As obras clássicas são daquelas que conhecemos antes mesmo de lê-las. Sabemos de D. Quixote enfrentando os moinhos de vento sem sequer saber da existência do livro. A mesma coisa com a viagem de Odisseu / Ulisses, o seu regresso da Guerra de Troia até o seu reino, em Ítaca.
Quando criança, eu tinha ao lado da minha cama um livrinho de poucas páginas, narrando as peripécias do herói grego. Aqueles livros infantis com pouco texto e muitas imagens que encantam a vida da gurizada.
Odisseu / Ulisses enfrentava o gigante Ciclope de um olho só (filho de Posseidon) e cruzava de navio por um desfiladeiro onde, de cada lado, postavam-se monstros terríveis. Um era Cila, figura disforme de vários pescoços, com cabeças enormes nas extremidades, com bocas vorazes e dentes afiados; o outra era Caribde, com uma bocarra perigosa, capaz de sugar as águas e também os navios que por ali passassem.
Eu folheava o livrinho antes de dormir e não lembro de ter pesadelos com isso. Ulisses driblava com sabedoria essas ameaças devastadoras e eu dormia tranquilo.
Recordei dessa vivência infantil relendo a Odisseia nas últimas semanas, na tradução primorosa de Donaldo Schüler.[i] Confesso que a lembrança infantil não era nítida, a descrição dos monstros e seus nomes completamente embaralhados, e foi com a leitura que defini/reinventei a memória difusa.
Reli o poemão de Homero e foi uma surpresa atrás da outra – em especial, a rememoração de como se deu meu contato com a trajetória do herói.
A conversa seria longa e vou resumir num único tópico: não lembrava que mais da metade dos cantos (13 dos 24) abarcam a chegada de Odisseu ao seu reino, em Ítaca, o planejamento quanto ao enfrentamento aos pretendentes à mão de Penélope (nobres que se aboletaram no palácio de Ulisses, dilapidando seus bens, imaginado que ele não voltaria mais) assim como o devido combate e morte desses arrogantes intrusos.
Minha lembrança era de que se tratava de um livro exclusivamente de viagem, focado nas peripécias de um navegador corajoso, enfrentando monstros, vivendo a sua fragilidade diante do capricho dos deuses (a fúria de Posseidon, a indiferença de Zeus, o auxílio amoroso de Palas Atenas) e levei um choque. Obras clássicas, como já apontou Ítalo Calvino, são sempre muito mais do que recordamos. Ou, dito de outra maneira, são sempre possíveis de novas leituras.
A Odisseia, muito além de um livro de viagem, é também um poema sobre vingança. Ulisses se sente ofendido e humilhado com a presença acintosa dos pretendentes no seu palácio e não vê outra alternativa a não ser eliminá-los fisicamente. Feito um Aquiles, é o ódio que o mobiliza.
“Ah! Ah! Acabou o acirrado certame” – diz o herói no início do Canto 22, armado de arco e flecha, e auxiliado pelo filho, Telêmaco, e dois escravos. – “Saberei alcançá-lo se Apolo me conceder esta glória.”
Ulisses prepara o arco e o poema segue:
“Zuniu a seta. Odisseu visou a garganta [de um dos pretendentes]. A ponta / perfurou a delicada pele do pescoço. Antínoo caiu / de costas. A taça [que ele tinha nas mãos] saltou das mãos do ferido. Das / narinas esguichou um jato de sangue. / (…) / O tumulto / alvorotou toda a sala. / (…) / Os tolos não compreendiam / que a morte estava preparada para todos.”
Relendo o poema, me dei conta do lugar fundamental que a raiva tem no modo como os gregos pensavam a vida, tão bem acentuado nos poemas de Homero. Na Ilíada isso está apontado nos primeiros versos; na Odisseia, esse sentimento não parece tão evidente, mas está lá. Para que Odisseu, enfim, se restabeleça no seu reino, no seu lar, reconquiste a esposa, o ódio é fundamental. É liquidando, massacrando os pretendentes, que ele reorganiza o seu mundo.
Penso que a maioria de nós, informados/formados/formatados pelos sentimentos e pensamentos da Cristandade, sempre teremos dificuldade em compreender Homero. Apesar disso, nunca serão pequenos os prazeres que essa leitura nos proporciona.
[i] HOMERO. Odisseia. Trad. de Donaldo Schüler. P. Alegre: L&PM, 2014. Edição bilíngue em 3 volumes.
Foto: Dartanhan Baldez Figueiredo
Vitor Biasoli