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DEMOCRACIA EM VERTIGEM por Orlando Fonseca

Documentários políticos não costumam ser, de imediato, um apelo à emoção. Mas confesso que, em diversos momentos, assistindo ao belo trabalho de Petra Costa senti-me tocado, quase me dispondo às lágrimas. Foi por pouco, embora Democracia em Vertigem tenha fortes componentes que favoreçam o afloramento da sensibilidade do espectador. É difícil permanecer impassível ao longo dos 121 minutos que duram a narrativa cinematográfica, disponibilizada na Plataforma Netflix.

No conhecido poema “Traduzir-se”, o poeta Ferreira Gullar projeta um sentido existencial para o termo “vertigem”:

Uma parte de mim

é só vertigem;

outra parte,

linguagem. 

 

Pelo que se pode deduzir da proposição poética, somos feitos de uma porção em que a expressão só pode ser de outro teor que não o das palavras. Quando em relação com o mundo, com a realidade circundante, com a história – em especial a história recente, aquela em que nos vemos imersos -, podemos pôr a termo o que vemos, somos e sentimos. No entanto, como foi o caso de ser espectador chamado a me integrar ao que via pelas lentes da jovem cineasta, a parte de mim convocada não poderia responder de outra forma. Há vários recursos, tanto da técnica, quanto do conteúdo, que emulam, em minha mente, o sentido existencial que o termo do título do documentário tem no poema de Gullar.

O longa é apresentado em primeira pessoa. Não por acaso. A autora é neta de um dos fundadores da Andrade Gutierrez, uma das grandes empreiteiras envolvidas em escândalos de corrupção investigados pela Operação Lava Jato. Este fato a coloca entre os grandes acontecimentos do país, e não falo da seção policial, mas tendo em vista os empreendimentos bilionários da família. No entanto, por outros motivos ela se insere nos obscuros meandros da vertiginosa história brasileira. Ela é filha de Manoel Costa e da jornalista e socióloga Marília Andrade, os quais, nos anos 1970, foram militantes de esquerda, ligados ao PCdoB. Portanto, sua familiaridade com os eventos marcantes das últimas décadas, desde a redemocratização – ela nasceu em 1984, ano da Luta pelas Diretas – até a eleição de um candidato da extrema-direita vão além de um termo que definisse a sua presença próxima dos acontecimentos.

Assim como o livro que contém o citado poema do Gullar chama-se Na vertigem do dia, as cenas históricas e a inserção da narradora se dão “no calor da hora”. Por isso minha identificação com os fatos e a voz serena da narração. Longe do que vivemos, no tempo e no espaço, a poesia – como no dizer do poeta americano, Ralph Waldo Emerson – é o que se sente na tranquilidade. Também percorri as ruas do centro da minha cidade, com meu filho mais velho na garupa, fazendo coro aos que pediam eleições diretas para presidente, em 1984; também caminhei ao lado dos meus filhos, pedindo ética na política e o impeachment de Collor; estive nos comícios do Lula, e lamentei a vitória de um candidato que representa tudo o que não aprovo como valores da democracia. Perpassou em minha mente, e em meu coração, o conteúdo político envolto em uma atmosfera pessoal, numa análise – ou uma catarse(?) – da ascensão e queda dos meus candidatos preferenciais, e a espiral vertiginosa da polarização em que nos vemos metidos desde então.  A beleza do documentário reside em sua capacidade de resgatar esses momentos cruciais na experiência de quem, minimamente, esteve atento às convulsões populares da República, após a redemocratização.

Não sem mérito – e até para orgulho nosso – o jornal New York Times inclui Democracia em Vertigem numa lista de melhores do ano, junto a outros sete trabalhos de qualidade. Um dos comentaristas do jornal americano elogia o filme, tratando-o como “uma crônica de traição cívica, abuso de poder e também de desgosto”. A meu juízo, a vertigem, na qual o título do documentário situa a democracia brasileira, esta que vivemos no dia a dia, que temos de tocar em frente, abarca o valor existencial do brasileiro. Ao menos aquele que se dispõe a pensar para além de seu umbigo. Se há momentos difíceis de situar a conjuntura em argumentos, em palavras, ainda assim, é questão de vida (ou morte) seguir acreditando na potência do coletivo.

 

Orlando Fonseca, nascido em Santa Maria‚ em 7-10-55. Professor Titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura – PUCRS, 1997 e Mestre em Literatura Brasileira – UFSM, 1991. Exerceu os cargos de Secretário de Município da Cultura (2001-2004) na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM (2010-2013). Cronista em mais de um veículo de Santa Maria, desde 1977, atualmente do Jornal Diário de Santa Maria e do Portal Claudemir Pereira. Tem vários prêmios literários, destaque para o Prêmio Adolfo Aizen, categoria aventura, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia, em 2002; também finalista no Prêmio Açorianos, da Prefeitura de Porto Alegre, pelo mesmo livro, em 2002. Autor de várias obras em gêneros diversos, destaque para Poço de Luz, novela, IEL, 1989; O fenômeno da produção poética, ensaio, Editora da UFSM, em 2001; Da noite para o dia e Na marca do pênalti, novelas juvenis, WS Editor, 2001 e 2011, e o Musical Imembuy, com músicas de Otávio Segala. Atualmente exerce o cargo de  Presidente do Conselho Municipal de Políticas Culturais.

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