“Cintilância”, “Nós, Rage”, Ela, suja e Malvada”, “Pai e Mãe” são alguns do poemas de Lígia Savio, autora dos livros No Dorso da Palavra e Fios de Aço. Confira:
(sem título)
se sabes bem
se escutas bem
e eu não sei se sim
se vieres dizer
se simplesmente vieres
se eu puder ouvir
no samsara dos descobrimentos
se eu puder saber
mas apenas aprendo a dizer
apenas aprendo a dar
os primeiros passos leves
se eu puder andar
(sem título)
de novo encerrada em círculos
quadrado fechado
fera enjaulada
outra vez lua nas grades
mãos que tapam bueiros
dedos rasgados
de novo diante de laminas
parco perímetro luz embaçada
mas um dia um belo dia
o corpo contra as barras
uma fresta na janela
soco duro na vidraça
o quadrado aberto
CINTILÂNCIA
Flores rendadas
se abriam em tua carne
como um vestido
bordado a borboletas.
Flores intensas
na malha de teus poros
realçando a nudez dos mistérios gloriosos.
Peixes alados e folhas tremulantes
desenhadas na pele reinventada.
Assim te vi ( me vi)
nesta veste tramada na epiderme.
E então, despida de tecidos,
ficaste só a ser.
Parada.
Na imensidão do corpo.
NÓS
Em ásperos caminhos
encontrei
a feiticeira das vinhetas
a mulher das corujas
a camponesa das poções
nenhuma dama ou donzela.
Juntaram-se a mim
com suas vassouras de condão
e meu cajado floresceu.
Renegamos a Terra Santa
e nos fomos pra montes negros.
Bruxas, bruxas, sim!
Nos chamem como quiserem!
Nos queimem, se assim puderem!
Estarei à tua espera…
RAGE
Depois descobri
que o entulho não era (m)eu.
Pequeno equívoco,
síndrome de culpa
que nós enfiam goela abaixo. Eles.
Minha alma deve ser bem pequena,
viu Pessoa,
porque tem coisas que não valem a pena
e eu não vou transformar em frases róseas
os sapos viscosos que engoli
acho que só pra pousar de superior,
ser elegante mesmo diante da porra toda,
acabar no senso comum de ser generosa e altiva.
O que te cabe é ser leve, sutil e supérflua,
servir de mito, musa, seja lá o que for,
seja que imagem ilusória façam tua…
Só nas novelas mais baratas
a vida é essa, mulher é assim.
E se tu não te conforma te transformam em inseto
pra ficares invisível.
Então o negócio é pegar as pedras do teu ventre
e aprender o que fazer com elas.
FEIA, SUJA E MALVADA
Tinha sujeira em cima da geladeira
e ninguém notou.
Tinha sujeira em cima da geladeira
até que a puxaram pela mão
e esfregaram seu dedo no pó acumulado
como se esfrega o focinho de um gato
no mijo que ele fez do lado errado.
Tinha sujeira nos cantos
penduradas nos lustres
tinha sujeira nas almas e nos corpos.
Tinha sujeira pra limpar com detergente
tinha sujeira de quem não se viu no espelho
tinha sujeira de quem não se enxergou.
Tinha ainda uma longa caminhada
até o olhar ficar limpo
e o coração lavado.
Tinha sujeira em cima da geladeira
congelando sensações
emparedado sentimentos.
Tinha bocas mudas, costuradas
ou palavras ocas, desgastadas.
Tinha sujeira porque ela era “meio aérea”,
não se ligava em coisas práticas
e esquecia de limpar a geladeira
esquecia o lixo atrás da porta.
Por isso tinha sujeira em cima da geladeira
que era também muito alta e não se via
mas era fácil de limpar.
Bem mais difícil limpar a imundície
entranhada em lugares bem secretos.
Tinha sujeira em cima da geladeira.
Ainda tem.
E ela não vai limpar.
(sem título)
Pai e mãe,
ouro de mina,ouro de garimpo
vê o que fica de precioso na bateia
e o resto joga fora, rio abaixo.
E as outras pedrinhas
os cascalhos que estão à beira d’água
vira do outro lado.
Quem sabe se aproveita alguma coisa
neste processo constante de contrários
de educação continuada pelo avesso.