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10 POEMAS DE MÁRCIA BATISTA RAMOS

O avesso do verso

Tudo podia virar verso
Os segredos
Os mapas
Minha voz
Os amanheceres
Os relâmpagos
As dúvidas
Os sonhos disformes
E o silêncio.

Mas depois
Eu tentava adivinhar
Os lugares
Os domingos amarelos
As palavras na garganta
As tempestades noturnas
A melancolia que se amontoa
E o silêncio.

Então o verso escapava
Fugia.

 

A cidade

A cidade é um espaço da memória
Onde os pais e os avós moram nas casas de bairro
Os professores e os taxistas (trabalham)
Enquanto os outros (espiam)

A cidade é um espaço profano
Tem um centro antigo
Onde as meninas (agora) mortas
Caminhavam como hienas na jaula (sorrindo)

A cidade é um espaço sagrado
Tem igrejas e catedrais
Anjos nas praças
E meninos (mortos)
Que não regressam mais

A cidade é um espaço de imolação
Os automóveis
Os caminhões
As motocicletas
Os assaltantes
E as drogas

A cidade é um espaço contraditório
Buzinas e sirenes
Silêncio atordoado
Selva com lobos
Terreiro de sacrifícios
Tentativas de adivinhar a noite
Insetos venenosos
Bonitos edifícios
Flores feridas
Montanhas de saudades

A cidade é terreno de combate.

 

Esquina

Um milhão de transeuntes por dia
Para cada um (uma loucura)
Para cada loucura (uma angústia)

Um milhão de aromas
Para cada cheiro (um medo)

Um milhão de sons
No seu único poste (silêncio)

Um milhão de dores
Procissões de humanos
(Sem nome)
(Sem sexo).

 

Reminiscências

Não coma frutas verdes.
Vai a doer a barriga.
Não proves frutos que não conheces.
Podem ser venenosos…
Colossais loquacidades.
Estrepitosa austeridade.
Profunda e sistemática incomodidade,
Povoando os dias acinzentados da menina e das futuras gerações.
Pelos séculos dos séculos…

 

Último instante

Tantos anos no deserto
E não vi chuva de dáctilos
Para os viajantes.
Nem vi água caindo com força, na areia.
Nem vi o céu se desmanchando em pedaços.
Aquela que não tem nome,
Saiu na revista, ela tem pernas seios e bocas.
Sua santa é a Santa das pecadoras.
Estou hasteada de não pecar e me arrepender.
Mesmo assim, eu sei que a
Poesia é melhor que a poesia.
Ave de metal sulca o céu azul do deserto.
Não ancoram os transatlânticos.
A noite escura engole a estrela guia.
Enquanto os que grasnam pensam que estão cantando.
O cometa passou com sua pressa instantânea.
O vento avisa que a morte se avizinha.
Estranhamente, não sinto medo.
Frente ao pelotão de fuzilamento
A única imagem que vem na minha mente é a do deserto.

 

Os mortos enxergam no escuro

Os mortos enxergam no escuro
E não olham as estrelas
Distinguem os caminhos da vida
Não sentem medo
Não entendem os calendários
Não se importam com os gatos
Dispensam as burocracias
Acham que tudo é barato
Não se refletem nos espelhos

Os mortos enxergam no escuro
Eles não têm pressa
Fazem barulho
Entendem o idioma dos cães
Atravessam as paredes
Já não buscam miradas
Detestam os discursos políticos

Os mortos enxergam no escuro
E não leem as palavras sujas
Não distinguem os carinhos atrasados
Não se importam com a poética revolucionária
Nem com o excesso de adjetivos

Os mortos enxergam no escuro
E perdem a noção do tempo e do espaço
Mas isso não lhes importa
Eles desconhecem os problemas
Só sabem das soluções.

 

Dor de crescimento

A infância estava povoada pela boneca que fala
A avózinha morta
E as xícaras com desenhos azuis com filigranas douradas por fora
Brancas por dentro
O chá que sempre tinha gotinhas de limão
E o rocambole que esperava enrolado em um pano branco
A hora do café da tarde
Um universo completado por livros
Pesados
Silenciosos
E os dicionários em diversos tomos
Não davam conta do tempo
Que passava voando
E deixava atrás
As colchas brancas de matelassê
A correntinha de ouro
Os móveis brancos no quarto
O caderno de desenho
A merendeira e as fitas de gorgorão
O medo de atravessar a rua
E os sapatos de verniz branco
Que nunca podiam ser vermelhos
Sempre tinham que ser brancos
Nas manhãs de domingo a Folha da Criança
Para colorir em silêncio na sala
Chegava com o Correio do Povo
Depois o restaurante
E a saída do matiné
Anunciando que o domingo terminou
Tão rápido terminou o domingo
Como a vida cheia de doenças
Que deixou atrás o doce mu-mu
O zoológico de Sapiranga
O Brique da Redenção
A rádio Guaíba
Para sentir o vento norte na boca do monte
E depois quando caía a tarde subir no trem da morte
Ir lá longe
Onde não conhecem as baleias
Onde perderam o mar
Bem longe
Lá onde os sapatos podem ser de verniz vermelho
E sempre são de verniz
Vermelho.

 

Cotidiano

Água correndo
Crianças dormindo.
Obrigações diárias, pão …
Água fervendo
Um jardim de palavras na mente:
Agitado …
Café.
Ideias vociferantes que não são silenciadas.
Tudo longe.
Pequenas pausas.
Pão.
Redes, parte da vida sem vida.
Com afetos?
As flores se multiplicaram no jardim da mente:
Agitado …
Com abraços de palavras?
A voz em cada uma de suas pétalas …
As palavras.
Café com pão.

 

Oração no meio da guerra

Senhor, nestes anos de guerra, tenho guardado sorrisos,
para usar nos feriados.
Festas simples:
comer à mesa com meus irmãos;
cumprimentar meus vizinhos;
sentar no parque para ler um livro na calma da tarde
e sorrir para a criança que passa …
Senhor, nestes anos de guerra, tudo mudou.
As canções piedosas foram silenciadas.
Os irmãos se tornaram mártires,
eles não vão mais comer na mesa de domingo.
Eles não vão mais me abraçar, eles não vão mais sorrir
e eles não vão cantar as canções do nosso tempo.
Senhor, nestes anos de guerra,
os vizinhos apoiaram as paredes do edifício
com as mãos, os ombros, os pés, as costas …
Senhor, os vizinhos ficaram vivendo embaixo dos escombros.
A pá chegou e levou os vizinhos embora.
Os bombardeios pulverizaram o parque
e a criança que passava …
Senhor, nestes anos de guerra, tenho guardado sorrisos,
para usar nos feriados.
Peço perdão, Senhor, porque agora,
vou usar meus sorrisos para iluminar
o cadáver de cada inimigo.

 

Confinamento

Um dia você vai me entender.
Um dia eu vou te entender.
Agora, não existem estrelas.
Parece que a chuva está chegando.
E sinto paz, embora o futuro seja sempre incerto …
Sinto frio nas manhãs.
O vento, lá fora, varre o mundo.
Enquanto agita os ramos e as folhas.
Cachorros abandonados se amontoam nas portas …
Faz muito tempo que não saio para as ruas.
Já não me lembro quando fui tomar um café.
O rio ressoa e de noite o som é mais forte.
As pedras são arredondadas no leito do rio.
Os fins de semana tinham outra luz.
Agora os dias são todos iguais.
Não tem lua, a noite está escura.
As calçadas estão vazias.
O mundo é a soma das palavras:
faladas, escritas, silenciadas, escondidas, pensadas …
Eu me sinto o único sobrevivente.
Frutas apodrecem no mercado.
Os relógios continuam correndo na casa vazia.
Os aviões deixaram os céus para os pássaros.
Escrevemos algumas alucinações sem ritos apócrifos.
Talvez, um olhar nos salve.

 

Márcia Batista Ramos

Estudou Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), RS. Escritora, poeta e crítica literária. Editora da Conexión Norte Sur Magazzín Internacional (Espanha); colunista de Inmediaciones (Bolívia); jornalismo binacional Exilio (México), Revista Madeinleon (Espanha) e revista Barbante (Brasil). Publicou diversos livros e antologias, aparecendo também em diversas antologias com ensaios, poesias e contos. É colaboradora de revistas internacionais em 22 países. Editora-adjunta da Edição Internacional de Literatura Chinesa (responsável pela Federação dos Círculos Literários e Artísticos de Hubei, China).

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