Uma crônica de Roger Baigorra Machado.
Quando Funes, num certo dia, abriu os olhos e percebeu que a queda e toda a dor não eram um sonho, mas uma memória real e que suas pernas haviam realmente perdido os movimentos, ele sequer ligou para isso.
Irineo Funes, esse era o seu nome. Disseram os gregos que Irineo, versão feminina de Irina, tratar-se-ia (acabei de me sentir um Michel Temer) daquele que é um “amante da paz”. Funes nasceu em 1868, assim como outros tantos milhares daquele ano e teve uma vida relativamente normal. Destacou-se no imaginário da sua pequena cidade por algumas peculiaridades, primeiro, por não se dar com ninguém, segundo, por saber as horas com exatidão. Nem amigos e nem relógios, essas as suas duas grandes características, assim era Irineo Funes.
Funes morou aqui pelas bandas do Pampa, meio que perto de Uruguaiana, do outro lado da fronteira, ali no Uruguai. Nasceu e viveu em Fray Bantos, cidade que fica uns 450 km de Uruguaiana, logo ali, depois da Barra do Quaraí, passando por Arapey e Dayman. Na Fronteira, 450 quilômetros é logo ali.
Quando ainda era adolescente, Funes sofreu um trauma terrível. Contavam em Fray Bantos que Irineo Funes adorava cavalgar, que certo dia ele montava um redomão e que de repente foi derrubado pelo animal, talvez um escorregão, um susto, não há certezas para além da queda. Um tombo terrível que mudou a vida de Funes para sempre.
Funes nunca mais pode montar novamente. Depois da queda, ficou imóvel, calado, preso no silêncio de uma cama por dias. Irineo agora era um jovem paraplégico. O curioso é que aos dezenove anos isso parou de importar. Quando Funes, num certo dia, abriu os olhos e percebeu que a queda e toda a dor não eram um sonho, mas uma memória real e que suas pernas haviam realmente perdido os movimentos, ele sequer ligou para isso.
As pernas imóveis até que eram um preço irrisório diante do que lhe acontecera: Funes havia acordado com um dom único, a habilidade do não esquecimento. Sua memória se tornou tão prodigiosa que ele era capaz de coisas que nenhum ser humano era capaz. Funes aprendeu latim em uma semana. Ele sabia de cór trechos inteiros de obras clássicas que havia lido apenas uma vez. Memorizava livros e aprendia novos idiomas de uma noite à outra, enquanto fumava seu palheiro, no quarto isolado do fundo das casas.
Funes lia compulsivamente, imóvel na sombra da parreira. Seu cérebro, compulsoriamente, girava pelo mundo.
Enquanto que uma pessoa qualquer via numa mesa não mais do que três taças, Funes via e memorizava todos os cachos e brotos da parreira que estava sobre a mesa, a posição das sombras de cada taça em cada diferente hora do dia. Sua capacidade de memorizar era tão incrível que ele era capaz de lembrar da formação das nuvens no céu de um dia qualquer do ano que passou.
De alguma forma inexplicável, a queda do cavalo liberou em seu cérebro uma capacidade incrível de memorizar coisas e reter informações de forma que nenhum outro ser humano já o fizera.
Por vezes, apenas por exercício de passa tempo, Funes entrava no turbilhão da suas memórias e reconstruia um dia inteiro, lembrando cada detalhe de todas as coisas que haviam acontecido, as folhas que haviam brotado, a quantidade de respirações que deu, o número exato de ondas que cada remada de um pescador fez no Rio Negro. Ele via tudo ali, da sua janela. “Funes não apenas recordava cada folha de cada árvore de cada monte, mas também cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado.”
Funes conseguia perceber os avanços tranquilos da corrupção da sua própria existência de forma imediata, a sua fatiga, o aumento das cáries, os milímetros do crescimento dos cabelos e suas mudanças de cores, seu semblante em cada diferente instante. E toda vez que ele se via no espelho, seu próprio rosto era sempre um estranhamento, um choque. Ele, assim como o rio diante da sua janela, nunca eram o mesmo de antes, a diferença é que o rio se movia. Com o tempo, passou a ter dificuldades para dormir. As memórias que acumulava eram tantas e cada vez mais complexas e interligadas que sua mente não conseguia se livrar delas. Sem esforço, já havia aprendido inglês, francês, português e o latim, mas não conversava com mais ninguém em idioma algum. Preferia o silêncio das memórias. Lembrar de tudo, não esquecer de nada foi o grande tombo. Funes morreu em 1886, aos dezenove anos de problemas pulmonares.
“Irineo Funes, o memorioso” não é uma história real, trata-se de um conto de Jorge Luis Borges. É daqueles textos que nos fazem pensar um pouco mais abaixo da margem do rio. Pensar sobre a importância das coisas que nos fazem mais ou menos humanos. Sobre tudo, é um texto sobre a importância do esquecimento na vida humana.
Funes, por sempre lembrar, não conseguia parar para esquecer e respirar, para sonhar, ou rir, ou chorar, ou parar e simplesmente pensar em nada. A lembrança de tudo era o que retirava diariamente a sua paz, num movimento contínuo e em constante edificação no presente, o excesso de memórias sobre todas as coisas foi fazendo com que Funes se desumanizasse rapidamente.
Funes foi deixando de ser um garoto de 19 anos que andava em redomões para se transformar em uma caricatura triste de si mesmo, um poço de conhecimentos buscando a paz no silêncio do rio. O mal estar diante da vida e das memórias era tanto que ele foi desejando estar lá, no fundo do Rio Negro, lá, onde ele se imaginava “mexido e anulado pela corrente”.
Esquecer é o que nos faz humanos. A memória e o esquecimento não são opositores, são complementares, ambos são parte de uma mesma correnteza, um mesmo mundo.
Um precisa do outro para que possamos aguentar o tranco. Acordar todas as manhãs. Tomar café. Ir trabalhar. Rir. Procurar quem amamos. Sentir saudades. Reencontrar quem esquecemos. Esquecer, talvez seja o mais importante.
O ano de 2021 é um ano que vamos lembrar para sempre, mas não sejamos como Irineo Funes. Não vamos deixar que as lembranças desse período tomem conta das nossas memórias, ao ponto de nos retirar um pouco da nossa humanidade. O ódio, a raiva, o rancor, todos irmãos obedientes da memória.
Somos constantemente doutrinados ao não esquecimento, decorar conteúdos, memorizar fórmulas, repetir e repetir e repetir. Se fizermos isso com relação a 2021, enlouqueceremos. As memórias deste ano são terríveis. Destrutivas. Arrebatadoras. Este ano tem que ser como uma memória de infância, que de tão traumática, o cérebro bloqueia. Ela vai seguir nos afetando para sempre, mas não tomará conta do restante da nossa vida. Ao contrário de Funes, podemos tentar escolher aquilo que vamos memorizar e aquilo que precisamos tentar esquecer. Em 2021, famílias foram destruídas, amizades foram desfeitas, a miséria, a fome, o desespero, tudo num turbilhão desumanizador que nos circunda sem dó. Conheço famílias que não poderão esquecer esse ano, jamais. Tenho conhecidos que terminaram amizades em função da polarização e do ódio político que nos invade as casas diariamente. Algumas coisas, não podemos esquecer nunca, outras, precisamos, agora.
Borges, com perfeição, escreveu ao final do conto que “Pensar é esquecer as diferenças”, às vezes eu acho que é exatamente disso que precisamos nestes tempos tão polarizados. Esquecer nossas diferenças. Pensar nas coisas que nos fazem iguais em detrimento do que nos distancia. Pensar nas coisas que nos aproximam é um desafio salutar para vivermos num país que foi fracionado por mentiras e politicagens. Eu sei que o que peço é difícil.
O ano de 2021 estará para sempre tatuado nos nossos olhos, no entanto, o nosso olhar deve seguir focando na vida que segue junto da correnteza. Precisamos esquecer um pouco para poder seguir de novo. Eu sei que não será fácil. Esquecer não é fácil. Tem coisas que não tem como tirar da memória. Mas é que lembrar de mais pode fazer mal. O conto de Jorge Luis Borges serve para lembrarmos que é preciso também esquecer, do contrário, será melhor nos imaginarmos no fundo do rio, anulados pela correnteza das memórias e dos rancores.