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Sobre a CARTA À RAINHA LOUCA, de Maria Valéria Rezende | por Liana Timm

Maria Valéria Rezende é uma escritora fora do sistema. É freira, comunista, seguidora de Paulo Freire e vive fora do eixo Rio/São Paulo. Aprendemos desde cedo a pensar neste tipo de religiosa como alguém vivendo à margem da vida, com repressões e cerceamentos. Mas é a própria Maria Valéria Rezende que nos esclarece: fiz apenas três votos de liberdade e explica: o de castidade, o de pobreza e o de obediência. Sem estar presa à família nem a ninguém, pode ir aonde quiser e, sem uma profissão específica, pode obedecer aos apelos que a vida lhe fizer.

A escrita praticada por ela, após os 60 anos de idade, fez uma reviravolta em sua vida. Ao ganhar prêmios importantes, sua figura ocupou o imaginário dos leitores e da literatura brasileira de forma vigorosa.  Dos livros que li de Maria Valéria Rezende, destaco CARTA À RAINHA LOUCA. Instigante e não linear, o livro tem um texto que poderia ser definido como fora do tempo. Inspirado num documento encontrado no Arquivo Ultramarino de Lisboa, ele conta a história de uma mulher, Isabel Maria, que mantinha ilegalmente, em Minas, uma ordem religiosa para acolher sobrantes, ou seja, mulheres que não faziam parte do sistema da colônia, pois não tinham dotes para casar e não podiam ser escravizadas por serem brancas.

Há textos e textos. Uns, rejeitamos desde o início; outros nos conquistam de imediato, e a leitura é prazerosa e de qualidade. Se ele se insere no mundo em que vivemos, ainda melhor; acontece um entrelaçamento da vivência individual e coletiva do leitor.

CARTA À RAINHA LOUCA é uma história do século XVIII, mas fala todo o tempo sobre os mesmos problemas que ainda não superamos, assegurando sua atualidade. O Brasil colonial exerce um fascínio muito grande sobre mim. Principalmente a vinda da família Real e a Missão Francesa, o que não é o caso do texto em questão, pois esses acontecimentos datam de 1808 e A CARTA é escrita entre 1789 a 1792. Reis e Rainhas sempre me intrigaram. Penso neles como poderosos e ao mesmo tempo tão escravizados quanto os próprios escravos. Não é de graça que Dona Maria foi apelidada de Rainha louca. Apesar de só ser citada neste romance, a Rainha Louca traz para o enredo toda uma carga simbólica de poder, difícil de ser ignorada. Aliás, ela foi tema de uma exposição, no ano de 2022, na Biblioteca Nacional e é possível compreender sua vida, nada glamourosa.

Isabel das Santas Virgens, a narradora-personagem do romance em questão, faz da Rainha a sua tábua de salvação. A carta endereçada a ela tem como objetivo conseguir a liberdade de uma reclusão que ela não reconhece. Isabel acreditava que, pelo fato de serem duas mulheres, haveria uma natural cumplicidade entre elas, pois as duas enfrentavam os mesmos problemas de desvalorização, abuso, violência, desigualdade de gêneros, discriminação, assédio, machismo, exploração, patriarcado, opressão e dominação. Isabel acreditava que o poder decisório da monarca a absolveria.

A CARTA, em sua escrita, é uma forma de catarse da narradora para resistir à situação angustiante em que se encontrava e para elaborar o pensamento. Mesmo não tendo certeza de que a missiva chegaria a seu destino, não desiste de escrevê-la, transformando a palavra na sua salvação. A linguagem utilizada é uma mescla de barroco tardio brasileiro com a linguagem contemporânea. Ao criar a atmosfera da época e criticar seus costumes, vamos passando pelas partes do romance, imaginando as cenas descritas cinematograficamente. Na trama, a autora cita algumas personagens da nossa história, destacando o poeta barroco Gregório de Matos (1626/1696) e Tiradentes (1746/1792), o mártir da Inconfidência Mineira. Os protagonistas da Inconfidência, a revolta contra os abusos da Coroa, foram inocentados pela Rainha, menos um, o Tiradentes, enforcado e esquartejado como uma pena exemplar em 1792.

Quando Isabel das Santas Virgens foi presa no Convento do Recolhimento da Conceição, em Olinda, ela começa a escrever a Carta. Tinha esta expertise, porque aprendeu a escrever com o Padre-mestre, junto à sinhazinha Blandina, filha dos senhores da casa, quando havia sido tirada da senzala onde crescia e levada para a casa grande a fazer companhia à menina. Isabel não era nem passiva nem dócil, tinha consciência de seu estar no mundo e, ao refletir, fazia surgir uma oposição entre a cultura oficial e os saberes adquiridos pela experiência. A narrativa permeia, desde o início, as reações de poder entre os aparelhos ideológicos, a Igreja e a Coroa, mostrando a relação assimétrica entre o explorador e o explorado. As críticas que porventura fossem ofender a colônia, Isabel traçava uma linha em cima das palavras como uma forma de censura, dificultando a leitura dos trechos.

As duas primeiras partes não são cronológicas; a terceira é mais descritiva com fatos de sua vida, concatenados e claros; a quarta e última parte é conclusiva e detalhada de maneira a enriquecer a história com novos elementos. Aos 15 anos de idade, Isabel sai do Engenho do Paraíso para acompanhar Blandina ao Convento do Desterro em Salvador. Blandina foi confinada pelo pai, como castigo por ter sido engravidada de Diogo Lourenço de Távora, um rapaz que se encontrava com elas durante os passeios que as duas faziam pelos campos. Ao longo de um tempo, ele seduziu a ambas, e Blandina fica grávida. Acompanham ao confinamento, para servir Blandina, duas escravas: Engrácia e Bernarda. Isabel não sendo destacada para ir junto com sua sinhazinha, fica desolada, então falsifica uma carta em nome de Dom Afonso, pai de Blandina, autorizando a sua permanência junto à filha.

As duras condições de vida que encontravam no Convento forçou Isabel a criar circunstâncias que possibilitassem a compra de alimentos e roupas para Blandina: trabalha para a Abadessa do Convento, escrevendo o que fosse necessário aos negócios da monja. Com o dinheiro ganho, ia às compras. Um dia, ao chegar uma carta ao Convento endereçada à Blandina, Isabel, imaginando de quem seria, impediu que chegasse às mãos da amiga. Mas Blandina intuiu o conteúdo e, cada vez mais melancólica, acaba morrendo de amor. A morte de Blandina fez com que não houvesse mais motivo das três continuarem no Convento. Como Engrácia e Bernarda já eram velhas, resolveram ficar servindo à Abadessa, e Isabel vai embora.

Na rua, Isabel se traveste de homem para trabalhar forjando documentos oficiais da Coroa, sempre auxiliada por seu fiel amigo Gregório, antigo empregado de seu pai, pois uma mulher não podia fazer aquele tipo de trabalho. Começa a receber encomendas também de poemas, feitos por ela e misturados com os de Gregório de Matos, mas se descuida e é descoberta. Um dia, cavalgando com alguns homens pelos sertões, Isabel fica menstruada e quando salta da montaria é desmascarada e presa. Libertada por Gregório, que a ajuda a fugir, volta para a rua fazendo o mesmo que antes.

Saía somente à noite, mas cansa de ficar escondida e volta às ruas de dia, agora vestida de mulher, como beata. Quando se dá conta, conquista muitas seguidoras e recebe de doação uma casa onde se estabelece com as crentes, criando um estabelecimento de caridade. Como não tinha licença, é presa e acusada de criar o próprio convento sem autorização da Coroa. É levada ao convento do Recolhimento da Conceição em Olinda, já que, na época, não tinha prisão para mulheres. Ali permanece por muitos anos esperando ser deportada e julgada em Portugal, mas acaba sendo esquecida pelas autoridades da colônia. A partir daí, começa a escrever para a Rainha Louca de Portugal e Algarves, pedindo liberdade.

Pelo tempo em que está presa, Isabel começa a perder as esperanças de que a carta chegue às mãos da Rainha. Começa com alucinações, aventando a possibilidade de entregar a carta nas mãos de D. Maria, rainha de Portugal. A narradora e protagonista Isabel, em muitos momentos do romance, é clara; em outros, confunde o leitor pelas idas e vindas da narrativa, o que nos faz ver o quanto oscilante está o equilíbrio emocional da personagem. Entretanto, o entendimento individual da literatura cria sempre novas versões. Até o autor, depois da obra pronta, se transforma em mais um leitor de si mesmo. Como nos diz a própria Maria Valéria, e assino embaixo: “Eu inicialmente só sei o que escrevo nas linhas, mas o que está nas entrelinhas são os leitores que me ajudam a ver.”

A RAINHA LOUCA

Editora ALFAGUARA

Ano: 2019

Maria Valéria Rezende | uma das escritoras mais talentosas da literatura brasileira.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Val%C3%A9ria_Rezende

 

 

LIANA TIMM | Artista multimídia, arquiteta, poeta e designer. Vive em Porto Alegre com atelier em permanente ebulição. É atual presidente da AGES – Associação Gaúcha de Escritores. Sua produção mescla manualidade e tecnologia, conceito e materialidade, história e contemporaneidade. Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1976/96) e mestre em Educacão, transita pelas artes visuais, pela literatura, pelas artes cênicas e pela música. Realizou 74 exposições individuais, sendo as mais importantes: Pinacoteca do Estado de São Paulo/SP/Brasil, Memorial da América Latina/SP/SP/Brasil, Centro Cultural Correios e Telégrafos/Rio de Janeiro/RJ/Brasil, Museu Brasileiro da Escultura/São Paulo/SP/Brasil, Fundação Cultural do Distrito Federal/Brasília/DF, Museu da Gravura cidade de Curitiba/PR/Brasil, Museu de Arte do Rio Grande do Sul/Porto Alegre/RS/Brasil. 32 shows musicais em Porto Alegre e interior do Rio Grande do Sul/Brasil, em Montevideo/Uruguai, em Miami/EUA e em Toulx Sainte Croix/França. Publicou 64 livros, destes 18 são individuais de poesia sendo que o último reúne sua produção poética de 35 anos. Recebeu 17 prêmios nas diversas áreas de atuação. Desenvolve suas produções culturais e projetos editorias através da TERRITÓRIO DAS ARTES.

 

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