Em homenagem à minha mãe Elenita Stival Freitag e ao meu pai Darci Freitag
“No descomeço era o verbo
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função do verbo, ele delira
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio”
(Manoel de Barros)
Este texto surgiu com a memória do farfalhar das folhas secas sendo pisoteadas por pombas cinzentas. Este texto nasceu por volta das seis horas da manhã, quando o céu se travestia de noite para alcançar uma nota musical qualquer desde que não fosse mais a da lua branca. Entretanto, este texto somente está sendo escrito à tarde, quase tardezinha, quando a modorra já deixou o corpo e costurar a vida em tecido verbal já brame minhas mãos trêmulas por sobre as linhas do papel.
Sinto falta. É sobre isso que escrevo.
Sinto falta de ser acordado para ir à escola…com o barulho daquelas máquinas, com o cheiro daqueles pães a estalar à saída do forno, com o ruído longínquo da voz do bispo diocesano vindo daquele rádio à pilhas já surrado do tempo (aquele mesmo comprado pelo meu pai em sua adolescência com o seu primeiro salário como padeiro). Sinto falta de escovar os dentes enquanto ouvia uns assovios bem compassados de meu pai (nunca soube a imitação de que músicas eram). Sinto falta de lavar o rosto enquanto sentia que minha mãe falava comigo com as mãos (e, hoje, dou-me conta de que eu falo muito com as mãos assim como ela). Sinto falta de alinhar meu cabelo qual moço de boa índole e temente a um Deus que me punia quase todos os dias. Sinto falta de esperar o relógio da padaria marcar 07:20 (Carine acordava antes de mim e Natiane acordava depois; íamos os três juntos ao colégio) para que eu me sentisse seguro e pudesse ir para a escola (minha mente marcara essa hora e desde então eu não podia desobedecer a esse comando; mais tarde isso teve um diagnóstico médico). Sinto falta de chegar, na escola, e alguns colegas vociferarem, sarcasticamente, que eu estava cheirando a pão (mal sabiam eles que isso não era ofensa; era uma benção).
Sinto falta. É sobre isso que escrevo.
Sinto falta de ver meu pai fazendo pães, cucas e afins e medindo todas as quantidades dos ingredientes por meio das mãos. Sinto falta de ver minha mãe, como uma pintora surrealista, cuidar de cada detalhe da fusão de cores e de sabores ao preparas tortas. Sinto falta dos movimentos de mãos e de braços que meus pais faziam ao trabalhar. Pareciam abraçar as massas como se fossem filhos seus a serem cuidados. E eram.
Meus pais, por certo, não viam o que eu via, mas as cores, os odores, os acordes, os movimentos corporais eram não apenas performances para sustentar a família. A farofa (açúcar, banha, canela) das cucas sendo cuidadosamente esmigalhada com as mãos eram poemas de Cora Coralina. O pão d’água sendo meticulosamente recoberto por uma fina camada de farinha de milho e acomodado em caixotes de madeira com panos eram poemas de Manoel de Barros.
Eu sempre soube que meus pais faziam poemas e, anos mais tarde, na graduação, para além de teorias, eu SENTIA a poesia. E sim, isso fez toda a diferença, pois eu me sentia em casa diante da análise de um poema (mesmo errando em tantas e tantas análises). Dia desses, reencontrei minha professora de Literatura Portuguesa da graduação e conversando com ela:
_Profe! Acho que não fui um excelente aluno nas suas disciplinas. Até peguei exame em uma delas.
Então, ela disse algo como (o Zolpidem da tarde e a taça de vinho da noite fizeram-me esquecer as palavras exatas que ela utilizou):
_Você foi maravilhoso. Maravilhoso, justamente, porque SENTIA a poesia. Alunos muito engessados têm dificuldade para ver o que os textos literários escondem. Você não tinha essa dificuldade.
Mal sabia ela que aprendi isso com meus pais, afinal EU SEMPRE SOUBE QUE MEUS PAIS FAZIAM POEMAS.
FELIPE FREITAG é graduado em Letras Português e respectivas literaturas (licenciatura) pela UFSM e é mestre em Estudos Linguísticos pela mesma instituição. Professor a mais de dez anos, dedica-se, também, à escrita literária. Atualmente, voltou a escrever com certas constância (o que tem sido maravilhoso para um sujeito com depressão que chegou a perder o sentido da vida…)