“A coisa tá assim porque os professores não botam limites nessas crianças”, ouvi uma vez, parado na esquina da escola José Francisco, enquanto esperava pelo sempre atrasado Pastoril.
Naquela época, em Uruguaiana, eu pegava o Pastoril até o terminal no centro e de lá pegava outro ônibus até a Unipampa, lugar onde trabalho até hoje. Esperar pela chegada do Pastoril era envelhecedor. As horas pareciam dias. Esperar ônibus em Uruguaiana não é fácil.
Teve uma vez que eu peguei um ônibus da linha Cohab II e sentei na última poltrona, olhei para o encosto do banco da frente, haviam diversas coisas escritas com corretor. Corações, juras de amor, ameaças e versos dos Racionais. Por curiosidade, comecei a ler e de repente, eis que eu encontro as iniciais do meu nome. Eu tinha escrito, talvez, lá pelos idos de 1993, junto havia as iniciais de outros cinco colegas de escola que pegavam o mesmo ônibus. O mesmo ônibus. O mesmo. Era ele. Ainda rodando pelas ruas de Uruguaiana em 2018, vinte cinco anos depois. A frota de ônibus que andava por Uruguaiana carregava um pedaço da história da cidade, pois eram tão velhos quanto ela. A população se acostumou com os limites impostos pelo péssimo transporte urbano, ainda hoje acha normal esperar horas, ter de ir caminhando para o trabalho e quando tem de voltar, não ter ônibus algum.
“A coisa tá assim porque os professores não botam limites nessas crianças”, ecoou novamente, repetida em tom profético por uma voz femininamente grave. E eu lá, na parada de ônibus, num fio de sombra, pensando que tinha que acabar minha dissertação de mestrado e chegar antes das 14h no campus da universidade. Essa declaração, sobre professores e limites, e a cena da moldura humana ao redor dela, sempre ficou nas minhas lembranças, assim como, ficou também a resposta que eu não dei.
As duas mulheres, creio que eram mães de alunos da escola, estavam paradas na esquina, o sol a pino, cada qual com seu filho pela mão. Chegaram um pouco antes, uma delas carregava uma menina no colo, pareciam aguardar o sinal da escola. Culpavam os professores com a mesma naturalidade com que dividiam um cigarro.
Eu, parado na parada do ônibus, na pouca sombra, envelhecendo e ouvindo.
As crianças deviam ter uns dez anos, no máximo. Ambas tinham em comum os velhos “chinelos de dedo”, desbotados e finos, o curioso é que os dois usavam chinelos que estavam reparados da mesma forma, com pregos na alça que prende a sola ao pé. Lembro disso, pois os pés não paravam de chutar um masso vazio de cigarros que virou bola entre as duas infâncias. Além disso, em comum tinham também as roupas gastas e os cadernos guardados num saco de açúcar cristal.
Quando eu era criança, lembro de ter usado algumas vezes o chinelo com um prego na sola, e também, um saco de açúcar União como pasta. O saco de cinco quilos era feito de um plástico resistente, na minha rua quase todo mundo usava. Era a moda da pobreza. Esse negócio de mochila com rodinhas, estojos, lápis de cor com cinquenta cores diferentes, isso não cabia na economia da nossa realidade.
O bom, sempre há um lado assim, era que em dia de chuva os cadernos não molhavam, é que o saco de açúcar União era uma cápsula impermeabilizante, além disso, ele não era branco, era transparente, assim, dava para saber tudo que tinha dentro sem precisar abrir um zíper. Uma olhada rápida e já se sabia se algo estava faltando. Como o que tínhamos, geralmente, era um caderno, um lápis e uma borracha, era fácil contabilizar os danos.
E o ruim, também tem um lado assim, é que havia sempre a possibilidade de se derrubar algo pela parte do saco que tinha a abertura. A estratégia era simples, sempre dobrar o plástico e segurar com a mão, apertando contra o caderno e este contra o corpo.
E na parada do tempo e do ônibus, as crianças chutavam o masso de cigarros de um lado para o outro, uma partida imaginária e limitada apenas pela diversão. Até que o inevitável acontece, um dos cadernos cai pela parte aberta do saco de açúcar, e com ele, a borracha, lápis de cor e um estojo amarelo. Eles não sabiam da “estratégia”. E os limites já estavam postos, expostos ali, no sol da esquina, caindo, um a um, pela brecha do saco de açúcar.
Em 2008 eu não imaginava ver os anos 80 e 90 parados numa esquina novamente, a minha infância repetida de novo diante do meu Eu adulto. Duas crianças com cadernos num saco de açúcar e duas mães, em seus limites maternos, querendo que professores impusessem novos limites aos próprios filhos. “Sim! Os professores precisam colocar limites”, concordava a outra mãe. Nunca esquecerei.
Às vezes eu acho que deveria ter dito algo, às vezes acho que não. A resposta que eu não dei, talvez, não tivesse efeito algum ou, quem sabe, tivesse retirado redesenhado as linhas limítrofes daquela esquina. traços que se impunham como uma fronteira imaginada entre a pobreza e a esperança de sair dela.
Eu deveria ter dito que professores não devem “colocar limite” algum para um estudante, muito pelo contrário, eles devem ser destruidores de limites. Os professores devem quebrar as barreiras que se mostram limitantes, devem deixar que das sombras brotem os sonhos, nítidos e fortes como bússolas.
Deveria ter afirmado com o dedo em riste que o trabalho de um professor é derrubar limites, ajudar a criança à transcender fronteiras que antes pareciam intransponíveis. Um professor que impõe limites é um professor limitado.
Eu tinha de ter falado com a voz doce e calma, que a maioria das crianças chega na escola rodeada por limites:
Limitadas pela baixa educação dos pais.
Limitadas pela pobreza.
Limitadas por qualquer tipo de consumo de bens educacionais.
Limitadas pela necessidade do trabalho num mundo ainda infantil, em se ter de cuidar dos irmãos, da casa e cuidar até dos próprios pais.
Limitadas pela falta de acesso a informação.
Limitadas pela inexistência do contato com os livros.
Limitadas pela exclusão digital.
Limitadas por uma infância sem segurança alimentar.
Limitadas pela naturalização da violência.
Limitadas pela ausência do poder público.
Limitadas por chinelos de dedos e sacos de açúcar.
“Limites” é exatamente o que não falta para a maioria das crianças e adolescentes brasileiros.
Indivíduos que migram pela pobreza em chinelos remendados e que diariamente chegam em nossas escolas, muitos, não buscando só o conhecimento, mas também a comida, o abrigo, o cuidado. Deveria ter dito, mas não disse nada. O ônibus veio, eu subi. As crianças ficaram ali, jogando bola numa carteira de cigarros, com os chinelos remendados e com os sacos de açúcar no chão.
E eu me peguei lembrando desse dia assistindo reportagens das Olimpíadas, duas histórias sobre atletas brasileiros que ganharam medalhas no Surf e no Skate, suas infâncias cheias de limites econômicos foram contadas nos jornais, emocionantes relatos, pais emocionados, como que se devêssemos nos orgulhar do sucesso deles e esquecer que eles são o resultado da nossa incapacidade. Eles são o acaso enquanto deveriam ser a regra. Ainda somos incapazes de rasgar os limites que cercam nossas crianças, seja no esporte, seja na educação, seja na segurança alimentar, nos direitos mais básicos. O Estado brasileiro ainda é limitado em suas políticas públicas. Até houveram avanços, novas universidades e institutos federais surgiram, assim como as políticas voltadas para as Ações Afirmativas, mas os retrocessos são em maior número nos últimos tempos.
Em nosso país, ainda há quem se coloque contra as políticas de inclusão social, contra as Ações Afirmativas e seus sistemas de cotas, contra a presença de pessoas pobres em espaços sociais antes monopolizados pelos que se acham ricos.
Em 2001, quando entrei na UFSM, as pessoas que cruzavam por mim nos corredores do CCSH eram majoritariamente brancas e sem nenhum tipo de deficiência. Hoje, pelos corredores das nossas universidades federais, caminham indígenas, negros, pessoas pobres, deficientes, todos, juntos, caminhando no mesmo direito de ser brasileiro e ter o direito de estudar.
Hoje, se ainda vivas, aquelas duas crianças devem de estar com mais de seus vinte anos de América do Sul. Torço muito para que algum professor da escola José Francisco tenha rasgado os limites daqueles sacos de açúcar. Rasgado com fúria, destruído cada limite que foi imposto pelos governos, pelo entorno, pela economia, pela exclusão, pela pobreza, pela fome, pelos pés descalços. O professor, um destruidor de limites.
Às vezes, gosto de imaginar que passo de carro por eles, nalguma parada de ônibus da linha que vai para a Unipampa, ou que cruzo por eles em um corredor da universidade, sorrindo enquanto vão para algum laboratório, os cadernos guardados numa mochila. Nos pés sem chinelos, passos firmes, rasgando o tempo, numa caminhada para o futuro. Um futuro onde os únicos limites que eles ainda possuem são os seus sonhos e onde os sacos de açúcar, são apenas sacos de açúcar.
Roger Baigorra Machado
é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.