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10 POEMAS DE CÁTIA CASTILHO SIMON

Não há oásis no deserto

Hoje foi a vez da diarista e outras mais
O jornal anunciou o assassinato de cinco mulheres por seus homens
Outro dia uma juíza foi morta na frente das filhas
Em outros dias, horas, meses, anos,
Agora, agorinha
Por séculos dos séculos, amém e ai de nós
Elas têm se revezado como em uma corrida em meio ao deserto
Uma a uma acredita no oásis e sucumbe:
A bruxa
A frentista
A cabelereira
A advogada
A professora
A escritora
A costureira
A médica
A manicure
E assim vão morrendo de morte matada, todas
Não há filhas nem filhos capazes de salvar daquele que se entende escarnecido, ainda que seja o pai
Era necessário esfaquear dezesseis vezes para que voltasse ao seu lugar
Sucumbir diante das filhas ou filhos é um morrer sem fim,
É cortar o osso e segurar a dor
Doca Street, o assassino de Angela Diniz, morreu aos 86 anos. Morreu de morte natural, 44 anos após o crime, como um justo que nunca foi.

Tramas

enquanto cuidávamos,
eles produziam
enquanto cerzíamos e
calávamos
eles conquistavam
enquanto lavávamos e
servíamos
eles seduziam e
expandiam
enquanto paríamos
eles brindavam
enquanto encolhíamos e
minguávamos
eles agigantavam

Dejetos

não é nada poético ver uma garça
em cima do cano de dejetos
no arroio dilúvio

não é nada poético
assistir tv
em plena pandemia

cadê a poesia que estava aqui?
o gado comeu só de pirraça
desde quando arte enche a barriga de alguém
é assim que entendem

não é nada poético ver uma garça
em cima do cano de dejetos
no arroio dilúvio

por que não foco no pássaro?
é que pressinto
o cheiro
sob as asas
da garça

Matrioskas

antes de mim
houve um rosário
de sim

em clausuras
ad infinitum
formatado

no eterno
jogo
das matrioskas

 

De Penélope a Rapunzel

li uma carta tua
de amor, mãe
amor romântico
idealizado

o cinema,
as novelas
a síndrome
de Penélope

te fizeram
Rapunzel

 

Agruras

diante do inevitável,
estremeço
peço clemência
e que se adie
o inexorável

prefiro as agruras
experimentadas

já me revirei em avessos
forjada em ranhuras

das vezes em que fui vaso
e me quiseram flor
das vezes em que fui bicho
e me quiseram domESTICADA
das vezes em que fui vendaval
destelhando a esmo
das vezes em que fui maremoto
escavando tralhas escondidas
das vezes em que fui pasto
e se saciaram de mim
das vezes em que fui cheiro forte,
esgoto de coisas mal-guardadas

essas agruras
pego firme pelas crinas
e a derradeira
que ziguezagueie,
em passos inaudíveis

 

Loba

de uivos
entendo
já fui
lacerada

mínimos
decibéis
eriçam
dores antigas

código morse
cruzado
no faro
das iniciadas

reverbera
ancestrais
luas

 

Deusa em desconstrução

na gramática
substantivo feminino
na vida real
comum de dois
independe de útero

reconhece-se
mãe
de ouvido
em desigual
embaraço

dessacralizemos
as palavras
libertemos, pois
as mães
em todos
seus arrepios

que vazem
por entre os dedos
clara
e não mais ovo

 

Lixos

Ao longe
na esquina
um homem na calçada
rodeado de sacos de lixo

O celular em casa
deu leveza aos passos
minimizando as chances para o mau acaso

Os sentidos em alerta apenas para o inusitado

O olhar vacila
em choque ao revés

Não era um homem,
mas um hidrômetro

Meu Deus,
a naturalização da infâmia
revelou
a minha miséria

Modo Alavanca

na lógica sacrificial
exigimos
de nós
e de outras

o silêncio a cabeça baixa o olhar contrito

esgotei a minha cota raspei o fundo de mim

a esquina do joelho fez-se alavanca

 

 

Cátia Castilho Simon é escritora, mestre e doutora em estudos da literatura brasileira, portuguesa e luso-africanas/UFRGS. Recebeu o prêmio Vianna Moog, em 2014, 1º lugar na categoria ensaio UBE/RJ pelo livro Labirintos da Realidade – diálogo de Clarice Lispector com Machado de Assis. Publicou Por que ler Clarice Lispector – POA, Território das Artes, 2017. Foi coorg. e coapresentadora do Sarau London Pub & Bistrô de 2014 a 2019. Publicações recentes: Psicografadas – (várias autoras): POA: Território das Artes, 2020 e 2021 o e-book. Todas escrevemos (várias autoras) – Edição: Fora da Asa, e-book em 2020 e livro físico em 2021. Coletânea Enluaradas I e II: Org. por Marta Barbosa Cortezão e Patricia Cacau.
Poesia. (várias autoras). Colectânea Mulherio das Letras Portugal – (prosa e conto) Org Adriana Mayrinck, Infinita, 2021. Identidades (vários autores) Karine Oliveira (org).BH: Editora Venas Abiertas, 2021. O mundo ao redor (vários autores) org. Cíntia Moscovich, POA: Class, 2021. Coorg. da coletânea Arca da desconstrução, POA: Território das Artes, 2021. Coorg. da série Digressões Clariceanas, entrevistas com pessoas ligadas à cultura e literatura veiculadas pela Território das Artes, desde 2021. Integra o Mulherio das Letras/RS.

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