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Nona Ottobelli. Foto: arquivo pessoal de Carine Antônia dos Reis.

A rezadeira da minha Macondo, por Felipe Freitag

Em memória de Alvina Maria Ottobelli.

Assim como a epifania das madeleines de Marcel Proust, na obra Em busca do caminho perdido, ao visualizar aquelas limas maduras brotando como que em cachopas, em um pé nem tão grande nem tão minguado, nos fundos da casa, em minha primeira visita àquela casa, eu lembrei do pequeno pé de lima encostado da cerca de arame farpado ao lado daquela casa azul de madeira e das tantas vezes que fui comer limas saborosas de inverno lá, mas não são as limas, é a nona Elvira, como a chamávamos, apesar do seu nome não ser esse, que figura em meus pensamentos e em meus sentimentos no agora desse texto.

Crescer em uma cidadezinha, apesar dos aspectos negativos, tem certos encantamentos, como, por exemplo, o toque do sino anunciando a morte de alguém (através dele sabe-se o sexo e a idade da pessoa falecida), o brincar na rua serelepeando, o tempo que parece passar devagar como que trotes tímidos de vacas em direção à ordenha, pegar frutas do pé (o quintal de cada casa parece ser o quintal de todo mundo), o bom dia costumeiro (cumprimenta-se, em uma manhã, a cidade toda), a troca entre vizinhos (se alguém carneia algum animal, dá carne aos vizinhos; se alguém tem abacates, laranjas, bergamotas, chuchus, devolve a gentileza) e, por fim, as benzedeiras e os benzedeiros.

Nona Ottobelli era uma das benzedeiras mais famosas da cidade, porém não gostava desse título; preferia ser chamada de rezadeira, pois acreditava que o que fazia era orar com grande fé para ajudar as pessoas. Sempre esteve ligada ao poder das palavras como seu veículo de trabalho, então, o que fazia eram orações pelo bem de quem precisasse. Sem esquecer que o vocábulo famosa era algo que ela rejeitava. Ela era minha vizinha, assim, sempre que necessário, minha mãe recorria a suas bênçãos/rezas para mim. Eu, desde criança, portanto, fui sendo benzido para diferentes “males”: míngua, solana, bichas (vermes), quebranto, etc. Existia uma magia nas mãos já idosas da nona, existia uma ternura em seu olhar que parecia dizer que tudo ficaria bem, existia uma candura em sua voz, como que se ela conclamasse todos os anjos e santos de Deus para falar. Para além, muito além dos benzimentos, eu interessava-me, ainda criança, por dois aspectos: como aquelas rezas surtiam efeito e o que a fez se tornar uma rezadeira/benzedeira. Nunca obtive tais respostas enquanto ainda era um pequeno menino. Depois…

“Felipe que tu tens das nove mínguas, não terás mais míngua, nem carne, nem nos ossos, nem no intestino, nem na bexiga.” E media com uma linha de costura o comprimento de braço a braço e da cabeça aos pés. E enrolava a linha em seu dedo enquanto benzia. Depois, queimava a linha e a colocava, em uma colher com açúcar, e dava para eu engolir. Assim, eu deixava meu aspecto de saúde minguada e voltava a me alimentar bem e a ter mais energia.

“Deus te remiu, Deus te criou, Deus te livre para quem ti mal olhou. Em nome do Pai, do Filho e ao Espírito Santo, Virgem do Prato tirai esse quebranto.” E com um pequeno galho de arruda, rezava baixinho, fazendo o sinal da cruz com tal planta por sobre o meu corpo. Assim, eu deixava de ficar amuado e mais uma vez minha energia voltava.

Quando minhas dores de cabeça não cessavam, ia até à nona Elvira benzer da solana. Ela colocava uma garrafinha de refri com água morna e sal e punha sobre a minha cabeça com a boca de envase tapada por um paninho. Eis que a água da garrafinha borbulhava. Quando parava de borbulhar, era sinal de que as dores de cabeça parariam, pois a solana havia saído do seu corpo.

A nona Ottobelli era um patrimônio da cidade. Muita gente de longe vinha até ela para ser benzida. Ela nunca se engrandeceu com isso. Pelo contrário, continuou na sua simplicidade e na sua amabilidade de sempre. Eu cresci, fui morar, em uma cidade maior, para cursar minha graduação, mas sempre que podia queria estar com ela, principalmente para ouvir as histórias de quando ela era parteira. Certa feia, ela mostrou-me, com muito orgulho, a tesoura, já gasta pelo tempo e pela ferrugem, que utilizava, em sua juventude, nos partos. Ia de cavalo com sua tesoura para onde existisse uma mulher grávida que a chamasse.

Pois bem, há alguns anos, em uma das minhas visitas aos meus pais, em minha cidadezinha, a minha Macondo de Gabriel García Márquez, a nona veio até mim, dizendo-me já estar muito idosa para cumprir com sua missão e fazendo-me o convite para ser seu sucessor. Confesso que não entendi a escolha por mim. Existem certos segredos desse nobre ofício, ao que quando disse SIM, prometi nunca revelá-los: o porquê da escolha, os preceitos e obrigações de um benzedeiro/rezador e como as bênçãos surtem efeito. No dia posterior ao do SIM, fui até a sua casa (já não mais a azul de madeira), portando meu MP3, e gravei, em áudio, as benzeduras, as feituras, os ditames e, sobretudo, os conselhos. O principal deles eu posso revelar: um bom benzedor/rezador precisa ter muito amor pelo outro. Então, passei do áudio para o papel e decorei quase tudo. Benzi poucas vezes, uma vez que não alardeei sobre tal. Entretanto, volta e meia aparece alguém pedindo para eu rezar o Responsório de Santo Antônio para achar coisas perdidas. Inclusive, dentre todos os santos que a nona tinha, em seu lar, Santo Antônio era o principal, pois ela era muito devota dele.

 

Felipe Freitag e Nona Ottobelli. Foto: arquivo pessoal do autor.

 

As benzedeiras e benzedeiros e ato de benzer são um movimento “antropológico” da ritualística das crenças no Brasil. O sagrado em tais pessoas e em suas preces e em suas feituras revelam saberes históricos e culturais que não se podem perder. A memória necessita de perpetuação não apenas simbólica mas também real. Essa herança sociocultural oriunda de matrizes indígenas, africanas e portuguesas, e, depois mesclada com a imigração italiana e alemã, no Rio Grande do Sul, merece seu reconhecimento. Não estou indo contra a ciência, mais especificamente contra a Medicina e afins. Somente estou afirmando que o lado espiritual também pode ter parcela na melhoria do lado físico.

Nona Elvira partiu deste plano, aos 95 anos, há poucos meses. Mesmo eu estando com Síndrome do Pânico (sem sair de casa por cerca de três meses), fiz questão de ir ao seu velório, de tocar por um tempo prolongado, em suas mãos frias de morte e, sobremaneira, de rezar por seu espírito e agradecer por todo o bem que ela fez por tantos e tantos e tantos.

Foi um dia muito triste para mim, pois não faleceu apenas uma vizinha ou uma rezadeira/benzedeira ou uma segunda avó. O que morreu está contido no seguinte provérbio: “Quando morre um idoso, é como se incendiasse uma biblioteca.” E a nona Ottobelli podia não ser uma biblioteca de grandes eruditos, mas era a mais pura cultura popular VIVA, pois era uma identidade comunitária, um espelho de mulher forte. Sempre foi a grande matriarca de Vista Alegre. Espero que ela não se torne somente mais um nome de rua…

 

 

Felipe Freitag é licenciado em Letras Português pela Universidade Federal de Santa Maria e mestre em Estudos Linguísticos pela mesma instituição. Em 2007, aos 19 anos, recebeu menção honrosa pelo poema Bolachas de ardem, no Prêmio Lila Ripoll de Poesia, da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, gerando publicação de seu poema em coletânea com os demais autores premiados. Em 2009, aos 21 anos, foi um dos onze vencedores do Prêmio Valdeck Almeida de Jesus de contos LGBTs, com o conto O templo das mãos, o qual foi publicado em coletânea na Bienal do livro de São Paulo no mesmo ano. Tem contos, crônicas e poemas publicados, em revistas, em jornais e em sites e blogs especializados em autoria literária. Dedica-se à arte literária como percepção obsessiva do cotidiano, em seus desmembramentos das expressões humanas. O caos do contraste é a essência de seus textos, nos quais passado e presente emulam-se para a conquista de um movimento de grito em busca e apropriação de certa paz interior. Seu ofício é, antes de tudo, um desvendar das banalidades da vida, um recortar de imagens do humano.

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