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Atemporal? | por Mel Inquieta

crônica em verso e prosa

Como quem morde o tempo
Acordou desinteressada da vida
O chá não tinha o mesmo sabor
Do açúcar de ontem
A primavera parecia outono
E o cão que latia à tarde
Agora late pela manhã

Preparou a sopa sem a mesma dose de sal
Comeu com menos gosto
Deu os restos aos cães que não latem mais.
Costurou a barra de um velho vestido
Talvez o tempo tenha lhe tirado o tamanho um centímetro a menos.
Precisava comprar calçados novos…
Saiu em busca do novo
Vestindo velhos conceitos

Trouxe uma muda para casa.
Uma planta que silenciosamente crescia e encarava sem alarde dos cães.
Comia sua sopa sem sal enquanto vigiava o crescer.
Dormiu, na varanda, até o dia amanhecer.

Seus pés pareciam inchados de tanto sofrer.
A vida foi leve e por momentos injusta.
Tinha pregos em sapatos largos.
Agora só podia usar pantufas que calorosamente amaciavam o andar e seus calos.
Um banho-maria numa noite de São João
As unhas descascadas pediam: mude o tom!
Roeu as ingratas!

Rosnou contra o tempo, latiu ferozmente como um cão que nunca se cala, jogou fora com força a água do escalda-pés. De chambre, pantufas e pijama correu rumo ao milharal em busca da mata que não plantou.

Era cinza o céu, poucas mudas em meio ao milharal, plantou assim mesmo as sementes que carregava no bolso. Enterrou os próprios pés, na terra, como se pudesse curar todas as suas feridas. Movimentou o corpo como se seus braços fossem galhos. Seria ela uma árvore seca? Onde estão as novas folhas verdes que deveriam estar brotando entre meus dedos? – se questionava enquanto tentava visualizá-las. Uma suave chuva caía, encostava em seus cabelos, ombros e pijama azul.

Estaria pronta para brotar?

Retornou para casa com medo de uma nova gripe, tomou um banho quente, colocou fogo na lareira-uma lenha de cada vez. Preparou um chá, degustou de um livro e olhou fixamente o fogo.

Como o que me aquece também pode destruir?

Sentiu o conforto dos pés na pantufa, o ar aquecido em volta na noite fria, o chambre suave e o balanço da cadeira de balanço que passou de geração em geração em sua família.

Estariam morrendo os animais das terras virgens se tivéssemos nos balançando menos?

Ligou a TV, notícias de queimadas e furacões embrulharam seu estômago. Seriam os furacões o suco gástrico da terra tentando destruir o que lhe destrói? Vomitou!

Lembrou das histórias de família que ouvia, quando era criança, sobre seus antepassados que vieram ao Brasil em busca de novas oportunidades e começaram a cultivar a agricultura para sobreviver. A terra era sua mãe, sua amiga, seu sustento. Mas quantas árvores arrancamos dela para ter esse milharal?

Mais um alerta foi dado na TV, rádio, amigos, parentes ligavam preocupados. Precisava sair de lá, mas como abandonar tudo que lhe foi dado e passado?

O uivo do vento aumentava, quanto mais ele se aproximava mais ruídos fazia, parecia cada vez mais próximo e nítido os gritos das índias estupradas, dos animais queimados, dilacerados, das árvores queimadas derrubadas, do tanto desrespeito à terra.

Pode ver os olhos do furacão, as injustiças foram incalculáveis que nem toda sua linhagem poderia somar para comparar. E com muito respeito ao inimigo, se curvou, sabia que era tarde para pedir perdão. Viu seu milharal ser arrancado pelo vento, seus animais voarem como nunca tinha visto, nem em filme ou desenho animado. Colocou um fone de ouvido uma música que lembrava sua mãe, um casaco pesado. No bolso de dentro, o celular, uma touca de lã que foi de seu pai, obrigou-se a colocar os sapatos apertados.

Correu para seu carro, ao virar a chave e dar a partida, o furacão se aproximou. Pensou, ele só pode estar dizendo:

– Vai fugir agora, seu verme?

E antes que visse a força do vento, seu coração parou de enjoo, medo e culpa. Seu carro e seu corpo foram arrastados até um rio que logo desemboca no mar. Seu corpo dilacerado foi útil, pois alimentou animais desesperados que lutavam para sobreviver à catástrofe. Sua última mensagem de voz enviada a um parente não era decifrável, somente o som do Planeta que na busca pela sobrevivência engole e vomita seus vermes sem culpa, porque não é dá sua natureza suportar o que lhe destrói.

 

Mel Inquieta (Melina Guterres)
Jornalista, escritora, produtora e fundadora da Rede Sina.

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