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8 poemas de Karina Maia

ausência

eu podia ter escrito isso para meu pai,
ele está em todas as minhas entrelinhas,
principalmente nos subtextos,
esses que eu recuso e escondo e delineio de metáforas,
eu podia ter dedicado a ele,
ele, a quinta essência,
eu buscava sempre iluminar o ícone,
ser o farol,
mas vivi sobretudo,
em todas as tentativas como a ilha,
isolada,
inacessível,
da margem não via o naufrágio à deriva,
devia ter cavado na areia a marca da desistência,
do céu não se via quando passava o avião o meu dedo apontado,
lá vai ele,
eu devia ter seguido na maré sem os remos,
sem as nadadeiras,
sem ter esperado as ondas trazerem as cartas engarrafadas de milênios atrás,
eu teria recolhido as conchas,
aberto os braços me entregando no fundo do abraço,
o oceano engoliu meu ego,
eu passei areia nos pés
pelos cabelos,
sorri água salgada,
engasguei antes de ter escrito,
eu nunca saí de dentro da garrafa,
eu sou a carta que não foi lida,
eu não sei nadar,
deitei na rede da ironia sob a doce brisa do sarcasmo,
eu estou balançando,
nunca encosto os pés no chão.

 

Nina

Vigilante, permanente.
Errante e constante
O que faz ver e mesmo assim
Não enxerga?
Se o mesmo olho que vigia
E cuida é o mesmo que cega
Ao passo do tempo que passa e cresce em pernas braços ideias
Trampolins e quedas
Equilíbrio e brio
Que vertigem e frio na espinha
Andar sobre os dormentes
É tão perigoso viver e tão bom
Ver, te ver
Eu tentarei, prometo, não te abraçar com rédea ou redoma
E te ver,
eu juro,
que sendo mística e pessimista, deixar tu errar teus passos,
e ver, enxergar já não sei,
Só ver, tu crescer, sozinha.

 

PRA SE MORRER DE RIR

gastei a grana das contas vencidas
com novas banalidades do dia
fosse tempo bom eu te trazia sem guarda-chuvas
preciso dizer, sua feiura me agrada
mesmo com a nossa velhice, temos charme
jurei planejar alguma viagem,
lembra?
não sou de agendar,
essas anotações
a memória dissolve
ou espuma
ou mofa
e depois é um tempo que não vinga
nossa foto, aquela que a gente não fez,
desbotou na estante
sabe, os livros de auto-ajuda me ensinaram
que as pessoas são eletrodomésticos sem manual
as instruções estão todas numa língua morta
quase inaudível,
sei ler só os silêncios dos olhares
e o som dos passos,
da porta batendo
e a sombra que fica da gente se olhar pra trás
e as nossas promessas,
esqueci todas
aquelas que os amantes fazem quando
já é tão tarde,
tarde demais
tenho tanta coisa pra te contar desse mundo
to respirando ainda,
bem na beira da ponte
e fico embriaga as vezes
é vertigem
deixei daqueles vícios,
e inaugurei outros
a etiqueta a melhor educação as explicações…
minhas palavras não dizem o que eu quero
traem minhas intenções, mentem
mal ditas
penso com mais clareza
mas elas seguem um destino próprio
estão todas grudadas no teto
e caem como formigas na cabeça
paredes e janelas escritas com palavras,
nenhuma consegue sair

 

Sacerdotisa

Rito cumprido eu delito e não durmo
Paguei todas as promessas da minha esperança
Acreditar, crer no invisível
Naquilo que não tem nome
Você sente, mas não nomeia
As palavras não tem o poder de tocar esse milagre
Ele te assombra e te carrega nos braços, não há fuga
Só entrega
Ando sem calçados
Pés no asfalto
Vaidade é a poeira breve e falha
Vi pódio de chegada,
Troféu que virou cicatriz na estrada
Aniquilei a minha dúvida
Rastejando diante da tua
Tradução figura, minha dor
Estranha, eu queria
ser menos tua, ou ser
Apenas essa náusea ambulante pedante
Contrastante
Gentil serva
Irei pregar as tuas correntes
Irei quebrar as tuas regras
Irei sem exército.
Só exercício, de cair em abismo sem fim.
Eu sei, muro de Berlim
Rima comigo.
Assim.

 

tatuagem

minha memória é fraca
olho,
eu vejo dentro do meu olho
e não sei mais de onde veio tanta dor
é minha?
cicatriz é troféu lento,
se ajeita
até ser pele

Tempo manto mãe

tempo, por ser permanente e denso
devia ter um nome parecido com mãe
devia se chamar manto
manto que cobre do início ao sempre
mão que afaga crescendo os cabelos
esparrama sóis derrama luares
constante água que se deleita
sobre as gentes
sem pressa sem jorrar
não acusa não faz justiça
anda e no caminhar faz castelos
de areia.
passa, sem acenar
marca as faces
de quem fica
no instante

Manto, é o manto da mãe
na fábula cristã que
envolve a cria que nasce
enxuga o pranto
encharca-se de sangue
esconde o corpo no caverna
conforta distancia e sacia
Sem governo, expõe a montanha
ao pó,
em tudo toca germinando
sem pedir permissão,
Navegando, não voa.
É ele que atravessa
rachando a parede juvenil
da infância da terra,
em tudo toca e transforma
nada leva e nada detém
espalha a essência maligna
macula o botão
desabrocha a flor
semeia os jardins
deserta
e depois
e sempre

 

Transito

Tomei uma dose extra de naftalina,
estou propensa a saudades maturidades e cegueira noturna,
entre uma frase e outra eu suspiro,
as unhas precisam de retoques.
quem foi aquela que deixou as sobrancelhas crescerem por um ano?

Vamos fazer isso ficar interessante.
Não olhe agora, estou tímida.
A surdez as mãos trêmulas,
Desaprendi esse esporte,
insônia é um convite ao recalque,
não quero ver essas flores murcharem,
não me traga cigarros,
não tenho paciência para desastres,
não se iluda,
não sou leviana,
eu não aprendi a destravar a porta,
a chave quebrou e eu só uso a janela,
o espaço é tão pequeno que do outro lado meu corpo parece um balão murcho,
de uma festa?

Eu tenho pedras nos sapatos,
não sei usar enxada,
eu tenho um jardim com muitas vozes,
tenho 50 fatos sobre mim,
sou um abismo raso e no fundo uma placa com a inscrição

sós

Estamos só, estou segura
Me segurando nessa parte que sobrou de mim, fio transparente, não se engane, eu estou aqui.
O que carrego me transborda de infinitos, meu oceano de sal e água, aquele que cada um ganha quando é presenteado com o
dom da vida e serve para transformar em lago as faces calcadas de dor ou desespero
Estamos só, nós, infinitos, ausentes
Brincando de quadrilhas inoperantes
Buscando alívio no fruto verde, caminhando a longa estrada do amanhacer

 

 

 

KARINA MAIA: saiu de Uruguaiana aos 20 anos lá em 2004 e vem carregando a fronteira por onde passa. Poeta da intuição e do desejo, tece palavras sem regras. Movimenta o encontro poético literário Sarau dxs Atrevidxs desde 2014. Produtora cultural no Laboratório K, atriz por vocação e encenadora por deformação acadêmica. Mãe da Nina Aurora, a garota que aprendeu a andar e ensina a viver.

 

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