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A Ilha das Flores é aqui, por Cátia Castilho Simon

O curta-metragem do Jorge Furtado, Ilha das Flores, atualizou-se, na realidade de Porto Alegre, após as enchentes do último mês de maio. Explico. O filme lançado, em 1986, traz cenas emblemáticas e inesquecíveis para a sensibilidade geral de um público que parecia desconhecer ou ignorar as fissuras sociais.

Causou impacto e deu a real para muita gente, na época. Destaco, especialmente, o momento da compra dos tomates pela dona de casa e a posterior separação do que é impróprio para a sua família e serviria para famintos e porcos no grande lixão. Maio e junho do ano corrente concretizaram-se inúmeros lixões espalhados nas áreas atingidas e não priorizadas na cidade. E os porcos, não estão na disputa dos restos, mas no poder, relembrando o enredo de A revolução dos Bichos, de George Orwell.

Ao mesmo tempo em que inúmeras pessoas desoladas largavam às calçadas, por orientação do prefeito, móveis, utensílios, roupas e tudo o mais atingido pelas águas e lama da enchente, outros seres humanos aguardavam para fazer a sua seleção. Levar para a casa o que era impróprio aos que detinham um poder econômico superior ao seu. O critério reitera-se, na sociedade dividida em classes, e conforme os contrastes se revelam expõem a ferocidade dessa organização. Nessa esteira, alguns recolheram objetos, produtos meia-boca para reapresentarem ao público como novos. Outra série de barbaridades se apresentou, aumentaram o preço de serviços e de itens de primeira necessidade para o enfrentamento da calamidade. No livro do Rafael Guimarães, A enchente de 1941, ele relata que houve prisões de comerciantes que subiram o preço de produtos naquele período. Hoje, entre os culpados, somente o inimaginável volume pluvial aceitou sua responsabilidade no desastre; os demais apontaram o dedo para alhures.

Tivemos também uma grande comoção e movimentos solidários em massa. Abrimos roupeiros, fizemos doações do que tínhamos acumulado ao longo das nossas vidas, fomos às lojas e compramos para pessoas queridas ou desconhecidas, fizemos pix a rodo. A classe média não faliu, nem perdeu a casa, quem perdeu foram os mesmos de sempre. Grandes também perderam, mas têm recursos para recuperarem-se. Alguns, mesmo com condições, querem que a Providência Divina, leia-se Governo Federal, entregue bilhões para reparar as perdas. Até mesmo os que agora administram o Aeroporto Salgado Filho, através da privatização, querem reparação do estado. E assim segue a humanidade: “todos são iguais, mas uns são mais iguais do que outros.”

 

Cátia Castilho Simon é Doutora em Estudos da Literatura brasileira, portuguesa e luso-africanas/UFRGS e escritora. Integra o Mulherio das Letras/RS, é vice-presidente cultural da AGES/ 2023 e 2024.
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