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 Eu também ainda estou aqui | por Jair Alan Siqueira

Vibrei como se fosse um gol de meu time de futebol quando Viola Davis citou o nome de Fernanda Torres como vencedora do Globo de Ouro de Melhor Atriz de Drama. O filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Sales, já havia me emocionado. No meu caso particular são paliativos para humilhação e perseguição que eu e alguns colegas sofremos no tempo da ditadura militar. O que eu padeci foi café pequeno diante do que sofreram outras pessoas. Mesmo assim, a dor persiste e é uma ferida que não cicatrizou.

O que eu espero é que outras obras questionem aquele tempo. Nossa passividade em não recordar quase nos levou a viver todo aquele pesadelo de novo. Ainda paira no ar essa possibilidade diante de uma democracia tão frágil e a impunidade daqueles que açambarcaram o poder nesse país impondo um regime assassino. Mesmo com a democratização, o fantasma da ditadura ainda persistia em minha vida. Eu estava marcado como um homem que disse não àquele esquema criminoso e os vilões ainda estavam soltos e com muito poder.

Bastou eu assumir como editor de A Razão para que membros do antigo regime fascista pedissem minha cabeça. Eles não acreditavam que eu poderia ser imparcial ou isento. Na minha carreira de jornalista fui demitido quatro vezes. A primeira foi na Caldas Junior. A empresa estava em crise e membros do governo deram um auxílio financeiro, mas exigiram uma “caça às bruxas”. Soltaram o passaralho e os primeiro cinco demitidos foram os jornalistas de Santa Maria, antipáticos à vista de um deputado poderoso.

Minha segunda demissão foi por ter me negado a participar de uma reunião de um político poderoso em Concórdia. Ele queria determinar as regras de atuação da rádio que eu trabalhava numa possível eleição a governador. Obviamente que a empresa alegou que esse não foi o motivo de minha demissão.

Na RBS eu fui chefe da sede de Joinville. Meus colegas me comunicaram que decidiram fazer greve. Assumi suas pretensões, embora eu percebesse um bom salário. Mas não são só patrões que são sacanas. Também temos colegas bandidos e um deles me fotografou no movimento portando um cartaz de protesto. A foto foi parar na mesa dos diretores e tive que explicar a minha participação no movimento. Algum tempo depois fui demitido. Contudo, eu havia sido um funcionário eficiente e os Sirotsky exigiram minha volta. Mas, mesmo assim, minha vida não era fácil. Estava maculado por minhas ligações ao pessoal do nosso sindicato e pelas minhas convicções políticas.

Logo no meu princípio como jornalista, tive episódios desagradáveis. Havia um general linha dura que me “convocou” algumas vezes para ir no Quartel General explicar algumas matérias ou críticas de filmes. Uma vez fui detido na sede do Dops. Houve uma greve de bancários. Eu e o fotógrafo de A Razão fomos à sede da polícia entrevistar um delegado. Eis que vimos três sindicalistas presos no pátio da delegacia. Pedi para o fotógrafo registrar. Nervoso, ele bateu uma foto que ficou fora de foco. Os policiais viram e protestaram. Mandei o fotógrafo se mandar e me postei na porta impedindo que os policiais o pegassem. Me levaram para o delegado que determinou que eu não sairia do local até que o filme fosse colocado na sua mesa. Fiquei detido numa sala onde me humilharam, pisaram meus pés e me deram alguns chutes. Nesse meio tempo, houve uma espécie de queda de braço entre o delegado e meu chefe, Luizinho de Grandi. Luizinho se negou a entregar o filme e exigiu minha liberação. No outro dia, a foto foi publicada na capa do jornal.

Tempos depois, quando era repórter especial do Diário Catarinense, fui destacado para ir a Curitiba fazer uma matéria sobre os arquivos do Dops, que haviam sido liberados ao público pelo então governador do Paraná, Roberto Requião. Depois de ver os documentos sobre a Operação Barriga Verde, pude encontrar várias pessoas que haviam sido presas e torturadas pelo regime. Me identifiquei com aquele pessoal. Durante uma semana publiquei uma ampla reportagem sobre os anos de chumbo. Vi que meu drama e minhas passagens eram coisa mínima para quem teve choques na vagina, no ânus, afogamentos, sufocamentos, pau de arara, violência sexual e outros abusos.

No meu lado particular, ainda tive um cunhado que ficou preso por 18 dias. Foi um período de incerteza na nossa família e passamos Natal e passagem de ano apreensivos: não sabíamos se o parente estava vivo ou morto. O pessoal da penitenciaria em Porto Alegre negava que ele estivesse lá, mas ele subornou um brigadiano que informou minha irmã. Graças a intervenção do então deputado emedebista, Moisés Velasques, ele foi localizado e solto.

Por tudo isso, encho os olhos de lágrimas assistindo “Ainda Estou Aqui” e me emocionei com a vitória de Fernandinha. Aquilo também é minha reposta àqueles que me perseguiram, me macularam e me fizeram mudar de cidade. Mesmo sendo funcionário público, ainda não conseguia desfazer minha imagem de contestador. Inclusive fui visto com restrição até por pessoas que se diziam de esquerda. Mesmo sendo o jornalista com melhor folha de serviços e experiência profissional, nunca convenci os meus superiores de que eu poderia ser um bom diretor. Contudo, usaram a exaustão meus talentos como jornalista.

Estamos vivendo um momento histórico. Ainda é pouco o que se faz para desmascarar os fascistas que proliferam nesse país e que sonham com a volta de um regime de força. Ainda temos uma mídia comprometida com essas pessoas e que não ousa questionar suas incompetências e más intenções. Os conservadores direitistas conseguem dominar o panorama político. Mas “Ainda Estou Aqui” já é um passo. Espero que essa trilha ainda promova muitas pegadas. O cinema revela-se uma grande saída ou entrada. Que novas obras apareçam para denunciar o monstro que nos dominou por quase três décadas. Que o judiciário deixe sua morosidade e puna os criminosos que atentam contra nossa liberdade. Urge passar a limpo esse país. A arte é uma saída para conscientizar corações e mentes. Humildemente, eu também estou aqui…

 

Foto de arquivo. Antigo Jornal A Razão.

 

 

 

 

Jair Alan Siqueira

Jornalista, escritor, ator, músico e compositor. Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Autor de “Nos Bafos de Cachaça do Meu Velho Pai”, “O Dia em que Deus Confessou Seus Pecados”, “Fratura Exposta Futebol Clube”, “A Candura Erótica da Mentirosa Ingrid Engels”, “Eu, Meus Outros Eus e Nossos Amores” e “Chuva de Estrelas” (co-autor).

 

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