| Graxelos: Vítor, Grings, Petracco, Telles, Murilo e Vini. Arte sobre foto de Zé Carlos de Andrade por Diego De Grandi | |
| Por Elmo Köhn |
Ao longo da história, muitas pessoas têm procurado criar, encontrar ou imaginar O PARAÍSO TERRESTRE, um lugar onde haja paz, harmonia e que ofereça alívio para todo o esforço e a dor que atormentam a existência humana. James Hilton fantasiou essa égide no romance “Horizonte Perdido“, lançado originalmente em 1933. O oásis do escritor inglês está nas cadeias montanhosas dos Himalaias, próximo à fronteira com o Tibete, um povoado conhecido como Shangri-la. Aqui no Brasil, a obra até inspirou uma cidade homônima, Xangri-lá (com x), destino turístico localizado no Litoral Norte gaúcho. Ao lado de milenares “cidades perdidas” — como Shambhala, Atlântida e El Dorado — no mesmo sentido da alegoria utópica imaginada por Hilton, Shangri-la passou a fazer parte do léxico popular como sinônimo do paradisíaco. Na música, Aretha Franklin, The Kinks, Mark Knopfler, The Waterboys, ELO e dezenas de outros artistas e bandas, criaram temas onde esse refúgio edênico é mencionado. Nos anos 1960, um grupo feminino formado por irmãs assim se intitulou e, aqui no Brasil, Rita Lee também almejou um retiro semelhante: “Se me der na telha sou capaz de enlouquecer/ E mandar tudo pra aquele lugar/ E fugir com você pra Shangrilá“. E ainda nesse contexto, surge a lembrança de certo local em Malibu (CAL) nos anos 1970, onde The Band fez casa e gravou “Northern Lights” (1975) e “Islands” (1977), estúdio comprado pelo produtor Rick Rubin, ainda hoje utilizado por diversos artistas do nosso tempo.
Somando-se a essa mítica, ao ouvirmos Shangri-lá (com hífem e com acento, de acordo com as regras da língua portuguesa), estreia discográfica dos Graxelos, podemos afirmar que o olimpo musical sonhado pelo grupo gaúcho encontra irmandade e afluências com o folk, country rock, gospel, blues, soul e o som setentista, além de oferecer batidas de raspão na MPB, isso sem deixar de nos entregar uma identidade sul-brasileira.
NOME DA BANDA —
O nome da banda advém de uma corruptela da palavra graxaim (ou zorro [lê-se sôrro]), canídeo com hábitos crepusculares e noturnos que vive no Sul do Brasil, Paraguai, Bolívia, Argentina e Uruguai. Tolerante à perturbação humana, é comum vê-lo em áreas rurais (e até próximo aos centros urbanos), acusado por muitos de predação aos animais domésticos, sendo perseguido por essa má fama, e que, segundo alguns estudos e observações, não é verídico. De todo o modo, se de fato o animal é adepto a esse modo e vida, entre a ficção e a realidade, o grupo propaga a crença na bem-aventurança do bicho.
Grings, Petracco, Vítor, Vini, Telles e Murilo. Arte de Diego De Grandi baseada em foto de Zé Carlos de Andrade. |
AS CRENÇAS E A VIAGEM LÍRICA —
Como numa fantasia idílica, ungidos pelo espírito indômito de redenção do graxaim como símbolo de sobrevivência, os Graxelos buscam o ideário artístico em algumas das qualidades e características do zorro gris pampeano, nutrindo um desejo profundo de imersão no seu fabulário. Parte das letras do álbum encontra na natureza e na fuga dos grandes centros essa aventura bucólica e escapista. A viagem lírica do personagem — no que se refere ao conteúdo das narrativas de Márcio Grings —, traça uma espécie de jornada do herói, que, mesmo sem ter uma aparente ligação temática, produz um percurso com início, meio e fim, tomando por base a ordem das faixas e o que é narrado. Nessa busca, Shangri-lá surge como templo de reflexão e campo de força contra a ordem das coisas, concepção desenhada em canções como “Nos olhos de quem vê”, “Água límpida”, “Força superior”, “Jornais e açúcar”, “Desde que perdi a minha fé” e na faixa-título. O fracasso como domo de aprendizado para um novo recomeço versa em “Tropica, mas não cai”; a solidão, as privações e as ondulações da existência são exploradas em “Copos de plástico”; assim como o romance desencaixado é tema da valsa caipira “Naipe de metais”. Já em “O viajante”, o personagem central que gira o Sul do mundo por tantos lugares, aparentemente um espírito livre de tudo e de todos, ao final, confessa que não passa de um homem preso aos grilhões de um amor distante ou inatingível. Se fizermos o exercício de separar as letras das canções, boa parte das narrativas funcionam como poemas, denotando um propósito literário nessas criações. Confira as 10 letras de Shangri-lá AQUI
O INÍCIO DE TUDO E A FORMAÇÃO —
Alocados em extremos opostos do mapa rio-grandense, o sexteto que materializa esse trabalho reúne esforços e artistas de três cidades gaúchas: Porto Alegre, Santa Maria e Vacaria, o que demandou um esforço logístico para os encontros e ensaios. A faísca dessa reunião musical se deu inicialmente em janeiro de 2022, quando Gustavo Telles e Márcio Grings começaram a compor um tema pelo WhatsApp (Jornais e açúcar). Sete meses depois, em Porto Alegre, a dupla se juntou para finalizá-lo. De lá, partiram para Vacaria e, durante cinco dias, ora na casa de Telles, no centro da cidade, ora isolados numa propriedade na zona rural, sete novas composições foram forjadas. Depois rumaram para Santa Maria, cidade natal de Grings, onde arrebanharam Vinicius Brum, Vítor César e Felipe Quadros — banda base dos primeiros ensaios no Bairro Chácara das Flores. Em 2023, mais encontros ocorreram em Santa Maria (na casa da família Saurin), e outros dois em Porto Alegre (Estúdio Cegonha), já com a presença de Marcio Petracco e Murilo Moura. A banda também fez sua estreia ao vivo no Rock and Blues Festival, em 15 de julho de 2023, no Espaço Mainz, em Santa Maria. Assim, em cerca de dois anos, com 13 temas na pauta, 10 foram empacotados para essa estreia discográfica.
Arte de Diego De Grandi baseada em foto de Zé Carlos de Andrade. |
ENSAIOS, GRAVAÇÃO E FICHA TÉCNICA —
Ao raiar de 2024, a formação atual dos Graxelos conta com o ex-Pata de Elefante Gustavo Telles — voz, violão, bateria e voz de apoio, detentor de uma carreira solo expressiva sob a escuderia d’Os Escolhidos, além do ex-TNT e Cowboys Espirituais, atual Conjunto Bluegrass Porto-Alegrense, Marcio Petracco — pedal steel, violão Weissenborn, guitarra slide, bandolim e voz de apoio, dupla que empresta sua experiência, credibilidade e selo de qualidade ao projeto. Ainda no time está Murilo Moura — piano, teclados e vozes de apoio, requisitado e talentoso instrumentista vacariense residente na capital gaúcha; mais Vinicius Brum — voz, baixo, violão e voz de apoio e Vítor Cesar — voz, guitarra, violão e voz de apoio. Márcio Grings — harmônica — é o letrista e parceiro de composição de Telles em todas as faixas, exceto “Tropica, mas não cai”, também escrita pela dupla, mas baseada em uma demo do guitarrista Vítor Cesar. O trabalho conta com participações especiais do ex-Cascavelletes Luciano Albo (baixo, violão de 6 e 12 cordas, guitarra, percussão e voz de apoio), do integrante da Pata de Elefante Daniel Mossmann (guitarra) e de Eliézer Moreira (trompete).
A maior parte de Shangri-Lá foi captado por Luciano Albo em apenas 10 dias — entre 25 de setembro e 4 de outubro de 2023 — , no Estúdio Cegonha, em Porto Alegre. A exceção está no piano, gravado por Murilo Moura no Estúdio Tabuleiro, de Diego Lopes (Acústico & Valvulados), além da participação de Daniel Mossmann, criadas no seu home studio. A mixagem e a masterização, realizada entre outubro de 2023 e fevereiro de 2024, tem a assinatura de Luciano Albo. A produção musical une forças entre Gustavo Telles, Márcio Grings e Luciano Albo.
STREAMING, LANÇAMENTO, CD e LP —
Já disponível em streaming, o disco chegará no formato físico — em CD, com show de lançamento no Bar do Alexandre (Rua Saldanha Marinho, 120 – Menino Deus, Porto Alegre), e no Auditório da Cesma (Professor Braga, 55 – Centro, Santa Maria), respectivamente nos dias 5 e 6 de julho. Já o LP estará disponível até o final de 2024. A imagem da capa é baseada em uma foto de Zé Carlos de Andrade, com arte de Diego de Grandi, responsável pelo desenho gráfico do álbum.
AS MÚSICAS —
A influência do rock feito na conjunção dos anos 1960/70 é um dos signos solares da obra. É o caso de TROPICA, MAS NÃO CAI, tema com a digital de Vítor Cesar, autor da melodia e motor de propulsão com sua guitarra operando em alta octanagem. A voz de apoio de Murilo Moura — na volta do solo — surge como o agitador no fundo da sala.
Veja o clipe de “O Viajante”.
Primeiro single do trabalho, O VIAJANTE está impregnado de referências comuns ao rock dos anos 1960/ 70, isso sem omitir o DNA gaúcho. Temos aqui o espírito das canções estradeiras, pois são nominados diversos lugares e as visões de um andarilho (ou vários viajantes em um só). A trip percorre cidades como Santa Maria, Vacaria, Uruguaiana, Porto Alegre, Passo Fundo e Bagé, todas no Rio Grande do Sul, além de costear o Rio da Prata até Buenos Aires. Conduzidos pela voz principal de Gustavo Teles — em dado momento Vini Brum e Vítor Cesar assumem estrofes e invertem os papeis. Assim “O Viajante” coloca o ouvinte no volante de um automóvel, avançando por BRs e estradas de chão, apreciando as paisagens, ondulando frente às vicissitudes e deslumbramentos de cada trecho.
Embalada nos floreios do violão Weissenborn de Marcio Petracco e pelo piano honky-tonk de Murilo Moura, NAIPE DE METAIS apresenta um romance aberto e sem final feliz. Em alguns trechos temos vocais combinados de Gustavo Telles e Vinicius Brum, até ouvirmos a frase derradeira: “Me despeço, e por favor maestro, que venha o naipe de metais“, anúncio da entrada do trompetista Eliézer Moreira, participação que despeja melancolia nos segundos finais do tema. A contemplação da natureza como antídoto frente à confusão urbana está em NOS OLHOS DE QUEM VÊ, faixa mais curta do álbum com 3min18. A espinha dorsal acústica, onde pulsa o talento de Luciano Albo no baixo, rejunta simplicidade e sofisticação. O pedal steel e a harmônica jogam no time do folk rock, assim como os vocalizes do refrão adesivam ares de MPB.
Arte de Diego De Grandi baseada em foto de Zé Carlos de Andrade. |
Arte de Diego De Grandi baseada em foto de Zé Carlos de Andrade. |
Muscle Shoals, Alabama? Não, Estúdio Cegonha, Porto Alegre! Sim, foi lá onde também foi registrada a ecumênica FORÇA SUPERIOR, quando, sem versar sobre o evangelho, o gospel o soul são invocados. À sombra de uma natureza triunfante, a voz confiante de Gustavo Telles (um dos destaques do álbum) fala do encontro com o divino, : “Lá do céu/ Uma força superior/ Joga estrelas nos homens/ E as bençãos numa flor“. JORNAIS E AÇÚCAR apresenta uma harmonia complexa e curvilínea, reforçando a condição de isolamento do ator principal. O backing de Vini Brum potencializa a mensagem do refrão, assim como Daniel Mossman sobrepõe uma impressionante camada de guitarras na segunda metade da música.
Longa vida aos Graxelos.
Graxelos fotografados por ZCA na Rua Edmundo Bastian, Cristo Redentor (Porto Alegre/ RS), quase em frente ao estúdio Cegonha. |