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10 POEMAS DE RENATO DE MATTOS MOTTA

Patripoema

por um poema da pátria
por um poema auriverdeazulanil
por um poema mundaméricadosulbrasil
um poema de amarAmérica
um poemAmericano de pó e de merda
poemerdAmericano de um povo
que ainda hoje se vende
por bugigangas brilhantes
um poemundo
poimundo
do pó do mundo
poema neocolonizado
do brazil de haloweens
um brazil que comemora
festas que não são suas

where’stheformernation?
deformada nação deste poema
caubóis caipiras piram
no funk das favelas
no reggae
que regateia nossas praias

poema bem pé no chão
pé no asfalto
pé no saco
não poema pé de chinelo
que pede penico pro tio sam
e diz que é global
que é mundial
mas não é!
o mundo global
é no meu quintal!

sangrentas naus escravistas
singram espaços internacionais
“Galopam, voam, mas não deixam traço.”
chicanegrosdekasseguis
seguem banzando hoje
somos os candangos
do século vinte e um
candongueiros fuleiros canibais
na falta de palmares
palmeiras vira nação
timões, mengos, flus, grenais
e cada vez mais
times te mentem

civilizar não é carnavalizar!
carnal vala de vãs meninas
prostituídas
no além mar
e no aquém amar
no aqui agora
no dia a dia
no cotidiano adiar do nosso dia

alada vitória da hélade
convertida em chulé multinacional
intermúndico
fungo interdigital
criado no norte
fabricado em seul
consumido em todas as direções
exportado
pago
muito bem pago
pago além do preço

meu poema é outro
tupiniquim como trypanosoma cruzi
como a trepação da globeleza
rebolando nudez
nos horários infantis
trepanação
que lobotomiza brazis
desculturação da ex-nação
auriverdes travestis fazendo ponto no coliseu
na torre eiffel no reichstag no central park
religiões e relógios de verão
zen budismos sem bunda
desbundes passageiros
módicas modas que mudam nada

belas musas sazonais
desinspiradas ocas
ecos de desespero
vendendo cerveja com a bunda

quero
um poema drummundo
que me desfralde bandeira
me redescubra cabral
americano brasileiro
perdido em minha quintana
um poema coletivo
de papo com affonso e marina
em barco pirata do guaíba
cruzeiro no fundo de casa
com a lua umbigada no lago
onde sidnei submerge seduzido por sereias
o imediato do navio
é o primo portugal
poeta antípoda
e no tombadilho
thiago trava um tête-à-tête
com barros do carmo e barreto
enquanto o fantasma de qorpo santo
folheia sua ensiqlopédia
wernek e patrícia cruzam palavras
com cacau e marodin
júlio alves de cricris
com a macedo e a vieira
michelle de anfitriã
comandando a litania
do sarau improvisado
menegotto na viola
accurso na batucada
laís enfeita as ruas
cidade vira poema

nossa nau da poesia
voa por porto alegre
aporta no meio do brique
pra por poesia na roda
numa abordagem festiva
que subverte a cidade
com o bardo ricardo
cujo menos vendido
é livro esgotado

meu poema insiste
em falar como brasileiro
em ter cheiro de feijoada
de churrasco assado no chão
tutu acarajé maracujá
ter gosto de pitanga
goiaba comida no pé
jabuticaba abacate
abacaxi caju café

meu poema tem que
jogar com bola de meia
rodar pião empinar pipa
papel colorindo o céu
voar lomba abaixo
em carrinho de rolimã
andar de bicicleta
bater figurinha
jogar taco pular sapata
bater bolita de nhaque

tem que ser brasileiro
como carnaval de rua
de antes dos abadás e das escolas
cachaça caldo de cana chimarrão
caipirinha cajuzinho xixi de anjo
cerveja gelada em tarde quente

não quero poema da pátria varonil
quero um poema
do brasil pueril infantil
brasil mulher brasil negrão
japaindiopolaco tudo junto misturado
um poema-brasil
de uma maioria de minorias
salada de frutas
culturalracialetnicaoescambau

poema pau-brasil
que fale português tupi-guarani
italiano alemão banto
espanhol e nagô
poema verdade capaz
de ver além das novelas
além das rebolativas
porta-bandeiras mulatenzoneiras
do carnaval
planetariamente divulgado
sexo oficial
em três vias carimbado
por três dias aprovado
mais a muamba
mais a quarta de cinzas
mais o enterro dos ossos
mais quanta micareta
porque o brasil da televisão
não trabalha
não batalha
só dança samba
reggaeafroaxéreboleichon
só quer saber
quem matou o bandido da vez
no capítulo
visto revisto e repetido
que vira notícia
a novela da tevê se vê
no noticiário da mesma tevê
que tudo vê
menos tu
porque a tevê não te vê
só vê o que dá lucro
só vê o que interessa
pro dono da tevê

este é o poema
que eu fiz pra você
que só vê
o que lhe dizem
que é pra ver

este é o poema
que cheira cola
que fuma crack
que dorme sob marquises
este é o poema
dos ratos e das baratas
chiclé na sola do sapato
poema do lixo revirado
do pedestre atropelado
poema do que você vê
mas não tem nada a ver com você
este é um poema não
este é um poema foi
este é um poema
nunca mais

este é o poema que eu fiz
pra pátria que me pariu!

 

salve maria!

salve maria
pela tua graça
salve mulher
toda maria

que é sem senhor
salve maria
senhora de ti

salve o teu seio
que doa vida
salve teu ventre
que gera carne

salve teu corpo
maria-anja
mulher madura

salve tua luta
teu dia-a-dia
salve maria
também, maria
tua alegria
que muita ou pouca
me extasia

maria louca
lírio da lua
maria amante
maria-sol

maria das dores
parto e amores
maria das graças
e das desgraças

maria das ruas
maria das praças
maria que sua
se desalinha
e não perde a pose
maria puta
maria santa
maria da vida
maria maldita
maria bendita
maria mulher

que faz milagres
com teus pecados
santa maria
olha por nós
que morremos
de amor por ti

 

urbano I

passos.
pés pisam pedras
cruzam lajes
corpo desviando outros
evitando olhares
pessoas ensardinhadas em óleo combustível
(cumpridor de seus deveres, o homem carrega sua pasta,
seu terno pela rua)

surdinas soam caóticas
caópticas lâmpadas luzem
refletindo o lusco-fusco
semáforos simulam vaga-lumes
controlando o trânsito da turba
(sedado, o bêbado descansa em meio ao vômito)

pernas passam sua pressa
transpondo o corpo em contrafluxo
pobreza ostentada pelos cantos
(tenra, a adolescente oferta carne a preços módicos)

brisa que sufoca seres suarentos
com o mais puro peido industrial
new waves over the sky telerradiovisando mentes
rio de lata rasga rumos retos
atropelando ratos, mariposas e mendigos
(frio, o aço aguarda a próxima vítima no Beco do Assalto
fria, a urbe aguarda a próxima vítima
eco do asfalto

Porto Alegre, abril de 1987.

 

urbano II

pilas na ponta do lápis
caminho de não
patrolas solapam
morro
rostos sempre diferentes
sempre mesmos
rostos de sempre
pressa que apressa as pessoas
latas de derrubar lixo
sorrisos sifilíticos
se oferecem nas esquinas
pouco se cobra pelo óleo de cobra que levanta qualquer/
britadeiras gargarejam gritos
abafando galos e sabiás
cartazes colorem o cinza citadino
iluminando de esperança
o cidadão civilizado
motores diesel monoxidam carbono no ar
inaugurando a náusea
policrômica, polifônica, polimórfica, polimérdica
policiais circulam cassetetes
peso de pasta no braço
peito de abraço
no encontro
do rosto
no mar de encontrões
vida na ponta do lápis

Porto Alegre, abril de 1987

 

urbano III

eu,
poeta urbano,
escrevo com concreto,
plástico, asfalto,
com gasolina, álcool,
gás, diesel
e com monóxido de carbono.

penso na técnica,
ouço ritmos:
motores,
buzinas engarrafadas,
britadeiras,
rimas pobres nos pregões das feiras,
bate-estacas,
boates de lata transitam noturnas,
carroceiros lutam pelo lixo,
cascos e chicotes catraqueando asfalto.

procuro cores,
produzo imagens:
preto-asfalto,
preto-fuligem,
cinza-calçada,
cinza-ar,
cinza-edifício,
marrom-escapamento,
marrom-sarjeta,
boca de lobo entupida.
vermelho-boca-de-puta,
(preocupante
quando pinta faces pueris)
vermelho-sangue-seringa,
vermelho-sangue-assalto,
vermelho-sinal-fechado.

fazer poesia não é fácil!
porque é preciso olhar
com o olhar que desnuda,
que vê verdade e vergonha,
pedintes profissionais
postados
na porta dos supermercados,
mães de filhos alugados;
o olhar preciso
que vê
a cola no colo da criança,
que vê a infância
atropelada pela vida.

é preciso olhar
com olhar que vê
a cidade acontecer
e a desvenda em palavras.
palavras que viram pedras,
que ferem ,
que acusam,
mas que também
podem cantar
como pássaro
que insiste no vôo
mesmo em meio
à névoa negra
dos escapamentos.

Porto Alegre, 02/08/2008.

 

urbano IV

litros de monóxido de carbono
cfc e afins
partículas de chumbo
chuva ácida
ácidos gases
lixos vários
nariz puluído
pulmão poluído

motores
rodas rodando
buzinas
sirenas
bate-estacas
ofertas altifaladas
mais motores
diesel
com mais força
e decibéis
dispara o alarme do carro parado
(sabia que o sabiá do centro assobia menos que o sabiá suburbano? o sabiá do centro não sabe mais escutar)
(havia ouvido que não ouvia mais que ruído)
orelha poluída

caminho pela cidade
chuto a tampinha de cerveja
que acerta a garrafa
P.E.T. de estimação
rolando pela calçada
até virar inundação
pisei
agora
passo chiclé
passo chiclé
passo chiclé
passo chiclé
um catador cata o lixo do conteiner
escolhendo o que interessa
e espalhando os restos pelo quarteirão
papel de bala
sacola sem compras
paina da paineira
remoinho sem saci
pés poluídos

Toda cidade tem um padroeiro
Porto Alegre da Mãe de Deus
São Pedro do Rio Grande
São Paulo, do mesmo
São Sebastião da ex-capital
mas manda mesmo nas cidades
Polui São

Porto Alegre, 23/03/2017

 

monstros pampeanos

maragato pampeano
monstro degolador
como monstro também foi
o chimango que não voa

lenços brancos e vermelhos
sangram da mesma cor
centauros minotáuricos
julianos gumercindistas
saraivadas castilhistas

o fio é melhor que o fogo
adagas não gastam pólvora
e o sangue é o sangue
adubo que não tem lado
povo virado em gado

e o sangue é o sangue
pra matar e pra morrer
por quem os manda lutar
por quem os manda sangrar
uma luta que é dos donos
nunca da peonada

e o sangue é o sangue
que irriga e aduba a terra
pro pasto ficar mais verde
pro gado ganhar mais peso
pra engordar o proprietário

e o sangue é o sangue
de maragato e chimango
monstros degoladores
que sangram por seus patrões

Porto Alegre,
Feira de Opinião, 2018
(após uma escultura de Gustavo Nackle)

 

povoado afogado

povoado afogado
tolas calhas
que ocultam moluscos
(quando o ar é água
telhados quebrados
não tem goteiras)

vila subaquática
onde emoções passadas
e sonhos molhados
permanecem entre os peixes
que nadam por ruas

lugarejo onde te quis
agora imerso em lago
silêncio de poço
torneiras inúteis
chuveiros inúteis

talvez algum dia
de conto de fada
alguma sereia
resolva habitar
a cidade das águas

talvez a sereia
encontre um dia
teu quarto de nácar
cortinas de rosa
dossel de algas

quem sabe a gaveta
do criado-mudo
ainda tenha o poema
em caneta verde
na folha de almaço

quem sabe o poema
lavado na água
levado pra longe
agora dissolvido
no rumo do olvido

à vista da sereia
as palavras desfeitas
o papel esfacela
e a menina das águas
não sabe ler

Porto Alegre, 04 de fevereiro de 2012.

 

isso tudo

é bom a gente ler
livros jornais revistas
romances poemas crônicas novelas
avisos cartazes
porta de banheiro
bula de remédio
isso tudo

é bom a gente calcular
o preço o troco o imposto
o tempo a distância a hora
a trajetória da bola____até o gol
isso tudo

é bom a gente saber
como onde quando por que
os nomes dos homens
e mulheres
que mandam que fazem que pensam
isso tudo

é bom a gente saber
quanto esforço
tem que fazer
quanto tempo
tem que preparar
quantos outros
tem que juntar
isso tudo

isso tudo
não é tudo
mas é isso
por enquanto
isso é tudo até agora
mas não para

isso tudo
nunca é tudo

isso tudo
é estudo

Porto Alegre, 25/10/2014

 

Lição de Rua

hoje a aula é na rua
não quero ninguém quietinho
hoje a aula é em grupo
ninguém vai estar sozinho
hoje levanta a mão
quem quiser falar mais alto
porque sabemos pensar
e o pensamento é mais forte
que bombas
escudos
cacetes

hoje a lição é de união
vamos aprender que valor
não cabe em bolso ou em cofre
valor a gente constrói
porque a gente demonstra
o valor que a gente tem
porque temos ideias
porque sabemos pensar
e o pensamento é mais forte
que bombas
escudos
cacetes

nosso valor apavora
aqueles encastelados
porque quem pensa questiona
importuna oportunistas
com perguntas inoportunas
que precisam de respostas
daqueles que nos reprimem
porque sabemos pensar
e o pensamento é mais forte
que bombas
escudos
cacetes

hoje a aula é na rua
não se leva lição pra casa
porque a matéria é maior
e o que se aprende é pra vida.

 

Renato de Mattos Motta poeta, artista plástico, produtor cultural, nascido em Porto Alegre, onde também reside, tem atuações em literatura, xilogravura, teatro, fotografia e histórias-em-quadrinhos. Desde 2012 coordena o coletivo de poetas Gente de Palavra, realizando saraus e publicando a revista de mesmo nome. Publicações individuais: · Pau de Poemas – álbum de poemas ilustrados por xilogravuras do autor (1987); · Pau de Poemas – segunda edição colorizada digitalmente e impressa a cores em papel Couché 300g (2007); · Versa – 104 pg. (Porto Alegre: Gente de Palavra, 2014) · AmarTeAtéAmorTe – livro artesanal (Porto Alegre: Gente de Palavra, 2016) · Via Vitae – livro de artista com xilogravuras originais (Porto Alegre: Gente de Palavra, 2017). · Pretos de Peleia – 80pg (Porto Alegre: Gente de Palavra, 2020) – Prêmio AGES Livro do Ano 2021 – categoria Poesia

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