Alexandre Samis[1]
Sobre o drama histórico, “Os Anarquistas” (Les Anarchistes), do cineasta francês Elie Wajeman, filme de abertura da Semana da Crítica no Festival de Cannes 2015, cabem algumas breves reflexões. Para muito além do desempenho dos atores envolvidos, com destaque para Adèle Exarchopoulos, a película se credencia como obra de entretenimento, não mais que isso.
Julgo ainda que essa breve apreciação histórica do período precisa, para se entender pertinente, do complemento fornecido pela inestimável análise, agregada a esse debate, por Luiz Alberto Sanz, no seu artigo: “Os Anarquistas, uma escolha política”.
Aspectos históricos, ou o que ficou por ser dito.
Após a terrível repressão que se segue à Comuna de Paris (1871), os anarquistas na Europa, privados dos espaços públicos de atuação (sindicatos), traçam uma nova tática de ação. No Congresso Anarquista de 1881, realizado em Londres, tem início uma forma nova de ação direta, uma que pretendia indicar os caminhos para a radicalização e precipitação do processo revolucionário. Tais deliberações inauguram a corrente insurrecionalista que, através de atos espetaculares e audaciosos, pretendia despertar o proletariado de seu torpor e acomodação, para a necessária obra da revolução social. É a formulação teórica da chamada “propaganda pelo fato”.
Contemporâneo do fenômeno niilista russo, o insurrecionalismo compartilha com ele algumas de suas práticas. Ambos adotam a lógica conspirativa e os atentados contra as autoridades identificadas com o Estado e o capital. Reúnem-se em células secretas, ou quase isso, dentro das quais traçam planos para a derrubada violenta da ordem estabelecida.
Com o retorno da liberdade sindical, em fins da década de 1880, e o advento do sindicalismo revolucionário, de resto, um projeto iniciado na Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1876). A maioria dos anarquistas entende que as ações em colaboração com as massas, nas organizações operárias, deveriam ser priorizadas. Uma orientação que terminaria por marginalizar a corrente insurrecionalista, ainda que esta tenha permanecido presente, mesmo que residualmente, em certas partes do continente.
Além de minoritária, a fração insurrecionalista, apresentar-se-ia também cindida. Dentro dela terminaria por surgir uma tendência de forte conteúdo individualista, por vezes organizada em células com pouquíssimos militantes; ou mesmo se fazendo representar por um único indivíduo resoluto e determinado, disposto a tudo para pôr fim ao capitalismo. Esta ultima tendência será a principal responsável pela criação da legenda do “banditismo trágico”, que vai ganhar as manchetes dos jornais de grande circulação. São desse extrato figuras como Auguste Valliant, Ravachol e Émile Henry, que, através do punhal e da dinamite, fazem valer a “propaganda pelo fato”. Foram todos, inclusive, condenados à morte e executados na guilhotina antes do fim dos anos de 1890.
Partidário da mesma estratégia, entrando pelo século XX, entre 1911 e 1913, o “Bando Bonnot” expropriava bancos e realizava ações armadas. Entendia que era fundamental fazer cair o sistema através de golpes em sequência contra os alicerces econômicos da sociedade burguesa.
Muito cético diante da persistência da tática dos expropriadores, o anarquista Malatesta, diria na ocasião que:
“Apesar de tudo isso, o meio social é tão poderoso e os temperamentos pessoais são tão diferentes que bem pode existir entre os anarquistas alguns que se tornem ladrões, como há os que se tornaram comerciantes ou industriais; mas, neste caso, uns e outros agem, assim, não por causa, mas a despeito de suas ideias anarquistas”.
Ainda na mesma perspectiva, o escritor e anarquista francês Octave Mirbeau teria dito do atentado à bomba perpetrado por Émile Henry, o seguinte:
“Um inimigo mortal da anarquia não poderia ter agido melhor do que este Émile Henry ao jogar sua inexplicável bomba no meio de pessoas anônimas e pacíficas que iam ao café para tomar um copo de cerveja antes de se dirigirem para casa”.
Cabe aqui salientar que, na mesma época dos atentados, os anarquistas adeptos da corrente de massas envidavam esforços no sentido de organizar as bases operárias em seus sindicatos. Estavam dentro das fábricas e oficinas, buscando criar uma cultura política de autonomia e liberdade, através do fomento das mais diversas formas de ação direta. É dessa época a configuração da metodologia sindicalista revolucionária, cuja fisionomia desenhava-se na defesa da neutralidade sindical, do antiparlamentarismo, do antiestatismo e do internacionalismo. Em cujo conjunto de ações é possível destacar o boicote, a sabotagem e a greve geral expropriadora.
Bastante perseguidos, os insurrecionalistas expropriadores foram objeto de estudos do médico italiano Césare Lombroso, que classificava os “criminosos natos”, através de aferições cranioméricas, por uma chamada ciência frenológica. Mesmo Ferri e Garófalo, na mesma época, sustentaram que os expropriadores sofriam de um tipo específico de hiperestasia, um suposto excesso de sensibilidade diante do sofrimento humano.
Em parte, compartilhando dessa mesma opinião, Rui Barbosa escreve, no Brasil, nessa mesma oportunidade que:
“Entre os juristas ainda não encontrou o anarquismo amigos, como tem encontrado entre os homens de letras, entre os sábios, entre cultores dos estudos positivos. Não são juristas, por exemplo, Ibsen, Réclus e Kropotkine. Não são os penalistas clássicos, não é a escola jurídica, na Itália e na França, é ‘a nova escola’, a escola da antropologia criminal, a única que se pronuncia pela irresponsabilidade em muitas das façanhas do anarquismo. Não são juristas Lombroso, Laschi, Ferrero, o Dr. Régis, todos estes escritores, que, nos últimos tempos, têm consagrado à epidemia do anarquismo, sob sua forma de sangue, estudos especiais.”
Seja como for, a legenda dos “bandidos trágicos” teria justificado a edição de leis específicas de repressão ao anarquismo, o que se estendia aos sindicalistas revolucionários, todas as vezes que tal convinha à segurança, quer da República, quer de qualquer outra forma de governo. Indistintamente serviu muito mais para a disseminação de estereótipos que para identificar os “verdadeiros inimigos” da ordem pública.
[1] Alexandre Samis, docente do Departamento de História do Colégio Pedro II, autor do livro Negras Tormentas: o federalismo e o internacionalismo na Comuna de Paris. São Paulo: Hedra, 2011.