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Frame do filme OS ENFORCADOS - Foto de Divulgação

OS ENFORCADOS (2024), crítica por Dario Pontes

A Mostra Competitiva de Longas da Première Brasil começou com o pé direito com o excelente thriller Os Enforcados, da Gullane Filmes.

O diretor e roteirista Fernando Coimbra, que em 2013 havia nos presenteado com o primoroso ‘O Lobo Atrás Da Porta’, põe novamente suas garras à mostra. O longa já começa provocando o espectador com a seguinte citação ..

“…durante a Sakaia babilônica, quando mestres e servos trocavam de lugar na folia saturnal, um criminoso condenado era vestido com as roupas do rei, sentado no trono, e recebia o título de Zoganês. Durante cinco dias comia e bebia à vontade, desfrutava das concubinas do rei e dava as ordens que lhe apetecia. No quinto dia era despido, açoitado e enforcado.”
(Joseph Fontenrose em The Ritual Theory of Myth)

A história d’Os Enforcados foi costurada lentamente, por anos a fio. O resultado é um roteiro pra lá de estiloso, de tessitura dramatúrgica clássica, com os pés fincados na mitologia grega e referência clara, porém não óbvia, à tragédia shakespeariana, especialmente Macbeth . Não à-toa, este roteiro foi premiado no Festival de Sundance em 2017 com o Global Filmmaking Award .

Valério e Regina são um casal aparentemente normal de classe alta no Rio de Janeiro dos tempos atuais. Pertencem à máfia do jogo do bicho, dos caça-níqueis, das escolas de samba. E estão fazendo uma grande obra na mansão onde moram, na região montanhosa da cidade.

Os gastos são enormes, e uma crise financeira acaba por se instalar. Valério é o próximo magnata na linha de sucessão e, influenciado e ajudado por Regina, comete o assassinato de seu tio Linduarte, com intuito de apossar-se dos negócios da família. Esse crime acaba conduzindo Valério numa espiral crescente de perseguição e violência sanguinária, enquanto Regina mergulha numa escalada paranoica que a leva galopante ao inevitável desfecho trágico. Será o fim da relação do casal ??

Os personagens são moldados com rigor cirúrgico: têm biografia, personalidade, vícios, cacoetes, cicatrizes .. mas não se demoram pra tomar atitudes. Os momentos de respiro são poucos. Do meio pro fim é quase um plot de ação , com inúmeras reviravoltas e surpresas uma atrás da outra. Tudo cuidadosamente alinhavado para capturar de modo inexorável a mente do espectador, nos dando a sensação que compartilhamos um sonho, ou melhor, um pesadelo, e estamos prestes a acordar. Exatamente como em Macbeth.. E dá muito certo. Aqui, ninguém é confiável. Todo mundo trai todo mundo. Todos são enforcadores e enforcados. Acabou o Carnaval. Não há dinheiro limpo. Todo dinheiro é sujo. Eu perguntei ao malmequer se meu bem ainda me quer. Ele então me respondeu .. que não. Um grande vilão? Se houver, talvez saibamos, ao final.

O elenco dá um banho de competência. Todos os atores entregam ao máximo e parecem esculpidos sob medida pra seus papéis. A dupla protagonista, Iranir Santos e Leandra Leal, esbanja charme e talento. Ambos são impecáveis na construção de seus personagens, conseguindo equilibrar intensidade e leveza, sofisticação e brutalidade, tudo com a plenitude inerente aos grandes atores.

Os veteranos Irene Ravache e Stepan Nercessian também brilham na telona, mostrando que a maturidade tem sim sua cota de sabedoria.

Dezoito nomes de peso assinam a produção executiva do longa, que é uma co-produção internacional da Gullane Filmes em parceria com a Fado Filmes, produtora de Portugal. Sem dúvida é o esmero coletivo da produção que garante a excelência da obra, criando uma ambientação digna de um filme épico, sem precisar de fato ser.

Ulisses Malta Jr. entrega uma fotografia requintada, pretenciosa, com planos milimetricamente enquadrados, luz quente e tons de sépia, conferindo um ar vintage e atemporal ao filme.

A direção de arte de Caio Costa e Rafael Torah é primorosa nos detalhes, remetendo a audiência aos grandes filmes de Máfia. As cenas na Escola de Samba são um presente aos nossos olhos e ouvidos.

A montagem/edição de Karen Harley é arquitetada com simplicidade certeira, alcançando o ponto exato da fluidez necessária para prender de forma hipnótica o olhar da plateia durante as mais de duas horas de projeção.

A trilha musical é outro ponto que merece destaque. Passeia com ousadia entre o brega e o chique, e fica mesmo muito chique ao resgatar clássicos populares que dialogam com o arco dramático dos personagens. É o caso da marchinha ‘Malmequer’, lançada por Orlando Silva no Carnaval de 1940. Do mega-hit de 1982 ‘Muito Estranho’ de Dalton, também conhecido como ‘Cuida Bem De Mim’. E de uma versão instrumental de ‘All By Myself’, sucesso mundial de Eric Carmen no ano de 1975. Tudo fica muito chique nesse filme. Vocês vão ver.

Os Enforcados é um bom exemplar de ‘filme de gênero’ que supera nossas expectativas, revelando que o cinema brasileiro vive um momento de excelência e primazia, e está pronto pra conquistar o mercado internacional.

O filme fez sua estreia mundial na prestigiada sessão Special Presentations do Festival de Toronto (TIFF 2024), com o título em inglês ‘Carnival is Over’ (Acabou o Carnaval). O lançamento em circuito comercial está previsto para 21 de novembro próximo.

Não Percam !!

Dario Pontes
05/10/2024
(filme visto no 26° Festival do Rio)

 

 

 

DARIO PONTES: Crítico. Especialista em Cinema pela Fundação Getúlio Vargas. Médico psiquiatra e psicanalista no Rio de Janeiro. Paraibano de Campina Grande radicado há 36 anos no Rio. Crítico da Rede Sina no 26° Festival de Cinema do Rio.

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