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E SE AS VACAS VOTASSEM? por ROGER BAIGORRA MACHADO

Uma crônica de Roger Baigorra Machado

Uruguaiana tem um rebanho bovino de aproximadamente 355.000 cabeças de gado e mais de 6 mil famílias vivendo com renda per capta menor que oitenta reais por mês. Homens, mulheres, idosos e crianças que não conseguem consumir carne diariamente. Vivem na borda da linha da fome.

A contradição existente entre os interesses do campo e da cidade é só mais uma histórica contradição da Fronteira Oeste e Campanha. Existem muitas outras contradições que estão para além de pratos vazios de pessoas rodeadas por carne de gado, contradições profundas e que se manifestam fortemente na escolha das representações políticas regionais.

Romanticamente, acreditamos que a escolha política do eleitor por um candidato é feita exclusivamente a partir de ideais e projetos, mas na prática, no calor do vento da rua, em toda eleição, a política dos que são eleitos é feita por quem tem dinheiro para investir em campanhas, em carreatas, em bandeiras e pagar pessoas para distribuir santinhos. Política virou sinônimo de dinheiro.

Existem àqueles que fazem campanha com os amigos, com a ajuda de parentes e apoiadores, mas estes raramente são eleitos. As ideias e os projetos ficam muitas vezes num segundo, relegadas por vezes, até terceiro plano ou sequer são vistas como importantes. Mas se projetos e ideias não são importantes, o que seria? Às vezes, um abraço com perfume cheiroso, um sorriso, a mão no ombro, um tchauzinho de cima do caminhão e a promessa de uma lâmpada no poste já bastam para ganhar o voto.

Por essa lógica, você deve intuir que os pobres estão fadados a não ter representação nos espaços políticos, ora, se não possuem dinheiro para se alimentar, terão dinheiro para fazer campanha? E você está certo. Não terão como fazer uma campanha eleitoral. Veja você aí na sua cidade, quantas pessoas consideradas pobres estão na câmara de vereadores ou na prefeitura?

Uma das formas de mudarmos isso, talvez, fosse organizarmos cotas de representação política nas câmaras municipais em função da realidade populacional de cada município.

Tendo por base dados dos censos do IBGE, cada cidade escolheria os tipos de cotas de representação que melhor atendem sua composição populacional.

Numa cidade onde a metade da população é negra, por exemplo, metade das cadeiras na Câmara poderiam ser para negros. Numa cidade onde 35% da população é considerada pobre, 35% das cadeiras poderiam ser para candidatos de baixa renda e assim por diante. Um amigo, ex-candidato à deputado, um dia me disse: “Essa tua ideia é ruim, pois os políticos serão eleitos com base na pobreza e não no intelecto”. Respondi com uma pergunta: “E hoje, um político é eleito pelo seu intelecto ou pelo seu poder econômico?”. A conversa acabou ali. A ideia de que pessoas pobres sejam inteligentes e estejam na política é coisa que não agrada muito.

Nas vésperas da última eleição, participei de um programa de rádio, onde a outra participante afirmava que para ingressar na vida política, a pessoa candidata tinha que, no mínimo, ter curso superior. Na hora lembrei à ela que a maioria dos políticos indiciados por corrupção têm cursos superiores. Formação acadêmica não é sinônimo de inteligência ou ética. No fim, tratava-se apenas de uma mulher branca com curso superior, ali, defendendo, naturalmente, sua casta. Essa elitização da política, de torná-la um espaço cativo dos interesses de quem tem poder econômico é a regra em nosso país.

Mas não são apenas os pobres que são estratificados da lógica política, o mesmo ocorre com outras minorias sociológicas, com os índios, com os deficientes, com os negros, com os gays e com as mulheres. Especialmente com elas, a sociológica maioria silenciada das mulheres.

Em Uruguaiana, por exemplo, das 11 cadeiras de vereadores disponíveis, em apenas 03 delas existem mulheres sentadas. E vejam que a minha cidade tem mais da metade da população composta de mulheres, logo, se houvesse cota de representação, 53% das cadeiras poderiam ser ocupadas por elas, equilibrando nisso as outras variáveis como renda e cor, por exemplo. Poderíamos ter mulheres negras, mulheres pobres, mulheres brancas, mulheres gays em mais da metade das cadeiras da câmara de Uruguaiana. Mas claro que isso que proponho é um “raio em céu azul”, um disparate para a maioria dos políticos que estão eleitos, quase todos brancos, héteros, homens ou religiosos.

“Ora, mas as mulheres que votem em mulheres e pronto!”. Alguém poderá dizer com a boca cheia de simplicidade ingênua.

Seria o ideal. O problema é que o machismo também é estrutural em nossa sociedade e ele atravessa a vida de diferentes formas, ele atravessa a religião, a cor da pele, a classe social, ele não se importa com essas coisas. O machismo paira por sobre tudo. Daí que temos mulheres ricas e que são machistas, mulheres pobres e que são machistas, negras e machistas, religiosas e machistas, pois foram condicionadas a acreditar no discurso da inferioridade feminina.

E na hora do voto, mulheres se negam a votar em outras mulheres, pois os homens que lhes rodeiam “ensinaram”, de tantas diferentes formas, que as mulheres são inferiores e incapazes para quase tudo, salvo cozinhar e lavar roupa.

As meninas crescem ouvindo que mulheres são incapazes de sustentar a família, senão através de subempregos, logo, a missão da vida é se casar; Que são incapazes de estudar; São incapazes de trabalhar; São incapazes de manobrar um carro; São incapazes de jogar ou entender sobre esportes; E nessa vida incapacitante, elas também são incapazes de estar na política.

E se as mulheres se atreverem ingressar na política, dirão os machistas que “é certo que elas devem ser comunistas, machorras, mal amadas, vagabundas”, que  “são essas Monoelas, essas Marias do Rosário, essas Erundinas, essas Melchionas”. E de novo, na hora do voto, é o machismo que aperta o botão com a lembrança do perfume cheiroso no céu da boca.

Infelizmente, tanto o machismo, quanto o racismo, a homofobia e tantos outros comportamentos preconceituosos são estruturantes em nossas cidades e país. Eles facilmente cruzam de um lado para outro, de uma classe social para outra, de um grupo religiosos para outro, são hegemônicos, são ideológicos e por isso são dominadores. Silenciosos e sempre presentes.

E assim, a política segue sendo um espaço de homens, de brancos, de héteros, de pessoas de classe média alta, de políticos profissionais e de religiosos fundamentalistas.

“Ora, mas então não voto mais!”, diria o pseudo anarquista após um gole de cerveja.

O voto ainda pode ser um caminho, ele sempre pode ser um caminho, só que ele exige um pouco de consciência de vida, de espaço social, de classe, exige organização em prol de representatividade.

Voltemos às seis mil famílias em situação de pobreza que vivem em Uruguaiana. Se usarmos uma média de 4 pessoas por família, teremos aí 24 mil uruguaianenses em situação de miserabilidade. Digamos que só a metade vote, logo, 12 mil votos. Se fosse possível organizar e distribuir esses votos, com base no resultado da última eleição, eles seriam capazes de eleger 10 vereadores.

Claro, estamos brincando com uma possibilidade ilusória, existem muitas pedras variáveis no caminho.

Mas e se estas famílias quisessem realmente eleger alguém que lhes representasse? Como que por exemplo, quisessem eleger o seu líder comunitário, sem depender do quociente eleitoral e da sorte, elas conseguiriam?

Sim, conseguiriam.

Poderiam votar em apenas dois candidatos e ambos seriam eleitos com 6 mil votos cada, seriam eleitos mesmo se fossem de um partido pequeno. Mas como eu disse, o machismo, a homofobia, o racismo, o fundamentalismo religioso são fantasmas que atravessam as paredes das nossas casas. E assim, enquanto o preço do gás aumenta, seguimos com uma política de homens, de brancos, de héteros e de religiosos.

Em Uruguaiana o pobre elege o rico e a mulher elege o homem. Mas calma, fique tranquilo que aqui para esse lado do mapa nem tudo é contradição, aqui em Uruguaiana tem coisas que fazem sentido, aqui o religioso elege o religioso. Rico elege o rico. Paciente elege o médico. Ouvinte elege o radialista. Nossa sorte é que os 355 mil bovinos ruminando ao redor da cidade não votam, senão teríamos 11 donos de frigoríficos eleitos.

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.
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