AS FORMAS PERFEITAS
Em sístole e diástole
Meu coração vai e vem
Expande e retorna
Uso essa imagem muitas vezes
Pois ela ainda se repete
Em mim
Feito água-viva
Em luminescência
Um pulmão
Que recebe e doa
Que doa e recebe
Que puxa e repuxa
Algo em mim preso
Não a água-viva
Que pulsa em balé.
TEMPESTADE NO AMIANTO
Um dia eu vi uma tempestade
De vento se armando
De promessa de chuva
Grossa
De promessa de gelo
Em blocos
Destruindo carros e
Janelas
Vi as árvores balançando
Entre trovoadas e raios
E o céu escurecendo
Como se fosse uma noite
Um dia eu vi a tempestade
Destruindo o telhado
De minha casa
Machucando
A cabeça de minha mãe
Um dia eu vi
Ensanguentada
E era púrpura, vermelho
Vi a tempestade e fui
Para o meio dela
Dizer que eu não tinha
Mais medo.
ADIAMENTO
Teremos que deixá-la para amanhã
A tristeza
Porque há muito a fazer e quando terminarmos
Haverá o que fazer de novo
Teremos que continuar varrendo para debaixo do tapete
A tristeza
Porque ela paralisa e sentimos
Que será preciso usar as mãos
Teremos que renunciar, fazer de conta que ela não existe
A tristeza
Porque ela é desagradável
E os outros nos esperam
Teremos que sorrir, afagar, encontrar e dissimular
A tristeza
Porque a alegria é a sua prima falsa
E está nos gritando da rua.
DOCE COMO O ALGODÃO DOCE
O homem do algodão doce passa carregado de açúcar
As cores suaves – não me importo se são feitas de anilina
Passa e eu sei porque toca a buzina anunciando:
Sou o homem do algodão doce e estou passando na sua rua
Não corro pois não tenho mais cinco anos
Nem meu pai está aqui para que eu peça que compre
A nuvem rosa, a nuvem azul, a nuvem amarela
Ou mesmo me dirá: hoje não posso, filha
Ouço a buzina se afastar e com ela
O homem que talvez não seja doce
O homem que talvez também diga a alguém:
Hoje não posso, filha.
PASSEIO NA LAGOA
Dia desses um homem disse que
Não tem problema as morsas caírem
Das montanhas
Que elas vão se adaptar até
Aprenderem a escalar pedras
Ele acha que isso pode ser feito em
Dez minutos, dez dias, dez anos
Ele prefere crer que nada é afetado
Se ele faz escolhas erradas
Se a necrópsia dos patos
Revela onde ele joga o plástico.
UM DEUS PARA CHAMAR DE SEU
Eu peço Ele atende
Gênio da lâmpada
Infinitos desejos
Passo oração no débito
Crédito
Ou boleto bancário
Eus no comando.
PANFLETÁRIA
Uma poesia que possa vir em um panfleto
Aquecido pelas mãos de uma trabalhadora
Que lê Brecht
Que possa ser colada nos postes
Como um cartaz
de Vladimir Maiakovski
E que na ventania das seis horas da tarde
Voe sobre a Estação de Metrô
A ponto de o maquinista perguntar
Quando foi que libertaram os pássaros.
PARAR A MÁQUINA
Trabalho de frente para a janela e fecho as cortinas
A luz promete o que não entrega
Dou a César o que é de César
Mas também preciso de moedas
É minha a teia e agora é tarde
Não cabe sequer me arrepender
Das ingenuidades que não me acompanham mais:
A de desejar um passado que desse na porta certa
O mundo segue em julgamento e tons de guerra
Continuo me distraindo com ipês em florescência
Quero servir ao cão na rua, à família e a sua esmola mas
Sou pouca, um dia de cada vez
(mal tenho servido a mim mesma)
Meu amigo está enlouquecido, palavras de ordem
Se for somente para ficar rouca, nem quero
Um minuto de inércia, por favor, no planeta inteiro
E por um minuto, pela primeira vez, o mundo estaria a salvo.
CUIDADO
Não tenho falado desta tristeza que assola a terra
Porque tenho medo de que a semente que plantei
Escute
E ao que nasce
É preciso dar alguma esperança.
ADRIANE GARCIA
Poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019) e Eva-proto-poeta (ed. Caos & Letras, 2020).
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Confira também o que a nossa colunista Maria Alice Bragança fala sobre uma das obras da autora:
https://redesina.com.br/estreia-coluna-estante-da-alice-livro-eva-proto-poetica-de-adriane-garcia/