Deveriam ser, neste 28 de julho de 2016, servidas 85 dessas taças cheias com os néctares que os deuses antigos bebiam, fosse nas selvas brasileiras ou mexicanas, nas montanhas gregas ou nos templos védicos. Tantas quanto os anos que Idibal Almeida Pivetta cumpre hoje, pois seu heterônimo mais conhecido, César Vieira, deve estar fazendo uns cinquenta, se calcularmos seu nascimento junto com o do Teatro Popular União e Olho Vivo. Isso porque Id, segundo o site É tudo Teatro, declarou, em fevereiro passado
“César Vieira” foi oficializado como nome de guerra quando no início da repressão militar os textos teatrais, contos e artigos, escritos com meu nome real, Idibal Pivetta, foram sumariamente proibidos, sem qualquer leitura ou análise, pelo simples fato de seu autor ser advogado de “perigosos terroristas”.[i]
Mas, fato é que meu personagem de hoje aparenta a idade de seu heterônimo, qualquer que tenha sido o tempo vivido pelos dois. Já deve alimentar-se, faz tempo, com a ambrosia dos gregos ou o cacau dos aztecas, ingeridos por meio da paixão pelo teatro e pela justiça social, temperados com o vigor de jovens e veteranos que compõem o TUOV, o Samba do Bule e, agora, o Centro Cultural deles nascido.
Conheço-os desde 1967, quando Cesar se inscreveu no I Seminário de Dramaturgia Carioca, criação de Luiza Barreto Leite, de cuja equipe operacional eu fazia parte (e também, como crítico teatral, do Júri final). Ali nasceu minha admiração por ele, que se estenderia nos próximos anos a Idibal Pivetta.
O primeiro impacto veio com a leitura de Um uísque para o Rei Saul, sua peça de estreia, que concorria ao Seminário. Ganhou a Menção Honrosa de peça dramática. Era difícil um monólogo ganhar o prêmio principal, subvenção do Governo Estadual para a montagem do espetáculo, provocaria uma gritaria danada financiar uma única atriz quando as verbas eram tão poucas e tantos os atores desocupados. Mas Xadrez Especial, de Alfredo Gherard, venceu no desempate e nunca foi montada. A Censura Policial não permitiu que subisse ao palco, três anos depois do golpe, uma peça que falava das condições das prisões e da resistência à Ditadura.
Com o lançamento em São Paulo da brochura contendo Coríntians, meu amor, escrito originalmente como roteiro cinematográfico, e a leitura no Rio de O Evangelho segundo Zebedeu”, quando o Teatro de Arena da Guanabara, no Largo da Carioca, foi atacado a tiros, essa admiração só fez aumentar. À época, publiquei uma nota em Última Hora, jornal do qual era crítico teatral, chamando que Cesar Vieira de o mais importante autor nacional do momento, pois seus argumentos tinham que ser combatidos a tiro. Curiosamente, Plínio Marcos ficou possesso. Em uma estreia na Maison de France gritou para mim “Vá ver quando as máquinas param!”. Não entendeu o que eu quis dizer e não me deixou explicar. Pena.
A admiração pelo autor e amigo nunca ofuscou minha objetividade. Em 1969, em São Paulo, Cesar me convidou para assistir aos primeiros ensaios de Zebedeu no Cetro Acadêmico XI de Agosto. Pediu-me que dissesse alguma coisa aos atores. O diretor Silney Siqueira havia se acidentado, ficou um tempo em casa com costelas quebradas, e o autor tinha receio que isso desestimulasse o grupo. Concordei, mas aleguei que estava numa situação ruim, acabara de me separar e mudara para São Paulo para ver no que ia dar. Não queria divulgar que estava por lá. Combinamos que eu ia usar o nome de Miguel e que, para não levantar desconfianças, me apresentaria como amigo de Luiz Alberto Sanz, o crítico de Última Hora. Leria para eles o texto que, supostamente, Sanz tinha publicado no jornal sobre a peça. Este muita gente conhece, pois foi incluído nas várias edições de Em busca do Teatro Popular”, ora assinado apenas por mim, ora assinado por minha mãe, Luiza Barreto Leite (no programa da primeira montagem, quando eu estava preso) e, finalmente, pelos dois.
Ressalto particularmente estas três peças porque exerceram grande influência sobre o intelectual e o homem em que estava me transformando, às vésperas da maturidade. Há um trecho de Zebedeu (parte das cenas 5 e 6 do 2º ato)sobre o qual nunca escrevi publicamente, mas que é para mim tão importante quanto o monólogo de Mariana Pineda, de Lorca. Ambos me alumbraram e fizeram amar ainda mais o Teatro.
As tropas federais atacam Belo Monte, na batalha final da Guerra de Canudos (o correspondente Euclides da Cunha a reporta magnificamente, para quem gosta de fatos frios, leiam seus telegramas). Lhes fazem frente Pajeú, o negro comandante de guerrilhas e cantador (meu personagem preferido), Manoel Quadrado, o comandante militar das forças de Conselheiro, e João Abade, discípulo e valoroso combatente, acompanhados dos romeiros que ainda sobrevivem ao massacre:
TIROS, BARULHO DE COMBATE.
OFICIAL — Infantaria, avançar. Viva Floriano, pela direita, pela Pátria. Ocupem o morro. Cavalaria, carga. Viva a República.
ENTRAM MAIS SOLDADOS. CERCAM OS JAGUNÇOS.
OFICIAL — Êh, , jagunços, vocês estão perdidos. O arraial está cercado.
PONTO — … O exército já…
OFICIAL — O exército já tomou a rua da professora…. as casas vermelhas caíram todas… Se entreguem…
PAJEÚ— Ó, seu majó, deixa de lambuja…
OFICIAL — Garanto a vida de todos. Se entreguem. É o meu ultimatum. Vocês não têm mais comida. Se entreguem.
Manoel QUADRADO — Aqui ninguém come urtimatu. Tem passoca de sobra…
ABADE — Larga a falação, inselência, aproveita o minuto pra se abancá pro outro lugá. Fogo nele, irmãos. Viva o Bom Jesus!
RECRUDESCE O COMBATE. OS JAGUNÇOS SAEM DE SUAS COVA-TRINCHEIRAS E RECUAM SEMPRE LUTANDO, O OFICIAL ATIRA EM PAJEÚ. MANOEL QUADRADO SALTA À FRENTE E RECEBE NO PEITO A BALA A ELE ENDEREÇADA. QUADRADO CAI. MORRE. PAJEÚ, AINDA ATIRANDO, AJOELHA-SE, AMPARA O CORPO DE MANOEL QUADRADO.
MÚSICA
Ao vê-lo que assim jazia, Sebastião solta um brado
Ai de mim, até que extremo, aqui me vejo chegado;
do aceitar com tua morte a vida que já desamo,
Mas espera, amigo, espera, não será por mais de ano.
Que o rei que sabe morrer, morre ao pé do seu vassalo.
Isto dizendo com mágoa, dum salto monta o cavalo,
Com fúria se torna aos mouros, onde o combate é mais bravo.
Busca morrer, dando mortos, busca a morte, Sebastião;
É agora a hora, esta morte é salvação![ii]
PAJEÚ atira com Raiva; É ATINGIDO, CAI. MORRE. ABADE E DOIS JAGUNÇOS ARRASTAM SEU CORPO. SOLDADOS OCUPAM AS TRINCHEIRAS DOS JAGUNÇOS. LUZ EM RESISTÊNCIA. SILÊNCIO. FLASH. SILHUETA DO ABADE E DOIS JAGUNÇOS CONTRA A LUZ DAS FOGUEIRAS, SAINDO LENTAMENTE, CARREGANDO O CORPO DE PAJEÚ.
MÚSICA
Me corte, que eu nasço sempre
Sou que nem soca do cana…
Mo cortem que eu nasço sempre
Sou que nem soca do cana…
CENA 6
ENTERRO DE PAJEÚ
PRIMEIROS ALBORES DA ALVORADA, ABADE E JAGUNÇOS CARREGAM NUMA REDE O CORPO DE PAJEÚ. CAMINHAM DEVAGAR. NO OUTRO LADO DO PICADEIRO ENTRA O CONSELHEIRO COM BEATINHO, A MORENA DE PAJEÚ, A VELHA TIA BENTA E ROMEIROS. ENCONTRAM-SE NO MEIO DO PICADEIRO, O CONSELHEIRO AJOELHA-SE AO LADO DO CORPO DE PAJEÚ. SOFRE PROFUNDAMENTE. O CONSELHEIRO LEVANTA-SE. SOBE NUMA ELEVAÇÃO, VÊ-SE SÓ A SUA SILHUETA MARCADA EM LUZ. ALGUNS JAGUNÇOS AJOELHAM-SE.
CONSELHEIRO (música)
Irmão Pajeú, não sei do que vosmecê morreria;
uns me alertaram que foi de bala, outros que não seria;
Das coisas que vosmecê gostava, não gosta mais
cavalo galopeiro, lamparina de gás,
falar franco na frente, nunca negacear por trás;
da morena de olho grande e lábio fino
que está; aqui no fim do sou destino,
de ajudá os pequeninos,
da querença de não ter forte pra bater no fraco,
da vida vivida sem alarma de sino
Essas coisas, irmão Pajeú, eu garanto, vão ter continuação.
MÚSICA
Me cortem que eu nasço sempre
sou que nem soca do cana…
Três anos depois do Seminário, Cesar se transformou do dramaturgo brasileiro, que eu considerava o melhor dentre os vivos, em meu advogado e de minha companheira Maria Odila. Deixamos de ver-nos em debates, ensaios, salas de espetáculo para encontrar-nos nos bastidores do Presídio Tiradentes, onde eu estava preso.
Antônio Cândido e Boal já deixaram clara a indissociabilidade entre o político, o jurista e o artista em Cesar/Idibal. Ele é uma única coisa, um ser humano muito especial. Sobre seus feitos, há relatos em muitos sites e em monografias, dissertações e teses acadêmicas. Recebeu incontáveis prêmios, incentivou e fomentou inúmeros grupos livres de artes cênicas por estas e outras terras. Assombrou, com o TUOV, as plateias de Nancy, Wroclav e Havana, entre outros festivais. Não vou me estender sobre isso.
Quero reproduzir aqui a mensagem que lhe enviei quando, em março de 2015, recebeu o Prêmio Shell por seu trabalho com o TUOV. Palavras sinceras e verdadeiras precisam ser repetidas, muitas vezes. Por que não citar a mim mesmo para lembrar quem é fundamental na nossas vidas?
09 de março de 2015
Querido irmão e companheiro César/Idibal Vieira/Pivetta
Fiquei me perguntando o que te dizer, nesta ocasião, que ainda não tenha sido dito de melhor maneira por gente melhor que eu. Minha mãe, Luiza Barreto Leite, que te amava como seu filho mais velho, destacou, ainda no começo da tua carreira, a absoluta lucidez que te caracteriza, a de alguém que sabe o que faz e porque faz, que escreve o que quer e quando quer, cujas palavras e atitudes são fruto de uma tomada de consciência, adquirida em pesquisa real e profunda. Quem a conheceu sabe que a condescendência jamais foi uma das suas marcas. Dizia a verdade, pura e simplesmente.
Ela e eu te conhecemos em 1967. Já transcorreram 48 anos. Nesse tempo, tua principal obra, o TUOV, recebeu jovens artistas de muitas gerações, consolidando-se como teatro de criação coletiva, difusor da cultura e da História brasileiras, gerando e influenciando incontáveis grupos e iniciativas culturais por todo o país. Como um caleidoscópio, transformou-se sem perder a essência, sempre em movimento.
O prêmio que vais receber, mais um, contempla o reconhecimento de tua obra como artista e defensor do Teatro Brasileiro por parte das elites cultural e econômica da nossa sociedade. Mas é impossível separar o que é uno, desmembrar o homem imprescindível definido por Bertold Brecht, aquele que luta toda vida e não apenas um dia ou anos. Tu, César/Idibal, transformas o mundo caminhando e falando em teatros, tribunais, salas de aula, escrevendo peças, ensaios, romances, poesias. Deixas rastros e discípulos por onde passas e tens como recompensa as risadas, aplausos e comentários do público de trabalhadores que se reconhecem nos teus personagens ou palavras.
Este homem jamais parou de lutar por pão, liberdade, justiça, igualdade e paz, nem quando a Ditadura o mandou para a prisão. És sábio, criativo, culto e generoso.
Eu gostaria de ser como tu.
Luiz Alberto Sanz
Feliz Aniversário, Idibal Almeida Pivetta/Cesar Vieira. Que possas ainda nos oferecer os poderosos frutos de tua generosidade intelectual e artística, da beleza do teu pensamento e dos teus gestos.
Saudações Libertárias
[i] [i](http://www.etudoteatro.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=62
[ii] Trecho do Romance de Alcácer Kibir do cancioneiro popular
LUIZ ALBERTO SANZ (LUIZ ALBERTO BARRETO LEITE SANZ)
Pesquisador independente em Educação, Comunicação Social e Artes do Espetáculo. Professor Titular aposentado da Universidade Federal Fluminense. Foi coordenador editorial da revista libertária “letra livre”, é colaborador da “Revista da Educação Pública” (eletrônica) da Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia do Estado do Rio de Janeiro e membro fundador da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE). Foi, em sua vida profissional, jornalista, cineasta, educador, diretor de espetáculos, técnico cinematográfico e estivador. Exerceu suas funções em Brasil, Chile, Suécia e República da Guiné (nesta, como consultor da UNESCO na área de Comunicação em Matéria de Educação). No Jornalismo, passou por quase todas as funções, mas destacou-se sobretudo como critico teatral (Jornal do Commercio – RJ e Última Hora) e cinematográfico (Última Hora e Rádio MEC), repórter e comentarista cultural e político (Letra Livre, Revista da Educação Pública, Jorna1 de Brasília e Rádio MEC). Na vida sindical, foi Secretário- geral e Presidente do Sindicato de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diverão do Estado do Rio de Janeiro, na gestão 1981/1984 e, como representante do SATEDERJ, membro da Executiva lntersindical do Rio de Janeiro (1981/1984) e da Executiva do Conselho Nacional das Classes Trabalhadoras – CONCLAT (1983-1984). Como administrador cultural, foi Diretor do Centro Nacional de Rádio Educativo Roquette- Pinto/Rádios MEC (1994); Superintendente Cultural da Embrafilme (1983/1984); membro do Conselho Diretor (1977-1978) e Secretário de Informação (1978-1979) de FilmCentrum (cooperativa de cineastas independentes e animadores cinematográficos), Suécia.
OBRAS PRINCIPAIS / LIVROS: “Procedimentos metodológicos: Fazendo caminhos”. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2003; “Dramaturgia da Informação Radiofônica”. Rio de Janeiro: Editora Gama Filho, 1999; FILMES: “Soldado de Deus”, de Sergio Sanz. (Pesquisador e co-roteirista). Rio de Janeiro: J. Sanz, 2004. “Carnaval: Tradição, beleza e trabalho” (criador e co-roteirista, em parceria com Valéria Campelo, da série de cinco documentários). Rio de Janeiro: Senac Nacional, 1999. “No es hora de llorar/Não é hora de chorar” (parceria com Pedro Chaskel). Santiago do Chile: Universidade do Chile, 1971. [Premiado com a Pomba de Ouro no Festival de Leipzig de 1971; “Kommunicerande karl/Vasos comunicantes” (parceria com Lars Säfström). Estocolmo: Instituto de Cinema da Suécia, 1981. [Premiado com a Menção Honrosa no Festival de Leipzig de 1983] ESPETÁCULOS: “O Amor e seus duplos” (orientador e roteirista). Rio: Cia. Helenita Sá Earp/UFRJ, 2001; “Aline, Luli e Lucinha” (Diretor). Rio de Janeiro: Funarte, l981; “Filo porque qui-lo”, de Aldir Blanc, Gugu Olimecha, Maurício Tapajós e Fátima Valença (Diretor). Rio de Janeiro: Saci Produções, 1971. RADIO: “Tião Parada, o Rei da estrada” (co-criação do projeto, em parceria com Luciana Medeiros e Rosa Amanda Strausz da série dramática infantil e roteirização de alguns). Rio de Janeiro: IBASE/Rádio MEC, 1996. “Verso e Reverso – 2ª fase” (Produção e Criação da Série de 12 programas, e roteirização de dez). Rio de Janeiro: Rádio MEC/Educar, 1990.