Sonhos de Grécia e de Roma
Estar diante da noite
e interrogar o desenho das sombras.
Estar diante da noite
e recuperar o passado.
Se o território da infância é o que importa,
procuremos o menino,
o menino que um dia nós fomos.
Ele é frágil, tem olhos arregalados.
Um dia quis aplacar as feras
– o pai, a mãe; o bem e o mal –
e não teve grande sucesso.
O menino era frágil e teve fantasias heroicas.
Imaginou-se Aquiles, Leônidas,
o último dos irmãos Coriáceo
e se deu mal.
Estar diante da noite
e encontrar o menino.
Como sofreu o guri!
Estar diante da noite,
diante dos olhos do menino,
e por fim compreender:
se a infância é o território que importa,
não escorraçar o menino.
Aceitar seus sonhos de Grécia e de Roma
e forjar nova lança, novo escudo.
– Menino, o mundo sempre foi
muito maior do que nós.
vamos aprender nossa medida.
Mas nem por isso esqueçamos
Aquiles, Leônidas
e os irmãos Coriáceo.
Estar diante da noite
e encontrar o menino.
Se a infância é o território que importa,
reinventar os sonhos de Grécia e de Roma.
Estou diante do menino
Estou diante do menino que eu fui
e acho graça do guri.
Como sofreu o pirralho!
A culpa lanhou o seu lombo
e desde então ele semeia
com sementes de dor.
Pobre pirralho, pobre homem adulto!
O trigo que colhe deste então
só serviu para pão ruim.
Estou diante do menino
e acho graça do guri.
Vamos revolver a terra,
digo para o pirralho,
e fazer novo plantio
Com sementes de reparação.
É uma peste esse menino.
Nunca serviu pra grande coisa,
mas acho graça do fedelho.
Infância reordenada
Calou-se o vento
e se fez silêncio na tarde
Ao cruzar os trilhos do trem
só encontrei o eco das locomotivas
e sua sofrida lembrança:
ferro e fogo dentro de mim
ferro e fogo dentro de mim
O território da infância
enfim um mar de bonança
Engolidas as chamas
que queimavam
e calado o vento
que ardia
Apenas o eco distante
do ferro e fogo
das locomotivas
Aprendizagem
Aprendi que a alegria é uma mentira
o corpo, uma arapuca
e que o mar avança sobre a praia
engolindo pedra e areia.
Por isso é com desconfiança
que me entrego ao ritmo dos dias
torço a boca para a alegria
e às vezes contenho o gesto no ar.
Diante do mar
(no sul da Espanha)
Estamos diante do mar e mergulhas em profunda reflexão.
Que ponto é esse, no horizonte distante, que fisga teus olhos?
Que mouros são esses que te roubam de mim?
Estamos diante do mar e caminhas pela calçada da praia,
os olhos fugindo em direção ao mar profundo.
Estamos diante do mar, estamos diante de nós mesmos.
O mesmo mar nos fascina e só vejo antigas velas mouras,
que ainda buscam dominar as primitivas terras de Espanha.
O mesmo mar nos fascina e ele conquista teus olhos, teus ouvidos,
e parece de te falar de silêncios e ausências dolorosos.
Parece, eu imagino, pois não dizes uma única palavra.
Estamos diante do mar e tu te recolhes a tua concha, ao hotel,
enquanto eu sigo pela beira da praia na direção de um castelo,
antiga fortaleza sarracena duramente conquistada pelos cristãos,
lugar de memória da Reconquista, dos companheiros de El Cid.
Estamos diante do mar, estamos diante de nós mesmos.
Felicidade
Proclamo que sou feliz
sem explicar coisa nenhuma.
Minha alegria é teu corpo,
tuas pernas diante de mim.
e um horizonte que se descortina
intuído pelo meu desejo.
Proclamo minha alegria
e tudo mais é indecifrável.
(2002)
Um naco de céu
Poderia
no oceano estúpido
das cidades
com suas ruas e prédios
organizados
com suas vozes e movimentos
disciplinados
Poderia, posso, saberia
continuar vivendo
satisfeito
mesmo que pouco mais acontecesse
de vento, algas e amores
mesmo que tudo continuasse
ordenado
limpo
estandartizado
Poderia, posso, saberia
pois a vida me tomou
de tal jeito
e o sangue e a memória
pulsam
com tal intensidade
que o oceano estúpido das cidades
(ora, as cidades!)
pouco importam
quando abocanho um naco do céu
2000
Sacrifício
Me encontro no punhal erguido
que se ergue pra rasgar
meu corpo de menino
Ali onde existe um corpo gemendo
ali onde um corpo se revolve na dor
É nesse o lugar que me encontro
é aí que me calo
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Abraão subiu a montanha para sacrificar o filho
e foi aí que nasci
quando a faca se ergueu no ar
e o anjo a conteve
Fechei os olhos e súbito percebi
que não havia sangue jorrando de mim
O anjo segurava o braço do Pai
o anjo continha o braço do Pai
No altar do sacrifício
enxerguei o Pai, a imensidão de Céu
e juntos fomos buscar o cordeiro
que o anjo indicara
Sangramos o animal
e senti meu corpo salvo
enfim liberto para a vida
……………………………………………………………….
Diante da faca que se ergueu no ar
tremi de raiva, dor e humilhação
E depois nasci
em desconcertante festa de alegria
Onde está a dor
me encontro
Onde está a dor
me construo
2016
Dois poemas da Andaluzia
Na beira mar
Diante do mar, em terra de Espanha,
mergulhas em silêncio ensimesmado.
Que ponto é esse, no horizonte, que fisga teus olhos?
Que mouros são esses que te roubam de mim?
Estamos diante do mar, caminhamos na areia da praia,
e teus olhos mergulham no mar profundo,
enquanto eu vejo antigas velas mouras
que ainda buscam dominar as terras de Espanha.
Não dizes palavra alguma e eu imagino,
apenas imagino, sinto emanar do teu corpo,
que acaricias sussurros e lamentos,
e delineias ausências no horizonte.
Teus olhos e teu corpo se recolhem em concha
e eu sigo na direção de um castelo,
antiga fortaleza sarracena duramente conquistada por cristãos,
lugar de memória da Reconquista.
Estamos diante do mar, diante de nós mesmos,
um mar que nos engolfa e fascina,
e que eu preencho com imaginação,
sem saber o contorno da tua dor.
Velas mouras
Meu sonho é antigo, muito antigo
e eu não sabia que veio com os mouros
que invadiram as terras de Espanha e Portugal.
Meu sonho tem certidão de nascimento,
cruzou as terras ibéricas e se enraizou na Lusitânia.
Um dia atravessou o Atlântico na bagagem de um bisavô.
Na teia desse sonho minha mãe me embalou
e com alguns de seus fios
forjei minha identidade.
Meu sonho é antigo, muito antigo
e só agora, numa praia da Espanha,
me dou conta da sua matriz.
Sonho de ares mouriscos,
carregado de névoa e beleza,
com cores de Espanha e Portugal.
Meu sonho é antigo, muito antigo.
E só agora, numa praia de Espanha,
desvendo a sua estrutura.
Sonho trazido pelas velas mouras
que um dia aportaram com seus guerreiros
nas terras de Espanha e Portugal.
Vitor Biasoli