O jovem padre jesuíta cruzou o rio com pressa, ele já tinha feito aquela travessia dúzias de vezes, mas desta vez era diferente. Agora, no meio da mansidão do rio, havia muita preocupação rasgando as lágrimas do seu olhar, um medo gelado e cravado em seu peito. O Padre vinha navegando numa canoa feita de cedro, toda decorada com pinturas indígenas. A canoa era de uma madeira leve e que, além da estabilidade, dava velocidade de remada aos tripulantes.
Ao todo, descendo o rio Uruguai, haviam mais de 50 canoas em deslocamento. Algumas das embarcações partiram da costa ao som de tiros e gritos, cruzando para o outro lado do rio. Muitas canoas foram abandonadas na margem. Outras, depois que atravessaram o rio, subiram contra a corrente, indo pela esquerda e ingressando no Rio Ibicuí.
A canoa do Padre foi a única que optou por um caminho diferente, o de descer pelo rio Uruguai.
Junto ao jesuíta estavam dois guaranis, homens jovens e de poucas palavras, vinham sentados, um em cada ponta do barco. Entre os guaranis, sentado bem no meio do barco, estava o padre, carregando entre as pernas um grande vaso de cerâmica cheio de moedas de prata e ouro. Sobre as pernas, o jesuíta trazia uma pequena estátua, entalhada em madeira. Era a imagem da avó de Jesus, a Nossa Senhora de Sant’Ana.
De quando em quando, os três homens se revezavam com o olhar entristecido, observando para as bandas de uma das sedes da Grande Estância do Yapeyú. A estância era o lugar de onde tinham partido. Saíram às pressas, fugidos no clarão do fogo e encobertos pelo breu da noite. No Yapeyú, além de pessoas correndo, também se via um enorme clarão que tomava conta do horizonte.
As casas, a escola, a igreja, as capelas, tudo ardia em chamas. Era o ano de 1756.
E os três homens desceram o Uruguai por quase duas horas, navegando bem pelo meio do canal principal, que era a parte mais profunda e de correnteza mais veloz. Remaram pouco, foram na velocidade do rio, até que chegaram numa ilha. Um vento gelado empurrava a canoa contra a costa, sinal de um temporal que se formava para as bandas orientais. Desceram da canoa, puxaram-na para o meio das árvores e pernoitaram ali, enfiados debaixo dos galhos de uma pitangueira, em total silêncio. Naquela noite não fizeram fogueira, sabiam que a luz das brasas poderia chamar a atenção ao longe, e isso, certamente, era tudo o que eles não queriam. Passaram uma triste noite de chuva e frio.
Na manhã do dia seguinte, o céu azul e o sol trouxeram energia renovada. Os três caminharam pela ilha, beberam um pouco da água do rio e comeram das taleiras e das amoras da ilha. Um dos indígenas encontrou numa corticeira alguns ninhos, voltou sorridente, trazia nas mãos vários ovos de pomba torcassa. Após se alimentarem, decidiram seguir descendo em direção ao arroio Guarapuitan. Antes de partir, atentaram para as margens, queriam ter certeza de que não havia sinal de homens à cavalo, tão pouco, sinal de mais canoas e barcos na mesma direção em que estavam indo.
Depois de mais outra hora de descida, o Padre enxergou uma enorme ibira-puitã, frondosa, com suas belas e brilhosas flores amarelas. Ele pediu para que a canoa fosse levada para a margem esquerda, exatamente na direção da grande árvore. O jesuíta queria sair do rio e seguir por terra, a ideia era chegar até as terras da Banda Oriental, onde ele tinha um amigo de uma pequena tribo de charrúas, um chefe mestiço, chamado Cható. Os dois se conheceram uns anos antes, num acampamento de changadores perto do Ibicuí, quando ainda eram adolescentes e, dali em diante, tornaram-se bons amigos. O Padre sabia que Cható não lhe negaria abrigo, especialmente, num momento de necessidade como aquele. No entanto, o caminho era longo e havia bagagem para carregar.
Os campos que se apresentavam à frente eram terras sem texto de lei e sem trono de reis.
Um lugar povoado por contrabandistas e tribos de índios charrúas e minuanos, terra de homens extremamente agressivos e de tribos que há décadas roubavam o gado da Estância do Yapeyú e matavam os habitantes da Redução. Logo, não era um lugar para transitar com coisas de valor, assim, um dos indígenas guarani deu a ideia para que deixassem tudo que transportavam, ali mesmo.
De joelhos, os três cavaram nas margens do rio, usando as próprias mãos e dois pedaços de madeira, abriram uma grande cova, cerca de uns dez metros da água, aos pés de uma grande canjerana. O buraco ficou exatamente na frente do maior galho da árvore. Terminado o serviço, aproveitaram também para recolher o máximo de sementes da canjerana, pois serviriam de alimento durante a travessia daquela parte inóspita da Pampa.
Dentro da cova, de aproximadamente meio metro de profundidade, colocaram o vaso de barro, com suas valiosas moedas e, dentro dele, acomodaram, enrolada num pedaço de couro, a estátua de Nossa Senhora de Sant’Ana. A canoa foi retirada da água e escondida no mato. O Padre pegou algumas moedas do vaso para eventuais necessidades e rezou uma Ave Maria, pediu que Santa Ana iluminasse a caminhada, protegendo-os e os guiando. Partiram antes do entardecer.
Alguns anos depois, por volta de 1770, os ventos gelados sopraram novamente com força pelas pradarias da Pampa. Era um forte temporal que se armava para o sul. E ele se abateu com fúria por sobre os campos, jogando raios amedrontadores e ventos tão fortes que pareciam dobrar as florestas e mover o sentido das águas. Os animais se esconderam nas tocas e se enfiaram nos matos ao redor das sangas. O nível do rio Uruguai subiu rapidamente, foi se avolumando numa água densa e barrenta, arremetendo-se contra as matas costeiras e arrastando tudo que tentasse ficar no seu caminho. Era a maior enchente em centenas de anos.
Os campos se alagaram por léguas e os arroios transbordaram, jogando peixes pelos prados e afogando pequenos preás e zorrilhos.
O Rio Uruguai arrastou animais, pedras e tudo que encontrou pelo caminho. O rio se jogou sem trégua contra a enorme canjerana, que lutou por dias seguidos contra a força dos ventos e das águas. A grande árvore teve suas raízes expostas e os seus galhos quebrados, até que, no meio de uma madrugada fria, entregou-se diante de um inimigo tão poderoso. Derrotada, como um soldado ferido, tombou para trás. A queda da árvore revolveu toda a terra ao redor, retirando do fundo da cova barrenta o velho vaso do padre jesuíta, que tão logo foi alavancado, partiu-se em dois. A força das maretas da água do rio, jogando-se contra a costa, rapidamente foi esparramando as moedas de ouro e prata e empurrando para as águas a pequena e velha estátua de Nossa Senhora de Sant’Ana.
Na correnteza, a santa de madeira se soltou do couro que a envolvia e foi levada pelo rio, numa procissão silenciosa e sem rumo.
Anos se passaram, o tempo sempre carregado pela encosta do rio, até que, na entrada da primavera, num tempo dos campos floridos e de pássaros e frutas, um grupo de homens e mulheres apareceu. Eles vinham das pradarias da Pampa, com carros de bois barulhentos e mulas carregadas de peles e alimentos. O pequeno grupo de pessoas estava exausto e buscava um bom lugar para atravessar o Uruguai de uma margem à outra. Eram famílias que tinham as vidas em fuga, amedrontadas pelos ataques dos castelhanos. Ao chegar perto do Rio Uruguai, de longe viram que havia um trecho do rio que parecia mais raso, com pouco mato ao redor e com grandes pedras negras que adentravam as águas. Era ali, aquele era o passo que tanto procuravam.
No lugar escolhido para a travessia, fizeram um acampamento e pernoitaram para descansar e recuperar as forças. Ao entardecer, assaram um quarto inteiro de boi cimarrón e ficaram abrigados nas sombras noturnas das árvores costeiras.
No dia seguinte, uma criança que andava pela margem, remexendo com as pequenas mãos a areia em busca de conchinhas de caramujos, deparou-se com uma coisa que nunca tinha visto na vida. Era ela, a estátua de Nossa Senhora de Sant’Ana, a santa que o jesuíta enterrou nos pés do rio. A santa que saiu das profundezas do barro para andar de mãos dadas com o rio. E ela estava muito suja e machucada, cravada na areia, frente para o rio e de costas para o campo. A estátua tinha o rosto e as mãos para fora do chão, como se estivesse de joelhos rezando diante do poderoso Uruguai. A imagem Santa Ana estava enterrada bem num passo, uma cruzada de animais selvagens, estrada construída em pegadas no meio do mato de árvores baixas. O caminho feito pelos animais formou uma trilha que atravessava, de ponta a ponta, o arvoredo, indo de uma sanga na pradaria, até a margem do rio.
Em pouco tempo o passo se tornou um local de passagem das pessoas que se aventuravam pela região e de acampamentos de toda ordem de seres humanos. É que a história da Santa, que protegia todos que ali dormiam, cruzou feito fantasma por muitos pagos e como contrabando ela desrespeitou as fronteiras.
O Passo da Santa era um lugar seguro, uma cruzada protegida pela santa que saiu do rio para proteger a terra.
E por décadas o passo onde a santa foi encontrada foi o refúgio de todo tipo de pessoas, migrantes, fugitivos, contrabandistas, sesmeiros. Algumas décadas depois, com o fluxo constante de pessoas, o lugar foi se enchendo de moradores fixos. Famílias que, por motivos desconhecidos, resolveram se arranchar em definitivo aos pés da Santa Ana. O número de pessoas foi aumentando até o passo virar um pequeno aglomerado de casas de pau-à-pique e casebres de torrão de barro.
Os pequenos ranchos eram as moradas de changadores, peões, pescadores e outros mestiços gaúchos acostumados a toda a lida. As pessoas que se estabeleceram no local, seguiram com a mesma fé. Sempre acreditando que, naquela parte da costa do rio, exatamente onde a estátua foi encontrada, seria um lugar abençoado, quase que como um lugar santo, ungido pela própria avó do menino Jesus. E por isso, cada vez mais homens e mulheres resolveram se estabelecer naquele passo em definitivo, cravando no chão as raízes de suas vidas. Pois ali, estariam para sempre protegidas das enchentes e dos ataques das tribos indígenas e dos castelhanos.
O pequeno vilarejo virou lugar de parada dos sesmeiros que chegavam e dos tropeiros que partiam.
Um ponto de encontro de contrabandistas do Uruguai e Argentina e paradouro de soldados portugueses e espanhóis que ansiavam pela morte.
Na época das enchentes, o passo virava um paradouro de embarcações que ali faziam o desembarque de mercadorias que vinham de Buenos Aires e das balsas de toras e pranchões que desciam de São Borja. E nas épocas de seca, uma benção da santa se jogava por sobre as pedras negras da margem do rio. Era chegada a época do vau, os meses em que o rio baixava o nível de suas águas, permitindo que naquele trecho se fizesse a travessia sem a necessidade de balsas.
Por vezes, quando o rio ficava muito baixo, era possível que animais e pessoas fossem andando, num piso de areia e pedras, até quase a sua metade. Os homens cruzavam com a água pelo peito, bastando uns poucos metros de nado pelo canal até o chão do outro lado. Nessas épocas, era por ali que cruzavam as eguadas xucras e os grandes rebanhos de gado manso. Nos dias de guerra, cruzavam também as tropas de soldados em direção à glória, assim como, as tropilhas de gentes em busca de vidas menos sofridas.
Com o passar dos anos, o pequeno vilarejo, que foi construído ao redor da imagem santa, ganhou um nome, ele ficou conhecido como o Passo de Sant’Anna. Tempos depois, com a fundação da cidade de Sant’Anna do Livramento, para se diferenciar da nova cidade, o lugar virou Sant’Ana Velha.
Pelos idos de 1840, devido outra grande enchente do Uruguai, o povoado precisou mudar de lugar, mas não abandonou a margem do rio. A vila subiu em romaria a correnteza, foi na direção do Imbaá. E no novo lugar ela cresceu e se tornou uma bela cidade, hoje chamada de Uruguaiana, misturando e comungando em seu nome, definitivamente, o rio e a santa.