ENTRE NÓS
Em meu corpo dois mundos
África e Europa
Europa domina África
Europa subjuga África
Europa vende espelhos
Ignorantes de África
Em meu corpo dois mundos
África se derrama sobre Europa
Resistência: palavra e ritmo
Em meu corpo a revolta
Meu corpo em
Europa que não é Europa
Meu corpo em
África que não é África
Meu corpo novo mundo
Em disputa
Meu corpo revolução
COMUNHÃO
Parar
olhar o mar
escutar as ondas
ter a benção do sal da água
e entre o céu estrelado
e o mar escuro
ser o elemento ínfimo
mas necessário.
ALGUNS PONTOS
Vivo quase assim
Sou o meio, nunca o fim
E se algo começou
Não foi aqui.
Tenho um amigo que se chama Jesus
Certo dia, me salvou de um retiro
E me levou pro motel Botafogo
Que alívio!
Não sei se me caso
Ou se belisco a bunda
Dos homens que passam
Tenho alguns pontos A à Z
E nenhum cabaço
Nem vergonhas
Nem temores
Fofocas, sutiãs e salto alto
Queimo com palitos de fósforo
Emprestados
Dizem que tenho um namorado
Mas ainda gosto do Messias
E do motel
Tenho pernas e umbigo
Sabes o que há comigo?
Se souberes me conta ao ouvido
Quero me perder em segredos
Néctar nebuloso
Mareja teus olhos castanhos
Sou náufraga em águas estranhas
Mas repleta desse olhar
Figuras me cobram
Forma e fundo
Vá cobrar outro, ô peste!
Não tenho medo de cobras.
Tenho uma ferida que me fode
E fode
CONSIDERAÇÕES
eu não sei o que faz uma mulher
creio ser uma
mesmo sem balagandãs
maquiagens
belos adereços
eu me preocupo com a sujeira em baixo das unhas
e com pelos em exagero
seria isso?
e a boceta?
não me venha com vagina
nem com vulva
única palavra feminina
boceta
parece indecente porque os homens
se apropriaram dela
parece indecente por ser cheia de desejo
é o seu sangrar mensal que me faz feminina?
é o seu latejo?
é por eu ser uma passagem para a vida?
não tenho uma marca inequívoca
o que existe hoje não existirá amanhã
o que é mulher em mim brinca
de esconde-esconde
talvez entre os seios
JUNTOS
e como se distantes fossem
espaldar com espaldar
olhares em direções opostas
supor um leve sinal
sentir o perfume
ouvir canções silenciosas
um rastro de presença
em tanta ausência sentida
um traço demente
afigura um final
pretendido fingido dissimulado
FLORES ÀS MARGENS
Maria, há que se ter delírios
Esquecer rotas
Criar caminhos
Roberta, há flores às margens
Embora
o dióxido de carbono
E direito a viver
E dinheiro a dever
No céu da boca de Júlia
Ruínas pedem
Mandingas ao céu da noite.
Faísca produtiva
De palavras-archote
O dom de Quixote
Cobre o corpo de Silvia.
Encontra teu Orixá, mulher,
E cavalga
Hay gente siendo devorada
Por molinos.
Taiasmin Ohnmacht, é psicóloga e psicanalista. Participou da organização do E-BOOK, Da Vida Que Resiste – Vivências de Psicólogas (os) Entre a Ditadura e a Democracia (CRP/RS, 2014). Em 2016 publicou o livro Ela Conta Ele Canta (Cidadela), em parceria com o poeta Carlos Alberto Soares. Foi relacionada no catálogo Intelectuais Negras Visíveis (Malê, 2017), lançado na FLIP. Em 2019 Lançou a novela Visite o Decorado (Figura de Linguagem). Publicou textos nas antologias FakeFiction (Dublinense, 2020), Contos de Psicanálise (Diadorim, 2020), Travessias de Amanaã (Libretos, 2021). Em 2021, lançou o romance Memórias de Retratos Íntimos (Taverna), obra finalista do prêmio São Paulo de Literatura, na categoria romance de estreia.