Quando cheguei em Santa Maria pela primeira vez, minha mais forte impressão foi causada pelos morros que se elevam como guarnição e ornamento da cidade.
Chegava de Cachoeira do Sul, terra onde as coxilhas, bem mais modestas que as daqui, não fazem sombra grande nem oferecem corredor para a ventania. De primeiro, senti uma espécie de claustrofobia, que decerto emanava da nova condição de morador de apartamento e da ausência de árvores nas ruas. O verde e o ar eram abundantes só no horizonte; no centro, as vias estreitas, o mormaço e o tumulto me davam certa nostalgia da amplidão nativa. Vertigens urbanas que sofri no corpo e na alma, como um caboclo das margens do Jacuí que se extraviou pelo mundo.
Mas fui ficando, ficando, e me instalei. Entrei para a faculdade de História da UFSM, quando o curso era ministrado no Antigo Hospital Universitário. E aos poucos fui me familiarizando com as mitologias locais. Comecei a dar aula no Práxis, um cursinho pré-vestibular gratuito, onde conheci amigos e amigas para a vida toda. Vivi no quarto 75 da Casa do Estudante da Professor Braga, onde a farra foi grande, e a ressaca ainda maior. Ainda carrego o vício da insônia que adquiri na atmosfera de pouca luz e muita sombra daquele edifício úmido, em que o frio é glacial e o calor, venusiano.
Dali saí para coabitar um teatro em obras – o TUI – com um bando de amigos. Conheci o Rosário e o Itararé, e me apaixonei pela cor local do subúrbio santa-mariense. Sonhei, com esses mesmos amigos, uma outra cidade dentro da cidade, e abrimos uma casinha verde chamada Macondo, uma flecha alucinógena que cruzou a noite de Santa Maria. Morei no Mauá, de onde vi a Rio Branco dormir e acordar com os rumores do trem e a palidez das gafieiras; fui uma presença indefectível no balcão do Café Cristal, desde os tempos do bom português José; entrei para a confraria de boêmios do Bar do Pompeo; passei fins de tarde sentindo o cheiro da terebentina e ouvindo um piano fantasma no Centro de Artes e Letras; fui aos arrabaldes e vivi nas altas nuvens de Silveira Martins; parti, morei longe, jurei que não voltava. Aqui estou.
Se hoje consulto as amizades sobre o que acham da cidade, me respondem que, como eu, amam o vento norte, mas também o odeiam. Que gostam do Itaimbé, do campus em tempos de aula, da gentileza estudantil ao segurar a mochila dos passageiros que viajam de pé no ônibus, da Vila Belga, das cocadas do João, do Theatro Treze de Maio, dos trailers que vendem o melhor xis do mundo (somos superlativos), das feirinhas na praça, dos banhos de cachoeira no verão. E que detestam a intolerância provinciana e transeuntes que andam com o guarda-chuva aberto sob as marquises. Confusão de sentimentos, como canta o magro Pylla.
Santa Maria é um palimpsesto de histórias, amores, ilusões e acenos de despedida. É um lugar de passagem e impermanência, e de improváveis reencontros – e não seria assim a própria vida? De travessias que não acabam, porque estamos sempre chegando ou partindo. Pensando bem, talvez seja legítimo considerá-la a capital da saudade, sentimento comum para quem vai e para quem fica.