-RS, reside em Porto Alegre. Arquivista aposentada. Curso Superior em Letras e Serviço Social pela ULBRA Canoas-RS. Dois livros solos publicados, gênero poesia, “_como quem rema_” em 2022 (Ed. Casa Verde e Cidade Poema) e “CASA DE INFÂNCIA” em 2014 (Microed. Gente de Palavra). Participou de dez antologias. Integra o Coletivo Mulherio das Letras desde 2017, ano de fundação, e participa de vários saraus em Porto Alegre.