Quinta feira. Quase dez da noite. Terminei um curso qualquer e fui lá pra Glória, encontrar um amigo. O evento era sobre ‘tecnoxamanismo’. Fui mais pelo amigo, admito. Coisas muito exóticas, levo um tempo até compreender. É uma espécie de ebulição psíquica: na temperatura certa, as ideias fervem.
Durante o caminho, naquele tédio cotidiano de quem cumpre algum tipo obrigação, dei-me conta do óbvio: saí de um lugar na intenção de chegar em outro. Mas quem garante, de fato, o acontecimento? Que garantia nós temos de que o sol vem pelas manhãs, de que uma roda sempre vai girar? Quem garante que ao quebrar um ovo para fritá-lo, dele sairá uma gema? Aliás isso acontece com alguma frequência, talvez falha do controle de qualidade da indústria ovonídea.
Eu tenho fome e escolhi fritar um ovo para comer. Minha finalidade é saciar esse sinal biológico. E se do ovo cair algo diferente de uma gema? Já estaremos no nível um do espanto. E se ao quebrar o ovo saísse um peixe? Seria o nível dois: de um ovo de galinha, só se pode sair uma galinha. Ao menos em potência; como a gema, essa infecunda. E se caísse um carro? Nível três.
Graças ao espanto, nos afastamos, tomamos distância. O mesmo acontecendo aos conceitos, as classificações. Como segurança e proteção, que não diziam, originariamente, nada sobre cuidar. Segurança é justamente o oposto, é o que dispensa cuidados, aquilo com o que não preciso me preocupar. E no entanto, estar seguro é sentir-se protegido, cuidado. Proteção é cobertura, é por cobertura em algo, é cobrir. Por isso uma casa com telhados está protegida. E coberta, protege o seu interior. Mas não cuida. Cuidar é ação de quem quer bem. É curar.
Palavras são isso, sementes de frutos incertos, colhidas em poesia, lavradas em campo áspero. Como naquele ápice do instante antes da quebra do ovo, surgindo a esperança de que sairá a gema.
Fui tão longe nos pensamentos que quase perdi o ponto.
HÉRCULES XAVIER
Seguindo o ideal suassuniano de cultura (missão, vocação e festa) desde 2007, sou um entusiasta sobre o tema. Organizo e mantenho o blog poemia.wordpress.com onde faço ‘colagens’ com tudo que gosto. Como vocação inata, o gosto por dar aula, tendo me formado em licenciatura em filosofia pela UniRio. Avancei para o mestrado em patrimônio cultural (IPHAN) e também uma pós em produção cultural, naquela paixão motivadora, onde dedico-me com total afinco. Às vezes arrisco e componho um poema ou dois, como quem ouve e fala pela necessidade do divino.
Que beleza de texto ❤