Arquivos HISTÓRIA - Rede Sina https://redesina.com.br/category/historia/ Comunicação fora do padrão Fri, 08 Dec 2023 13:38:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.4.4 https://redesina.com.br/wp-content/uploads/2016/02/cropped-LOGO-SINA-V4-01-32x32.jpg Arquivos HISTÓRIA - Rede Sina https://redesina.com.br/category/historia/ 32 32 O SETE ORELHAS. por ROGER BAIGORRA MACHADO https://redesina.com.br/o-sete-orelhas-por-roger-baigorra-machado/ https://redesina.com.br/o-sete-orelhas-por-roger-baigorra-machado/#comments Fri, 08 Dec 2023 13:08:31 +0000 https://redesina.com.br/?p=120428 O corpo de João Garcia Leal estava lá, pendurado e amarrado na grande figueira. E embora quente, há muito já não existia vida nele. Tinha os olhos abertos, quietos. Olhos imóveis, parados no tempo, na dor, no absolutamente nada. As moscas varejeiras, zumbindo faceiras, voavam rápido entre uma ferida e outra. Algumas caminhavam por dentro …

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O corpo de João Garcia Leal estava lá, pendurado e amarrado na grande figueira. E embora quente, há muito já não existia vida nele. Tinha os olhos abertos, quietos. Olhos imóveis, parados no tempo, na dor, no absolutamente nada. As moscas varejeiras, zumbindo faceiras, voavam rápido entre uma ferida e outra. Algumas caminhavam por dentro de um dos olhos abertos. Sem pressa, pisavam em cima da iris pálida, raspavam as patas dianteiras, como que se preparando para um banquete, depois, revezavam-se brilhosas da luz do sol no sangue escuro que escorria por detrás de uma das orelhas. 

Os braços de João, amarrados num galho, estavam estendidos acima da cabeça. Os dois braços, pobres braços, restavam como coisas irreconhecíveis. Em cada um deles havia um rasgo horizontal feito próximo aos pulsos, cortes que serviram como ganchos para que os dedos dos assassinos pudessem puxar com força a pele para baixo. Nacos de peles arrancadas. Os braços estavam nus, em carnes e veias. Da mesma forma, fizeram com a cabeça, dando um corte que cruzava toda a extensão da testa, indo de uma orelha à outra, por onde foi puxado para trás todo o couro cabeludo.

As costas, as pernas, as coxas, os pés, quase toda a pele, quase tudo tinha sido retirado.

O corpo do irmão de Januário tinha sido “despelado” na sombra da figueira e permanecia ali, assustadoramente, de olhos abertos. Era uma figura dantesca no meio do mato do interior de Minas Gerais. No peito de João, num buraco profundo, via-se o caminho de uma lâmina de faca que trespassara o coração.

Januário Garcia Leal, ficou um bom tempo parado diante do corpo do irmão morto, observando cada detalhe da crueldade que ele sofreu. Em silêncio, com os olhos vertentes em lágrimas, sentiu medo e ódio. E jurou diante de deus e do diabo, jurou diante do sertão e do mato, que os assassinos de João teriam uma vingança ainda mais brutal e odiosa. Januário prometeu a própria vida e alma ao demônio para que lhe fosse permitido destruir, com requintes da mesma crueldade, cada um dos assassinos que fizeram aquilo.

Vinda de São Paulo, a família Garcia Leal chegou na Capitania de Minas Gerais nos idos de 1770. O patriarca, Pedro Garcia Leal, chegou às terras do Brasil depois de migrar do Arquipélago dos Açores, onde nasceu por volta de 1722. No Brasil, tomou o rumo da Capitania de São Paulo, onde casou-se com Josefa Cordeiro Borba, em novembro de 1749, permanecendo em Mogi Mirim até por volta de 1768.  

No início dos 1770, o casal Pedro e Josefa resolveu tentar a sorte nas terras da Capitania de Minas Gerais, partindo junto com um grupo de bandeirantes que estava desbravando novos caminhos em busca de escravos fugitivos.

Em Minas, depararam-se com uma terra cheia de oportunidades, mas também cheia de perigos, violência e de pessoas em busca da última descoberta: O ouro. 

Muitas das terras por onde os Garcia Leal chegaram já possuíam donos. Posseiros e mineiros armados andavam pelos matos e rios. Bandoleiros assaltavam nas estradas abertas à facão no meio dos matos. Indígenas e escravos fugitivos atacavam na beira dos córregos. Mineiros chegados de todos os lados lutavam entre si para tomar conta de tudo que pudesse ter ouro. Com isso, a família Garcia Leal precisou seguir caminhando, ingressar sem parar no Brasil profundo, num mundo sem lei de uma Capitania desconhecida. Explorando um território que se tornava ainda mais inóspito quilômetro após quilômetro, assim, eles foram desbravando matas e morros, até que chegaram próxima de uma sesmaria de um padre e se estabeleceram num local chamado de “Talhados”.

Cansados da viagem, deram por encerrada a aventura e no lugar construíram uma fazenda, onde deram rumo para as suas vidas.

Fincaram moradia numa uma região de passagem de pessoas, lugar por onde cruzavam cordões de escravos, tropeiros com suas tropas de mulas e bandeirantes em busca de escravos e índios. Um caminho antigo que ligava outras duas localidades importantes, Jacuí e São João Del Rei. Em pouco tempo a propriedade dos Garcia Leal cresceu e prosperou, tanto que rapidamente ganhou importância na região. Pedro se descascou em sua profissão, como um mercador, atividade importante e que trazia diversos produtos  para as demais fazendas.

No passar dos anos, Pedro e Josefa fizeram o óbvio. Eles criaram os nove filhos, seis homens e duas mulheres, e trabalharam muito. Para os habitantes locais, os Garcia Leal eram tidos como uma família de pessoas boas, respeitosas da lei dos homens e das leis de deus. E assim, com o tempo, os Garcia Leal foram adquirindo mais terras, plantando e criando gado. Em 1780, Pedro Garcia Leal, aos 58 anos, acabou morrendo, mas a família seguiu unida e forte e alastrando suas propriedades pela região. Os filhos de Josefa, aos poucos, foram ocupando espaços importantes também na estrutura social colonial. Alguns seguiram o caminho do pai e se tornaram fazendeiros. Outros acabaram por se ocupar da vida militar. O filho mais velho de Pedro e Josefa, por exemplo, era sargento mor e também um homem muito respeitado em toda a região. Os Garcia Leal se tornaram uma família influente e uma das mais tradicionais do sul de Minas

Em 1800, Januário estava com 39 anos e tinha optado pelos dois caminhos, a vida da fazenda e a vida militar. Ele tinha esposa e dois filhos. Vivia numa boa casa e era dono de uma fazenda chamada Ventania e há pouco havia adquirido outra perto da vila de São Bento.

A vida de Januário era uma história de sucesso e felicidade.

Em 1802, logo no início do ano, por ser um respeitável servo real, ele recebeu a notícia de que sua indicação havia sido aceita e ele seria nomeado como Capitão de Ordenanças da Capitania de Minas Gerais, função geralmente distribuída entre os cidadãos mais ricos e respeitados da localidade. 

A nomeação de capitães era uma forma da coroa portuguesa tentar se fazer presente com o mínimo possível de investimento, numa região tão rica e cheia de tantos conflitos, como a Capitania de Minas Gerais. Assim, era estratégico delegar autoridade para moradores locais, criando um tipo de “jurisdição dos capitães” que seriam responsáveis por manter a lei com suas milícias. E dependendo do capitão, ora a justiça era mediada pela lei escrita, ora ela era mediada pela lei das próprias mãos. A vida de Januário era um exemplo para muitas pessoas, um objetivo à ser atingido. Januário era uma liderança local afirmada, um homem que por todos era visto como digno e correto. 

Assim, em 13 de junho de 1802, Januário tomou posse na função de Capitão de Ordenanças, cargo para o qual não se recebia nenhuma remuneração, além do status, dos privilégios e das honrarias que os capitães eram detentores. Januário era o chefe de uma espécie de guarda municipal, uma milícia, e seria o responsável por guarnecer a região contra ataques de indígenas, de bandoleiros e dos demais bandidos que multiplicavam-se pelo sul de Minas Gerais. Agora como um capitão, Januário seguiu residindo na sua nova fazenda, a fazenda Campo Formoso. Para a manutenção da propriedade, demarcação de terras, manejo dos animais, ele contava com a ajuda do seu irmão mais próximo e querido, João, que era dois anos mais velho e veio para a fazenda com a esposa, com quem era casado há nove anos.

Acontece que a fazenda Campo Formoso tinha terras lindeiras com a fazenda de Francisco Silva, um sujeito tido como de personalidade difícil, um homem rude, inculto e ignorante. Os Silva tinham a fama de serem verdadeiros bárbaros, eram homens robustos como pedras e violentos como animais, não respeitavam leis e viviam metidos constantemente em conflitos.

Não tardou para que os limites entre as duas fazendas virasse tema de discórdia.

Januário, como homem respeitador das leis, conseguiu judicialmente a demarcação das terras da Campo Formoso. Deferido o seu pedido, entre as fazendas apareceram agrimensores que mediram e indicaram os limites. Como na época não haviam cercas de arame, foi colocado uma sinalização por onde deveriam ser cavadas as valas que no chão seriam as divisórias entre as duas propriedades.

Por dias à finco, Januário mandou cavar os buracos para que a demarcação fosse feita, contratou valeiros que tentaram em vão abrir as valas, pois acabavam sempre sendo dissuadidos por Francisco e seus sete filhos. Às vezes, os valeiros eram ameaçados, noutras vezes, retornavam no dia seguinte para dar continuidade na abertura das valas e encontravam tudo soterrado novamente.

Francisco Silva fazia de tudo para aumentar suas terras, mesmo que isso significasse desrespeitar decisões judiciais.

Num dia, João Garcia Leal cavalgava pela fazenda quando encontrou um grupo de pessoas estranhas, elas estavam cavando uma vala divisória em suas terras, demarcando um piquete para o lado dos Silva numa das suas melhores invernadas, lugar conhecido como “O pasto das vacas”. Um piquete composto pela melhor pastagem da fazenda Campo Formoso. Prontamente João foi até o grupo de homens e mandou que se retirassem dali. Impedidos de fazer a vala de demarcação no local indicado, a equipe de valeiros retornou até Francisco Silva e contou o ocorrido.

O velho Francisco ficou possesso com a audácia e a afronta de João Garcia Leal. Sentado na cozinha da casa grande, disse aos seus sete filhos, Luís, Carlos, Antônio, Joaquim, Francisco, Paulino e Bento, para que encontrassem João. Era uma ordem cheia de ódio, uma raiva que respingou em cada um dos filhos. Francisco ordenou que quando o fizessem, que o amarrassem numa árvore, e que depois retirassem sua pele, estando ele ainda vivo, para que aprendesse e servisse de exemplo. Depois, pediu para que os filhos retornassem com a pele de João para comprovar o feitio da ordem dada, e pediu para que deixassem o corpo de João amarrado na árvore, para que os animais se alimentassem dele.

Uns dias depois da ordem ter sido dada, João e Januário estavam no “Pasto do Córrego”, cavando uma vala demarcatória num dos locais indicados pelos agrimensores e discutiram com alguns dos irmãos Silva que do nada apareceram no loca. Com isso, o trabalho não pôde ser concluído antes do anoitecer e os irmãos Garcia Leal acabaram retornando para casa. Durante a noite, uma chuva demorada e serena caiu por sobre a Campo Formoso.

No dia seguinte , depois de um bom café da manhã, João saiu cedo para terminar de abrir a vala. Tinha planos de terminar o serviço antes do almoço. Chegando no lugar, amarrou o cavalo e descarregou as ferramentas. Ele estava recém iniciando o trabalho quando, de repente, viu-se cercado por todos os sete filhos de Francisco Silva.

Não muito longe dali, Januário cavalgava em busca de umas reses que tinham se desgarrado durante a noite chuvosa, quando entrou no “Pasto do Córrego”, queria saber se o seu irmão não teria visto os animais passando por ali. Ao chegar no local onde João estaria cavando a vala, viu as ferramentas no chão, a pá sequer estava suja de terra, caída ao lado da vala. O cavalo do seu irmão seguia amarrado na sombra. Januário viu no pasto molhado as marcas das patas de cavalos e pegadas de pessoas. Perto do buraco, viu também o rastro de alguém sendo arrastado.

Januário estava desarmado, andava apenas com sua faca. Mas não poderia se dar ao luxo de ir até a sua casa e retornar, precisava encontrar logo o paradeiro de João. Resolveu seguir os rastros. O caminho serpenteava na direção de uma pequena mata que havia ao lado do Pasto do Córrego. Depois de alguns minutos andando em silêncio, ouviu vozes, em seguida, viu os filhos do velho Francisco Silva. Januário chegou no exato momento em que um deles arrancava a pele das pernas de João, que já parecia morto. Eles estavam rindo, conversavam despreocupadamente. Januário se abaixou por detrás de uns arbustos e esperou por quase uma hora até que partissem. Em seguida, foi até a figueira e viu o seu irmão. 

João estava amarrado na árvore, tinha o corpo nu, o peito ainda sangrando, o corpo todo esfolado e a cabeça em carne viva, sem nenhum dos cabelos.  A luz do sol, cruzando por entre os galhos e folhas da figueira, como numa dança, movia-se por sobre o corpo ensanguentado de João, iluminando as moscas e sangue coagulado.

Nos dias que se seguiram, Januário seguiu com a imagem do irmão tatuada dentro dos olhos. Enxergava-o na hora de dormir, ao encilhar o cavalo, na hora de ter suas orações. Ele relatou o ocorrido para as autoridades locais, mandou correspondências para pessoas importantes e, na condição de Capitão de Ordenanças, pediu ajuda para que se fizesse apenas o mínimo, justiça. Suplicou por auxílio, implorou aos conhecidos para que se prendessem os irmãos Silva e seu pai. Por medo, muitos não quiseram se meter na rusga territorial entre as duas famílias. Rapidamente a notícia da cruel e brutal morte de João Garcia Leal tomou conta da cidade e das fazendas vizinhas. 

Francisco Silva, percebendo que a população havia ficado revoltada com a morte de João Garcia Leal, disse para que os filhos se cuidassem, evitassem ir na vila. Falou também que iria vender a fazenda, já tinha até um comprador, e que, assim que recebesse o dinheiro da venda, todos deveriam partir dali, pois permanecer em São Bento seria muito perigoso. 

Januário, num misto de perplexidade e tristeza, rapidamente foi percebendo que ninguém iria lhe ajudar, seu pedido tinha sido tratado com desdém por todas as autoridades. A impressão que ele tinha era de que a morte do irmão era qualquer coisa de banal, sua vida era coisa menor, num mundo onde a lei existia só de vez em quando, ela não seria usada para prender os assassinos de João. De noite, deitado em sua cama, ouviu os cães latindo. Seriam os irmãos Silva? Levantou pé por pé. Pegou sua arma e foi até a janela. – E se fossem eles? Pensou preocupado. Quem viria lhe ajudar? Mas, por sorte, não eram eles, tratava-se apenas uma raposa ligeira. Januário foi dormir com uma certeza. Ele não esperaria mais.

Passados alguns dias, Januário soube da venda da fazenda de Francisco Silva. Estava tomando uma pinga no armazém do Antenor quando um vizinho comentou. Soube também que a família Silva, toda ela, estava indo embora. Sim, os assassinos de João estavam fugindo, descaradamente, e ninguém se importava com isso. Januário falou com seu irmão mais novo e com um tio, e contou-lhes o que estava acontecendo. No outro dia, ele foi até Mariana, sua esposa, disse-lhe que partiria numa viagem. Que se ele demorasse mais de três anos para retornar, que ela vendesse a fazenda, pagasse as dívidas e retornasse para a casa de seus pais. 

Januário pegou uma bolsa de couro, nela ele colocou umas poucas roupas e um saco cheio de sal. Acomodou na cintura a bainha prateada da “Língua-de-Bandeira”, a sua faca de quase 40cm de lâmina, cujo nome era uma referência ao tamanduá bandeira,  e pegou seu chapéu de couro. Partiu antes do sol nascer, junto do irmão, Salvador Garcia Leal, e do tio Mateus Luís Garcia. Com eles, numa pequena tropilha de mulas, foram mais alguns escravos da fazenda. O plano era simples, pegar os sete irmãos Silva, um por um, onde quer que eles estivessem. 

AS DUAS PRIMEIRAS ORELHAS.

Os irmãos Garcia Leal e seu grupo ficaram sabendo que ainda haviam dois homens da família Silva na vila, Francisco e Paulino. Tinham ficado para trás, finalizando a venda dos poucos pertences que restaram na fazenda. Encontraram-nos bebendo num armazém, estavam num tipo de festa, com muita gente e música. Pelo tanto de pessoas ao redor,  e não podendo fazer nada, Januário resolveu esperar até que estivessem sozinhos.

Não demorou muito para que os dois irmãos saíssem do armazém, quase como se estivessem fugindo da festa. Foram pelos fundos e se dirigiram por um caminho pelo meio do campo. Havia dois cavalos amarrados logo adiante. “Sim, pelo jeito eles estão indo embora da vila”, pensou Januário, enquanto se levantava da escuridão em que estava observando os irmãos. 

Januário foi caminhando silenciosamente atrás dos irmãos. Seus passos eram cadenciados, pisando no chão como se fosse um predador atrás da presa. Cravou a lâmina da Língua-de-Bandeira com tanta raiva, que ela cruzou para o outro lado de Paulino sem nenhuma dificuldade, em seguida, torceu a faca e puxou para cima. Quando Francisco ouviu o grito do irmão, sequer deu tempo para tentar uma fuga, menos de dez passos de corrida e o estrondo seco do bacamarte de Januário anunciava mais um Silva caído no pasto. Os demais membros do bando não fizeram nada, apenas observaram Januário. Com a sua faca, terminou de matar os irmãos e em seguida, depois de uns minutos parado em silêncio, arrancou uma orelha de cada. Retirou de dentro de um bornal que carregava, um saco com sal e inseriu as orelhas dentro. Na vila o som do tiro e os gritos dos homens sendo mortos ecoou como um trovão. 

A TERCEIRA E A QUARTA ORELHA

Nos meses que se seguiram às mortes de Paulino e Francisco, o bando de Januário vagou como um cão farejador pelo sertão mineiro, parando em vilas, assuntando com as pessoas nas estradas e grotas. Paravam em garimpos, estalagens, sempre em busca de informações que pudessem levá-los até os demais irmãos. Até que num dia, depois de uma parada numa venda, Januário ficou sabendo que um grupo de bandidos andava atuando próximo do arraial de São José da Barra. Depois de cruzar num garimpo de diamantes, ouviu de um velho mineiro que numa fazenda próxima haveria uma festa de casamento. Parece que os noivos eram irmãos e vinham lá do sul de Minas, chamavam-se Antônio e Joaquim Silva. Não poderia ser coincidência! 

Chegou na fazenda ao entardecer, Januário deixou o bando acampado num mato próximo e se aproximou devagar, andando pelos escuros das sombras das árvores. Levava no pescoço um colar feito de corda, onde carregava as duas primeiras orelhas, salgadas e secas. Ele viu os dois irmãos Silva, felizes, casando-se numa festa com muitas pessoas, bastante bebida, comida e música. Os convidados e os noivos dançavam. Até que num dado momento, os dois irmãos e as suas respectivas noivas saíram em direção aos fundos da fazenda. Ambos foram até duas casas que tinham sido construídas lado a lado para lhes servirem de morada. Januário aguardou do lado de fora, até que teve certeza de que o sono tinha tomado conta dos casais, ele entrou numa das casas. Com uma das mãos tapou a boca de Joaquim enquanto com a outra cravou a Língua-de-Bandeira no seu peito, atravessando o coração do homem. O problema foi que, enquanto ele arrancava a orelha de Joaquim, a noiva acordou e começou a gritar em desespero. 

Ao sair da casa, Januário encontrou o outro irmão, Antônio, abrindo a porta do rancho em que estava para ver o que eram os gritos. Caiu ali mesmo na porta. Minutos depois, os convidados da festa também ouviram os gritos das mulheres e quando chegaram nas casas, viram as noivas chorando trêmulas e dois homens mortos, sem suas orelhas.  A fama do bando dos Garcia Leal e da sua caçada aos Silva já antecedia sua chegada aos vilarejos e ocupava as conversas nas saídas das missas, no balcão dos armazéns e até nas brincadeiras infantis. E Januário ostentava em cada parada que fazia, um colar mórbido, com quatro orelhas humanas.

A QUINTA ORELHA.

O bando de Januário andou por meses pelo Triângulo Mineiro sem encontrar mais nenhuma pista dos outros três irmãos Silva. Eles já não eram os mesmo homens que saíram da fazenda, o bando tinha novos membros e já começava a praticar crimes, roubando propriedades e assaltando pessoas, como forma de sustentar a sina vingativa de Januário.

As mesmas autoridades que dois anos atrás conferiram a patente de Capitão de Ordenanças para Januário, agora pediam a sua cabeça. Perseguidos, os Garcia Leal resolveram ir na direção da Serra da Canastra. Indo por uma estrada boiadeira, depararam-se com um acampamento onde os tropeiros pernoitavam. Ao longe, viram a poeira de uma grande boiada se aproximando. Não demorou para que um grupo de peões chegassem no local do acampamento. Encontraram Januário, já recostado sobre os pelegos e o fogo acesso. 

Os peões pediram permissão para usar o fogo e prepararam o jantar. Januário estava deitado, debaixo de uma capa de couro grossa. O frio da serra fez um dos peões se levantar e pegar um tição para acender o cigarro de palha, quando a labareda da madeira se acendeu com o vento, sua luz iluminou o rosto do homem. Os olhos de Januário, no breu da capa, arregalaram-se diante da imagem que viram, o rosto sujo de terra era de Carlos Silva.

De madrugada, todos dormiam no acampamento, Januário já tinha avisado o resto do bando, que partira em silêncio, levando as mulas no cabresto para longe. A lâmina da Língua-de-Bandeira cortou o pescoço do homem, que sequer pode gritar, pois Januário havia usado a mão para cobrir sua boca. Quando os peões acordaram pela manhã, viram a poça de sangue do corpo de um homem degolado e sem uma das orelhas.

A SEXTA ORELHA.

Já tinha se passado alguns anos desde que Januário havia deixado sua família e sua vida para trás. Ele e seu bando estavam nas bandas de Vila Rica, próximos do garimpo de Tijuco. Um velho ermitão praticava benzeduras e curas, um serviço que fazia dezenas de pessoas esperarem numa enorme fila para receber o atendimento. O bando de Januário apeou ao lado do lugar onde o curandeiro estava trabalhando. Os irmãos Garcia Leal inventaram de entrar na fila para ver que tipo de benzedura o tal curandeiro fazia. Depois de alguns minutos, estava chegando a vez de Januário, foi quando seus olhos se fixaram no rosto do ermitão. Os dois se encararam por alguns segundos, frente a frente, lá estavam Januário e Luís Silva. Ambos se reconheceram e, de imediato, o curandeiro suspendeu os atendimentos e foi embora junto com um outro homem, seu empregado, para uma estalagem próxima.

Januário os seguiu e se hospedou no mesmo lugar em que estava Luís Silva, que viu quando o Garcia Leal entrou e se recolheu num dos quartos, por sinal, exatamente ao lado do seu. No jantar, Luís falou para o seu empregado que Januário era um homem perigoso e que, certamente, estava lá para matá-lo. Disse-lhe também que, por isso, tão logo a madrugada chegasse, entraria sorrateiramente no quarto de Januário e o mataria. Ordenou que seu empregado deveria, depois da morte de Januário, entrar lá e dar fim no corpo.

De madrugada, a porta do quarto de Januário se abriu lentamente. Luís esgueirou-se silenciosamente até o lado do  catre, mas antes que pudesse cravar seu punhal, sentiu a lâmina da Língua-de-Bandeira perfurar sua barriga. Januário sequer tinha dormido. A lâmina da faca saiu da barriga e rapidamente foi cravada no peito de Luís Silva. Minutos depois, o homem, empregado de Luís, seguiu a ordem recebida e entrou no quarto, no escuro, juntou o corpo que estava no chão, colocou-o no ombro e foi caminhando para fora da estalagem. De repente, ao cruzar perto de um candeeiro, reconheceu um anel num dos dedos do morto, rapidamente colocou o corpo no chão, horrorizado, viu seu patrão, morto e sem uma das orelhas.

A SÉTIMA ORELHA.

Alguns anos depois da última morte de um dos Silva, Januário e o seu bando haviam se separado. Enquanto seu tio e irmão aterrorizavam as vilas mineiras, ele andava sozinho pelos córregos da região da cabeceira do Jequitinhonha e há muito que não cruzava por uma viva alma. Januário tinha a barba longa e espessa, bastante suja e esbranquiçada. O chapéu de couro cobria os cabelos compridos e fedorentos. Ele tentou caçar, mas nada, comia pequenas frutas e bebia das fontes abundantes da região. A fome já se abatia com força, quando Januário encontrou um casebre no pé de um morro.

De dentro do casebre, rodeado por cachorros igualmente magros, saiu um homem de barba branca e que, ao ver o Garcia Leal, prontamente disse-lhe para que descesse da mula e entrasse. Exausto e faminto, Januário entrou na casa, recebeu água, comida e um bocado de prosa. Depois de alimentado, veio a noite e os dois homens dormiram no silêncio do morro. O velho reparou que Januário tinha um colar no pescoço, com seis pedaços de algo que parecia ser carne seca, mas não disse nada. 

De manhã, o velho homem preparou um chá. Disse que se Januário quisesse, que ficasse por ali o tempo necessário, pois naqueles grotões era bom ter companhia. O Garcia Leal agradeceu, mas declinou da oferta, dobrou seu pelego e foi preparar a mula para seguir viagem. Na despedida, Januário novamente agradeceu a hospitalidade do velho, mas antes de partir, e por insistência do solitário homem, resolveu sentar um pouco na sombra de uma árvore para uma última prosa. No meio da conversa, o velho começou a contar a sua história, num misto de alegria e tristeza. Narrou sua vida toda. Falou do pai, da mãe, da fazenda onde morava, contou dos seis irmãos que nunca mais viu e da vida que levavam lá no sul de Minas. No fim, segurando um pasto seco entre os dentes, disse: “E assim vive Bento Silva, sozinho nesse fundão de campo”. Januário ouviu tudo calado. Ao término da história do velho, levantou-se e foi até sua mula. Voltou com uma arma. Pediu para o velho olhar para ele: “Não está me reconhecendo, Bento Silva?” Diante da negativa de Bento, que disse nunca tê-lo visto antes,  falou seu nome: “Pois eu já te vi antes e nunca mais me esqueci de ti. Eu te procurei por anos, Bento Silva. O meu nome é Januário Garcia Leal”.

O velho se tremeu todo, sentiu a urina escorrer pelas pernas e começou a chorar como uma criança. Ajoelhou-se e pediu clemência. Pediu perdão pela morte de João. Disse que era uma ordem do seu pai. Falou que viveu o resto da vida arrependido. Com o cano encostado na testa do homem, Januário disse que pela hospitalidade, o velho não morreria na lâmina da Língua-de-Bandeira, como os outros seis. Por isso, como forma de agradecer a pouca comida e o chá, mataria o velho no tiro. E disse também que daria uma chance ao velho Bento, ele teria a chance de fugir, teria cinquenta passos de vantagem. “Vamos, corre seu bosta! Vamos, corre Bento Silva!”  Um. Dois, Três. Quatro. Cinco. Seis…  Bento corria o mais rápido que podia, os cães, pensando ser uma brincadeira do velho, corriam ao seu redor, quase o derrubando algumas vezes. A respiração de Bento Silva era ofegante e o seu coração um tambor desenfreado. Quarenta e oito. Quarenta e nove. Januário não anunciou o passo de número cinquenta com a voz, mas com um estampido seco. O buraco do tiro estourou na coluna do último Silva que caiu esfregando a cara na terra. Bento, ainda vivo, sentiu sua orelha ser decepada pela lâmina seca da faca de Januário. Afinal, Januário deu sua palavra que não o mataria com a Língua-de-Bandeira, por isso, deixou-o lá, esvaindo em sangue em meio aos cães. 

Januário Garcia Leal nunca mais voltou para sua fazenda. Mariana, fez o combinado e foi embora. Durante sua vingança, Januário deixou uma vida pacata e boa para trás, no caminho do ódio, há muito tempo que ele já tinha deixado de ser Januário, agora ele era conhecido apenas como O Sete Orelhas. Terminada a sina da vingança da morte de João, Januário tornou-se o líder de um temido grupo de bandoleiros que aterrorizou toda a Capitania de Minas Gerais. Eles mataram, roubaram, pilharam, queimaram casas, afrontaram autoridades.

E  quando o bando passou a ser perseguido pela coroa portuguesa, à mando do próprio Dom João VI, Januário desapareceu como um fantasma.

Séculos depois, historiadores encontraram registros da sua morte. Ele morreu longe de São Bento, morreu em Lages, onde mais tarde seria a Capitania de Santa Catarina, ironicamente, acertado pela madeira de um portão que estourou e arrebentou sua cabeça, acertando-o com violência em sua orelha direita e quebrando sua mandíbula.  

Essa história aconteceu há mais de duzentos anos. A figueira onde João Garcia Leal supostamente foi morto, escalpelado e esfolado vivo, ainda existe e resiste. É considerada um patrimônio histórico. Fica no município mineiro de São Bento Abade, na fazenda do “Tira Couro”. Na cidade também há estátuas que contam a saga de vingança do herói-bandido. A história de Januário, foi coisa que sobreviveu ao tempo, agarrou-se no imaginário mineiro, sendo publicada em livros do século XIX. Foi tema de peças teatrais e de pesquisas acadêmicas, documentários e até filme da Netflix.

 

Bibliografia utilizada:

SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Tese de doutorado de  Rodrigo Leonardo de Sousa Oliveira, “Bandos Armados nas Minas Gerais – redutos de Dominação Bandoleira e Poder Local nos sertões mineiros setecentistas”, defendida na UFMG em 2014.

Tese de doutorado de Márcia Sueli Amantino, “O mundo das feras: os moradores do sertão oeste de Minas Gerais: século XVIII”. Defendida  na UFRJ em 2001.

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana, também é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.

 

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ASSISTA: Documentário Palhaçaria no SUS II https://redesina.com.br/assista-documentario-palhacaria-no-sus-ii/ https://redesina.com.br/assista-documentario-palhacaria-no-sus-ii/#respond Fri, 15 Sep 2023 14:16:42 +0000 https://redesina.com.br/?p=119927 Documentário acompanha os palhaços e palhaças em ações nas UBSs e ESFs de Santa Maria – RS “Palhaçaria no SUS II” reúne imagens das 40 ações artísticas realizadas em 2023, contabilizando cerca de 70 horas de atuação teatral voltada para públicos descentralizados. Além das ações que contemplaram as Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e Estratégia …

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Documentário acompanha os palhaços e palhaças em ações nas UBSs e ESFs de Santa Maria – RS

“Palhaçaria no SUS II” reúne imagens das 40 ações artísticas realizadas em 2023, contabilizando cerca de 70 horas de atuação teatral voltada para públicos descentralizados. Além das ações que contemplaram as Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e Estratégia Saúde da Família (ESFs) de regiões periféricas, o documentário acompanha as palhaças e palhaços nos de casas pertencentes às comunidades atendidas, com apresentações do espetáculo Na porta de casa.
Segundo Daiani Brum, diretora e coordenadora da iniciativa, “O projeto Palhaçaria no SUS tem sua importância por dialogar com públicos periféricos da cidade de Santa Maria, levando uma equipe de profissionais até as pessoas em situação de vulnerabilidade, especialmente nas Unidades Básicas de Saúde, as UBSs e Estratégias de Saúde e Família, ESFs.”
Além disso, também foram atendidas duas escolas periféricas em ações conjuntas com agentes da saúde das ESFs, a Escola Municipal de Ensino Fundamental São Carlos e a Escola Municipal de Educação Infantil Eufrázia Pengo Lorensi.

As UBSs e ESFs de Santa Maria que foram atendidas
ESF Alto da Boa Vista – Nova Santa Marta
ESF Nova Santa Marta – Vila Pôr do Sol
UBS Floriano Rocha – Juscelino Kubitschek
ESF Urlândia – Vila Urlândia
ESF Vila Santos – Urlândia
ESF Vila Lídia – Noal
ESF Kennedy – Salgado Filho

Escolas que foram atendidas
Escola Municipal de Ensino Fundamental São Carlos
Escola Municipal de Educação Infantil Eufrázia Pengo Lorensi

 

O projeto “Palhaçaria no SUS”, aprovado no edital FAC das Artes do Espetáculo (edital nº 16/2021), com apresentação da Secretaria do Estado da Cultura do RS. Foto: Divulgação.

 

Sobre Daiani Brum, diretora e proponente do projeto

Natural de Santa Maria, Daiani Brum é artista pertencente à comunidade LGBTTQIA+ e palhaça (desde 2008). É Pós-doutoranda em Artes Cênicas (UFU, 2023), Doutora em Teatro (UDESC, 2021), Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2017), bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Santa Maria (2012). Formou-se em palhaçaria na Escola de Palhaços dos Doutores da Alegria, no curso de Formação de Palhaços para Jovens (SP, 2014). Dedica-se à atuação palhacesca hospitalar, às ações artísticas, teóricas, formativas e de pesquisa na área de Artes Cênicas. Daiani já coordenou e realizou uma edição do projeto Palhaçaria no SUS em Santa Maria em 2021, com o financiamento da Lei Aldir Blanc. É autora e organizadora do livro Palhaças na Universidade (EDUFSM, 2022).

Palhaçaria no SUS – Ficha Técnica
Direção geral, coordenação e produção executiva: Daiani Brum
Palhaças e palhaços: Daiani Brum, Aline Ribeiro, Geison Sommer, Janaina Castaldello e Juliet Castaldello
Figurino: Anderson Martins
Maquiagem: Aline Ribeiro
Fotografia e captação audiovisual: Mariliz Focking
Assessoria Contábil: Cris Santana

Redes sociais: Palhaça Brum (@palhacabrum)
Veja também:
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Entardecer de agitação e fúria por Vitor Biasoli https://redesina.com.br/entardecer-de-agitacao-e-furia-por-vitor-biasoli/ https://redesina.com.br/entardecer-de-agitacao-e-furia-por-vitor-biasoli/#respond Fri, 08 Sep 2023 05:52:03 +0000 https://redesina.com.br/?p=113122 Há “tardes que morrem voluptuosamente”, escreveu Florbela Espanca, mas também há tardes que morrem embaralhadas em agitação e fúria. Entardeceres confusos, nos quais a vida ganha um ritmo alucinado e nos escapa do controle. Foi assim, certa vez, que vivi um final de dia em Paris, uma cidade que ocupa o nosso imaginário desde sempre. …

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Há “tardes que morrem voluptuosamente”, escreveu Florbela Espanca, mas também há tardes que morrem embaralhadas em agitação e fúria. Entardeceres confusos, nos quais a vida ganha um ritmo alucinado e nos escapa do controle. Foi assim, certa vez, que vivi um final de dia em Paris, uma cidade que ocupa o nosso imaginário desde sempre.

Eu vinha de uma temporada em Roma e me enturmei com um grupo de turistas brasileiros, no qual se encontrava minha antiga companheira. Com essa turma vivi uma semana de belos programas, daqueles que só confirmam o encantamento da cidade: passeio de barco pelo Sena, almoço com direito a champagne, caminhada pela Champs Elysées, visita ao Palácio de Versalhes e dia inteiro no Louvre. Cada lugar saborosamente aproveitado e rememorado até hoje. Mas houve um dia, apenas um dia, em que a situação escapou do controle.

Nem sempre minha companheira e eu andávamos com o grupo e muitas vezes nos afastámos para passeios apenas nós dois (como tantas vezes fizemos, em São Paulo e Rio de Janeiro, Buenos Aires e Havana, Lisboa e Madri). E assim mergulhamos no Louvre, tanto conferindo as famosas “Vênus de Milo” e “Mona Lisa”, quanto nos surpreendendo com “Retrato de Madeleine”, de Marie-Guillemine Benoist, que, naquela época, deixava de ser “Retrato de uma negra” e ganhava o nome da modelo, Madeleine, uma empregada da família da pintora.

Uma tarde, porém, a situação se embaralhou. Naquele dia, saímos com o grupo no início da manhã para um tour no coração da cidade e pegamos o metrô até a Estação da Ópera Garnier. A ideia era visitar a Ópera por dentro, mas o teatro estava fechado. Seguimos para as luxuosas Galerias Lafayette, andamos pelas arcadas da Rue de Rivoli, almoçamos num restaurante com garçom escolado em atender clientes sem domínio do francês, conferimos os buquinistas das margens do Sena e fomos visitar a igreja de Saint Chapelle, a Conciergerie, terminando na cela onde ficou aprisionada Maria Antonieta antes de ser guilhotinada (hoje, local com altar para culto à rainha).

A partir daí, um cansaço tremendo e um café na Praça Stravinsk, para encerrar a jornada. Ou, pelo menos, foi o que imaginei: usufruir a mansidão do entardecer e retornar ao hotel. Mas o grupo optou por continuar e, quando dei por mim, estava nas imediações da Praça Concorde, alterado, tentando convencer minha companheira a terminar aquele passeio. Forcei-a a sentar num bar no início da Champs Elysées, enquanto o grupo continuava na direção do Arco do Triunfo.

Paris esconde e escancara maravilhas, mas aquele era o momento de parar. A tarde morrera, viera a noite e as luzes da cidade explodiam ao meu redor. Champs Elysées estava freneticamente iluminada e movimentada, pedi uma taça de vinho (delicioso, comprovei, anotando seu nome no folder da exposição sobre Maria Antonieta, na Conciergerie, que até hoje não reencontrei). Bebi observando o movimento, enquanto minha companheira, indignada, me fuzilava com os olhos.

Nem todas as tardes morrem voluptuosamente prenunciando atmosferas de sonho, como poetiza Florbela Espanca, e eu bem sei (já sabia naquele tempo) que há entardeceres feitos de agitação e fúria, sobre os quais não temos nenhum controle e é melhor esquece-los. Mas entardeceres assim, vividos em Paris, até é bom recordar.

Vitor Biasoli
nasceu em Pelotas (1955) e vive em Santa Maria desde 1991. Formou-se em História (UFRGS, 1977), fez mestrado em Letras (PUCRS, 1993) e doutorado em História Social (USP, 2005). Lecionou em escolas do Ensino Fundamental e Médio (1978-1991) até ingressar na Universidade Federal de Santa Maria. Atualmente está aposentado. Publicou livros acadêmicos e literários, entre eles: Jorge encontra Lilian (novela juvenil, 1998), Calibre 22 (poemas, 1999), Uísque sem gelo (contos, 2007), Santa Maria: ontem & hoje (crônicas, 2010), O fundo escuro da hora (contos, 2018), Paisagem marinha (poemas, 2021) e Itália, trilhos e café: histórias da família Biasoli (crônicas, 2022). Pertence ao grupo de escritores da “Turma do Café” e é colunista da Rede Sina.
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OUVINDO A VOZ DA MINHA MÃE E A TUA: A VIDA ESQUECIDA DE ALCEU WAMOSY – por ROGER BAIGORRA MACHADO. https://redesina.com.br/ouvindo-a-voz-da-minha-mae-e-a-tua-a-vida-esquecida-de-alceu-wamosy/ https://redesina.com.br/ouvindo-a-voz-da-minha-mae-e-a-tua-a-vida-esquecida-de-alceu-wamosy/#respond Fri, 18 Aug 2023 21:37:53 +0000 https://redesina.com.br/?p=88112 Uruguaiana, 24 de maio de 2017. Os trabalhadores receberam o encargo de remover um busto da Praça do Barão do Rio Branco. A ordem era simples: Retirar o busto do local onde ele estava, depois, trocá-lo de lugar. Toda praça que se preze tem um busto. E os bustos quase sempre são feitos em pedra, …

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Uruguaiana, 24 de maio de 2017. Os trabalhadores receberam o encargo de remover um busto da Praça do Barão do Rio Branco. A ordem era simples: Retirar o busto do local onde ele estava, depois, trocá-lo de lugar. Toda praça que se preze tem um busto. E os bustos quase sempre são feitos em pedra, são homenagens de homens para outros homens. E, embora conhecessem o nome do homenageado cravado no busto, nenhum dos trabalhadores sabia direito quem ele era.

Essa é outra das características de vários bustos de praça: o anonimato público.

De repente, uma pá cravou no chão e as picaretas foram se rebatendo contra o concreto, ao lado dos homens, via-se a terra preta que já fazia um pequena elevação, pedaços de tijolos, restos de cimento. A dureza da base do busto estava vencendo. E então, visto que a tarefa da retirada carecia de pressa, eis que veio uma retroescavadeira e rapidamente o busto já estava posto de lado, no entanto, ainda havia algo. Foi quando uma das ferramentas de escavação bateu numa estrutura que parecia uma caixa de metal. Pela ferrugem, rapidamente os trabalhadores perceberam que se tratava de algo muito antigo. A caixa era feita toda em ferro. Seria um “enterro de dinheiro”? Esse foi o pensamento que ecoou em silêncio na troca dos olhares dos trabalhadores que ali estavam.

“Enterro de dinheiro” era coisa do passado, coisa dos missionários jesuítas em fuga ou de estancieiros abastados com medo dos castelhanos. Era coisa de outro século, inimaginável, ainda mais ali, em pleno 2017, no meio da praça central de Uruguaiana. Mas não importava se era coisa de outro século, naquela hora a lógica não dava as cartas. E os corações dos trabalhadores se aceleraram diante daquele mesmo pensamento coletivo: “Ouro!”. Que coisa maravilhosa, afinal, os causos sobre pessoas que encontraram enterros de dinheiro, moedas de ouro e prata, joias de todo tipo, enfim, eles eram verdade! Que sorte.

Uruguaiana, 14 de fevereiro de 1895. A noite clara de lua contrastava com a casa escurecida, a luz das velas e dos lampiões, ritmadas pelo vento, dançavam contra a sombra dos móveis quietos. Uruguaiana ainda não tinha luz elétrica, nem ponte e nem asfaltos. E a criança nasceu como nascem quase todas as crianças, com o ar doendo nos pulmões e o choro se propagando pelo mundo. A parteira levou o pequeno bebê até os braços da mãe, que exausta, usou das poucas forças que lhe restavam e regalou um beijo na pequena testa franzida. Era o primeiro filho de Maria Leopoldina de Freitas. Na sala da casa, o pai, José Affonso, permanecia sentado numa cadeira enquanto esperava pela notícia. E ela veio: – É um menino! Um varão para dar prosseguimento na família. Era verdade! Que sorte.

E o guri que mal havia nascido, na cabeceira da cama já tinha um nome engatilhado, pedido feito pelo poeta português Guerra Junqueiro ao pai, ele se chamaria Alceu. E de herança, o pequeno Alceu arremataria um sobrenome luso-brasileiro, Freitas, coisa da mãe. Por fim, carregaria também o sobrenome húngaro dos Wamosy, artefato paterno. Alceu de Freitas Wamosy.

Nos anos seguintes a família de Maria, José e Alceu seguiria aumentando, viria outro menino, o pequeno Aureliano. Em 1897, mal a cidade havia se recuperado de uma epidemia de peste bubônica, e uma nova epidemia, agora de meningite, abateu-se por sobre Uruguaiana. Aureliano não suportou a doença e morreu. O número de crianças mortas por meningite naquele ano nunca foi calculado, sabe-se apenas que foram muitas vidas que se perderam. Depois da morte de Aureliano, Maria e Affonso tentaram novamente e tiveram outro menino, chamado de José Affonso Wamosy Filho, nascido em 08 de julho de 1899. Depois, em 1901, nasceria ainda uma menina, a última parte da família, chamada Abysaig. E a vida dos Freitas Wamosy caminharia no tranco bucólico e lento de uma Uruguaiana do finalzinho do século XIX, embora sitiada constantemente pela tensão e violência deixadas pela Revolução Federalista de 1893. A marca dos sangues das degolas de maragatos e pica-paus ainda atingiam a memória e o chão das calçadas.

Com dez anos de idade, Alceu era franzino, parecia ter as feições da morte, tinha os traços da vida que finda de forma perene, além disso, era asmático, míope e na pele carregava a palidez dos que pouco tocam a pele na luz do sol. Mas isso pouco importava, com sua inteligência e sensibilidade acima da média, Alceu burlava os problemas físicos e de saúde com incursões demoradas na biblioteca do seu pai, lá ele viajava para países distantes, lutava em batalhas históricas e declamava sonetos de amor para donzelas apaixonadas. Seu pai, José Affonso Wamosy, era um ex-telegrafista, que se transformou em advogado e depois em jornalista. Sobretudo, era um autodidata, assumiu as duas profissões sem nunca ter tido um diploma na parede. É que naquele tempo os diplomas eram acessórios difíceis de se conseguir. E Affonso não precisava de diplomas, ele tinha coisas muito melhores: um jornal, uma infinidade de livros e uma inesgotável vontade de aprender.

E assim o pequeno Alceu foi crescendo ao lado do pai escritor e jornalista. Desenvolveu-se como criança vendo uma dança constante entre Affonso Wamosy e seus livros, especialmente, numa casa cheia de textos e opiniões sobre quase todos os assuntos importantes para a cidade. A casa dos Wamosy era um lugar onde a política era debatida da noite ao dia e onde a vida de Uruguaiana pulsava. Alceu foi aprendendo pela imitação e ainda jovem se tornou um leitor voraz. Dos livros do pai, Alceu desenvolveu um forte interesse pela poesia e pela política, especialmente, pela política dos republicanos.

O jovem começou seus estudos em casa, mas desenvolveu melhor a leitura e a escrita no Ginásio Uruguaianense, uma escola comandada pelo Professor Luiz Antônio Lopes e que ficava na rua 13 de Maio. O ensino do educandário seguia os mesmos princípios utilizados no Colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro. Além disso, o Professor Luiz Antônio Lopes fazia com que seus alunos praticassem atividades físicas, para horror de Alceu, o que era uma novidade na época, seguindo a máxima que diz “Mens sana in corpore sano”. E a novidade de professor Lopes não tardou em ser copiada por outras escolas e educadores da cidade. Além disso, como antevendo o que aconteceria em 1923, o Professor Luiz Antônio Lopes passou também a levar seus alunos para realizar atividades militares, com treinamentos de esgrima com baionetas, prática de tiro com armas de salão, ordem unida e marchas pela cidade. Enquanto a maioria dos alunos tinha bom rendimento nas atividades militares, Alceu Wamosy tinha rendimento medíocre. Definitivamente, ele não tinha dotes militares, seus interesses eram de outra ordem e as suas armas não precisariam de pólvora.

Num sábado à noite, numa reunião da Sociedade Literária Castro Alves, fundada por alunos do Ginásio Uruguaianense, aos doze anos, o jovem Wamosy chocou seus colegas de Ginásio, ao ler um poema de sua autoria, chamado “De sol a sol”. Um poema em prosa, falando das emoções de quem observa um dia de trabalho nas cidades e nos campos, do nascer do sol até o seu crepúsculo. A força do texto e a forma como foi lido demonstrava que, além de um exímio leitor, Alceu também era um ótimo escritor e declamador. Foi um disparo certeiro. O texto era tão bom que alguns de seus colegas não acreditaram que um menino de doze anos o havia escrito. Ledo engano.

Noutra reunião, Alceu lia numa roda de colegas um poema sobre os sofrimentos de um cão abandonado, cena que ele deve ter visto em alguma rua da cidade, quando foi interrompido por um colega maior e mais forte que falou uma piada grotesca e vulgar. O jovem poeta, após encarar o colega, fechou o caderno onde o texto estava escrito e disse: “Seu sofista!”. Um silêncio na roda, começaram os burburinhos: “nossa, o Alceu chamou ele de sofista!”, “e ele não vai fazer nada?”, “ei, sofista, eu não deixava assim!”. Eis que quando o colega de Alceu estava se aprontando para a briga, um dos presentes perguntou, “Mas o que é sofista?”. Acontece que ninguém na roda de alunos sabia o que significava o termo sofista, tão pouco o ofendido e muito menos o ofensor, que prontamente respondeu: “Sofista é uma forma de ofensa entre os intelectuais! Ora!”. Pronto, estava resolvido, não haveria mais briga, pois mesmo que fosse uma ofensa, era uma ofensa entre intelectuais, logo, também era um tipo de elogio ao colega da piada grotesca.

Em Uruguaiana, o pai de Alceu, José Affonso, era dono de um jornal chamado “O povo” e, mais tarde, em 1907, foi proprietário de um outro jornal chamado “O Democrata” e que funcionava em frente à Praça Paysandu. A Praça Paysandu ficava em frente à Igreja Nossa Senhora do Carmo e a casa que abrigava o jornal “O Democrata” era exatamente ao lado da igreja. Ambos os jornais tinham uma agenda política bastante clara, que era a defesa intransigente da República e o combate ao federalismo. E aqueles anos do início do século ainda eram tempos de extremismos políticos. As chagas da revolução da degola ainda não se tinham curado. Eram tempos onde se ter opinião política era sinônimo de se ter inimigos. Com isso, a família Freitas Wamosy acabou tendo que mudar de cidade. Deixaram a costa do Uruguai e foram para as margens do Ibirapuitã. Mudaram-se para Alegrete em 1909.

Na nova cidade, em 1911, aos dezesseis anos de idade, Alceu lia e escrevia cada vez mais. Tornou-se admirador da obra de José María Vargas Vila (1860-1933), escritor colombiano que escreveu textos sobre a política latino-americana e romances e ensaios diversos. Na mesma época, recebeu de seu pai a tarefa de ser o diretor do jornal “A Cidade”, o mais novo empreendimento da família. Como o escritório de advocacia de Affonso Wamosy em Alegrete ia de vento em popa, o tempo para o jornal era cada vez mais escasso.

Para Affonso, era chegado o momento de passar para o filho a arte da tipografia, para Alceu, era o início de um caminho sem volta.

No jornal “A Cidade” ele publicou suas primeiras poesias, textos que rapidamente chamaram a atenção da comunidade intelectual alegretense. Como bom poeta, apaixonou-se por uma jovem da alta sociedade alegretense, chamava-a em seus poemas pelo nome de “Miréia”, a mulher das “curvas deliciosas” e das “mãos que ferem (…) acariciando”. Escreveu muitos poemas em homenagem à amada. Mas os dois eram como sol e lua. A jovem adorava a vida social, os bailes, Alceu preferia ficar horas em seu quarto escrevendo e lendo. Ela era católica praticante, Alceu nem era batizado. Ela era elegante e se vestia lindamente, Alceu gostava de vestir apenas camisas quadriculadas coloridas e não usava gravata. Ela se comportava como uma nobre, Alceu se dizia apenas um burguês. No final, o amor entre os dois aconteceu por pouco tempo, um tempo suficiente para deixá-lo eternizado nas páginas pintadas pelos poemas de Wamosy.

Em 1913 Alceu já trabalhava também como advogado no escritório do pai. Seu nome e seus textos eram relativamente conhecidos na Fronteira Oeste e, assim, Alceu Wamosy decidiu escrever seu primeiro livro. Deu à ele o nome de “Flâmulas”. Os vinte sonetos que compunham a obra assustaram alguns e impressionaram outros, em comum, todos tiveram a mesma reação, a fria indiferença. É que Alceu fez todo o trabalho, a impressão, a tipografia, o encadernamento e o resultado não ficou lá muito “profissional”. Ele teve seus brios feridos com a recepção que “Flâmulas” recebeu em Alegrete, acostumado aos elogios, agora se impactava nele o silêncio da indiferença. Como resposta, Alceu Wamosy escreveria sem parar. A escrita era um vício, além de produzir textos para o próprio jornal, ele contribuía também com os jornais “Gazeta de Alegrete” e com “A Nação” e “Correio de Notícias” de Uruguaiana.

No “Gazeta de Alegrete”, deixou muitas poesias e prosas. Escreveu um conto chamado “A Traição”, sobre um engenheiro que dedicou doze anos de sua vida para criar um coração artificial. Num ritual sagrado de amor à ciência, o engenheiro conseguiu criar uma máquina capaz de desvendar “o segredo divino da vida” e tornar o homem imortal. No fim, o cientista é traído por um amigo e morre, vítima do próprio coração. Por sinal, a morte e o amor foram temas perenes na obra poética de Wamosy.

Apenas um ano após o lançamento de Flâmulas, Alceu Wamosy ignorou a indiferença e “a pequenez dos nulos” e publicou um novo livro, ainda maior, agora com 43 poemas e chamado de “Terra Virgem”. Agora o seu nome e sua fama de grande poeta há muito tinham deixado Alegrete para trás e já circulavam por Porto Alegre e Rio de Janeiro.

No ano de 1914 o clima político era bastante tenso na região e os jornais de Alegrete e Uruguaiana cobriram um debate entre dois líderes da política da Fronteira, de um lado o Jornal federalista “A Nação”, que em 1922 pertenceria à João Batista Luzardo, e o jornal “A Cidade”, dos Wamosy. Os boatos eram tantos ao ponto de fazer o pai de Alceu Wamosy enviar uma carta para o Coronel Vasco Alves Pereira, queria saber sobre boatos de que o Coronel estava a insultá-lo por detrás das páginas dos jornais, prontamente, foi respondido por Vasco Alves. Enquanto todos esperavam uma guerra entre os dois, o tom altamente respeitoso do diálogo pôs fim ao clima de batalha, não haveria sangue. Assim, ambos chegaram a publicar textos nos jornais onde desmentiram os boatos e demonstraram que, embora fossem de campos políticos opostos, respeitavam-se mutuamente. Essa demonstração de respeito público de dois homens diante da política, menos de uma década adiante, faria toda a diferença na vida de Alceu.

Ainda em 1914, o jovem Alceu Wamosy foi nomeado pelo Presidente da República, Marechal Hermes da Fonseca, como Alferes da Guarda Nacional, por sinal, assim foram nomeados todos os oficiais pertencentes à Comarca de Alegrete. A Guarda Nacional tinha por função apoiar o exército na defesa da ordem e obediência das leis, assim como, nas linhas de fronteiras e costas. A cidade toda questionou essa ação com curiosidade e medo, afinal, estaria o Brasil se preparando para entrar na 1° Guerra Mundial? Para ser um Alferes da Guarda Nacional, cargo vinculado ao Ministério da Justiça, bastava ter entre 21 e 60 anos e ter capacidade para ser um eleitor. De toda forma, Alceu ficou lisonjeado com a nomeação, afinal, ele defendia os ideais republicanos de Hermes e Pinheiro Machado quase que diariamente em seus textos, depois da nomeação, ele seguiu entrincheirado no seu jornal.

O ano de 1914 seguia firme, as notícias da grande guerra estampam os jornais, o mundo acompanhava as imagens dos soldados em suas batalhas. Em Alegrete, Alceu Wamosy acompanhava as críticas positivas que seu livro, “Na Terra Virgem” recebia em jornais de Uruguaiana e Alegrete, e em pouco tempo, em periódicos de Porto Alegre. No número de Natal da revista “Fon-fon” de 1914, seu poema “Duas Almas” é publicado pela primeira vez na capital do país e sua fama de poeta se firma nacionalmente, especialmente, após seu texto ser plagiado por um padre chamado Evaristo de Paula, que assumiu a autoria e o declamou no Salão Coelho Neco, na cidade do Rio de Janeiro. Quando a farsa foi descoberta, todos queriam saber quem era o jovem autor gaúcho que escrevia tão bem.

E assim ele se dedicou e, junto da poesia e dos contos, escreveu textos políticos de apoio ao Partido Republicano e ao Borges de Medeiros. Nos anos seguintes, o Alceu Wamosy passou também a frequentar a capital do Estado com mais frequência, convivendo com intelectuais como Celestino Prunes e autores como De Sousa Junior e Dyonélio Machado, este último, com quem tinha em comum, além dos textos em jornais e livros, a origem fronteiriça, pois Dyonélio era de Quaraí. Com Dyonélio Machado, o jovem poeta de Uruguaiana passou a conviver com a cena artística de Porto Alegre, participando de um grupo chamado “A República do Império”. Os membros do grupo se reuniam na Confeitaria Schramm, que ficava na rua dos Andradas e também, por diversas vezes, na Praça da Harmonia, bem no início da Rua da Praia.

Em 1917, aos vinte e dois anos, Alceu decide mudar de ares e compra um jornal em Santana do Livramento, era “O Republicano”. Um jornal que seria voltado para defender abertamente os ideais positivistas e a causa republicana dos chimangos. Era o mínimo que o poeta poderia fazer como um Alferes da Guarda Nacional: lutar com as palavras e com a tinta.

E os dias foram passando até que o ano de 1922 e o mês de novembro chegou diante de Alceu Wamosy, que estava com 27 anos de idade e acompanhava com atenção as eleições do Estado. De um lado, Borges de Medeiros e seus chimangos de lenços brancos, de outro, Assis Brasil e seus maragatos de pescoços vermelhos. Borges tentava se eleger pela quinta vez como Presidente do Estado e manter no poder os vencedores de 1893. Embora sempre sendo acusados de fraude, o Partido Republicano pouco ligava e seguia reprimindo os opositores. As eleições foram marcadas por muitas denúncias de repressão e violência, onde muitos dos que eram contrários a Borges foram presos, espancados e mortos. Em Alegrete, durante a votação, o Coronel Vasco Alves sofreu atentado com vários tiros. Flores da Cunha em Uruguaiana era acusado de mandar prender sem motivos um sargento da polícia aduaneira, pois este era eleitor de Assis Brasil. Oswaldo Aranha era acusado de levar eleitores para votar em locais diferentes.

Por sinal, a prática adotada pelos republicanos era a mesma dos anos anteriores, vencer na força e não nos votos. De Livramento, Alceu lia as notícias das prisões dos maragatos em várias cidades, locais de reunião dos correligionários de Assis Brasil eram fechados pela polícia a todo momento.

Ao término das apurações, alegria para os republicanos, a vitória novamente de Borges de Medeiros. Acontece que a comissão apuradora, formada por pessoas fiéis ao governo, foi acusada de fraude eleitoral pelos eleitores de Assis Brasil. Ao que parece, as denúncias tinham fundamento e pessoas votaram várias vezes em locais diferentes. Muitos estancieiros levavam seus peões para votar em cidades próximas várias vezes, havia relatos de pessoas que tinham votado mais de cinco vezes no mesmo candidato, no caso, em Borges. Rapidamente, o que era uma disputa política de argumentos e votos e que antes também era feita em textos de jornais, transformou-se numa disputa armada e violenta. O Rio Grande do Sul entrava em uma guerra civil, mesmo que num nível menor de violência que em 1893, novamente era um fratricídio em que famílias se dividiram, amigos se mataram e vizinhos se degolaram. Pessoas dos mais diferentes lugares, das salas das faculdades, dos jornais, das cidades, dos galpões e dos fundos de campos, independente do lado político, todos imbuídos de um mesmo idealismo e desprendimento diante da própria vida. “Depois da morte da liberdade, só a liberdade da morte”, escreveria Alceu Wamosy.

Depois de fiscalizar a votação em Santa Rita e presenciar eleitores votando mais de uma vez no 4° Distrito de Livramento, Honório Lemes declarou: “Eu não darei mais um passo para concorrer a esta farsa que chamamos eleições”. Afirmou que apenas a revolução poderia trazer mudanças e a reivindicação dos direitos federalistas deveria ser feita a bico de lança. No final de janeiro de 1923, as cidades de Palmeira das Missões e Passo Fundo foram atacadas pelos maragatos. O plano de Assis Brasil e seus apoiadores era tão simples como mover um busto em uma praça. Como em nível nacional o vencedor era Arthur Bernardes, que era politicamente crítico a Borges de Medeiros, imaginava-se que diante de uma luta armada, restaria ao Presidente da República decretar uma intervenção federal no Estado e, assim, novas eleições.

O problema é que Borges de Medeiros, antevendo isso, conseguiu se aproximar de Arthur Bernardes, evitando, assim, que o governo federal interviesse nas eleições e nos focos de confronto entre os chimangos e maragatos pelo Estado. Isso foi um balde de água fria sobre os maragatos, pois eles contavam com a intervenção federal e sequer estavam organizados para uma luta de grande porte com o governo de Borges. Os focos de lutas se encontravam longe de Porto Alegre. Com isso, os federalistas tiveram que se organizar em colunas e ao redor de seus líderes locais. No Norte, Leonel Rocha. No centro e sul, Zeca Netto e Estácio Azambuja. Felipe Portinho ficou com o Nordeste do Estado. E na região onde Alceu Wamosy morava, a Fronteira Oeste e Campanha, os encargos das batalhas maragatas ficaram com Honório Lemes, o Leão do Caverá.

A coluna comandada por Honório Lemes se destacou rapidamente entre as outras colunas maragatas, pelo alto nível de sucesso dos embates e pelo número de cidades ocupadas. Além disso, Honório tinha um comportamento diferente dos grandes líderes de pescoços vermelhos, ele não ostentava riquezas e, tão pouco, queria que o tratassem como um diferente dentro das fileiras armadas. Honório era um tropeiro, homem do lombo do cavalo, sua simplicidade campeira o aproximava das pessoas pobres da região, tanto é que sua coluna chegou a contar com mais de três mil homens, todos voluntários. E o Leão do Caverá foi ocupando a Fronteira Oeste e Campanha, Alegrete, Dom Pedrito, São Gabriel, Rosário do Sul e Quaraí. Todos os meses uma nova cidade era ocupada.

Em abril, Honório e sua coluna partiram de Quaraí na direção de Uruguaiana. Uma vanguarda ligeira tomou a dianteira, queriam ir combatendo pequenos focos e reconhecendo estâncias onde pudessem ter chimangos escondidos. Quando a vanguarda estava a cerca de uma légua da cidade, encontraram-se com um único homem armado, tratava-se do policial Capitão Bernardo Mathias Muller, intendente do 3° Distrito. Os soldados de Gumercindo Saraiva foram recebidos à bala pelo exército de um homem só. Um único homem contra uma vanguarda inteira. As testemunhas narram que jamais viram um “homem sozinho, bater-se com tanta valentia como o fizera”. A vanguarda demorou um bom tempo para superar Bernardo, que por fim acabou ferido, vencido e morto, mas jamais esquecido pelos que presenciaram sua valentia, estando inclusive nas memórias de Flores da Cunha. Quando a coluna de Honório Lemes chegou na cidade de Alceu Wamosy, o Leão do Caverá não atacou, pernoitou nos arredores e organizou suas tropas.

Acontece que na cidade todos já sabiam de sua presença. Flores de Cunha, que havia sido o nono intendente de Uruguaiana e ex-combatente de várias lutas na Revolução de 1983, já estava organizado e preparado para o enfrentamento. Ainda em novembro de 1922, mandou carta para Borges de Medeiros, solicitando armas e homens, pois tinha conhecimento de movimentações de “elementos desordeiros” na estância de Luiza Pereira, na Coxilha Negra. Contando com o apoio da Polícia Municipal, com pessoas de Itaqui, liderados por Oswaldo Aranha, alegretenses que conseguiram fugir com armas, quarenta praças do 2° R. C da Brigada Militar e muitos uruguaianenses da Guarda Republicana, a força de defesa da cidade contava com quase 400 homens. Flores da Cunha pernoitou fora da cidade, havia trincheiras em todas as bocas de ruas, no acesso por onde deveria vir a coluna de Honório Lemes, estenderam uma linha com pessoas armadas que ia do matadouro municipal, cruzando pela estrada geral que ligava a cidade aos municípios de Alegrete, Quaraí e Livramento, prosseguindo por campos e por chácaras, indo até às margens do arroio do Salso.

Na manhã do dia seguinte, em 03 de abril de 1923, descendo de um cerrito, surgiu a primeira vanguarda dos maragatos. Foram recebidos com saraivadas de tiros, Flores da Cunha contou que aguardou ao máximo sua aproximação junto da linha de tiro que havia montado. A recepção violenta atordoou os maragatos que precisaram se desagrupar e bater em retirada. Depois de várias investidas sem sucesso, Honório retirou-se de Uruguaiana em 05 de abril. Com a vitória momentânea, Flores da Cunha foi incumbido da missão de perseguir e exterminar os maragatos que haviam tentando ocupar a cidade. Começava ali uma das maiores perseguições de nossa história, a Brigada do Oeste, de Flores da Cunha, contra a Coluna de Honório Lemes.

O inverno já começava a perder as forças e o mês de setembro havia chegado. Alceu Wamosy já estava há algum tempo envolvido com a luta armada contra os maragatos, ele se alistou no início de 1923, tão logo começaram os primeiros combates, e já tinha participado de várias batalhas, como o ocorrido na ponte do Ibirapuitã. Há vários dias Alceu não sabia de sua noiva e família. As tropas de Flores da Cunha tinham perseguido a coluna de Honório Lemes por uma distância gigantesca, cruzando rios, arroios e pradarias.

Os maragatos, já bastante isolados uns dos outros e quase sem munição, começavam a dar sinais da derrota iminente. O Leão do Caverá, manteve-se com sua coluna por muitos dias, lutando com táticas de guerrilha e usando a pampa como o tabuleiro de um grande e mortal jogo de xadrez, mas vendo-se acuado por todos os lados por tropas borgistas, adotou uma estratégia arriscada. Foi até o Rio Santa Maria Chico, que estava envolto numa enchente, era o dia 03 de setembro de 1923. A coluna maragata de Honório Lemes se viu entre as tropas da Brigada do Oeste e do mercenário uruguaio Nepomuceno Saraiva. Sabendo que as tropas de Flores da Cunha vinham para se juntar com o uruguaio, Honório se meteu entre ambas, dividindo as duas tropas. E sabendo também que as tropas de Flores da Cunha eram em maior número e vinham pela margem oposta, Honório decidiu enfrentar primeiro Nepomuceno.

Honório Lemes foi até os campos do Ponche Verde e organizou uma arapuca, colocando atrás de uma coxilha a 3° Brigada Libertadora. Depois atraiu as tropas de Saraiva até o lugar exato em que havia planejado para o combate. Nepomuceno foi advertido por Flores da Cunha, para que não fosse em perseguição, que esperasse ou atravessasse para a outra margem, o uruguaio ignorou a ordem e partiu atrás da coluna. Mal chegou nos campos do Ponche Verde, as tropas do uruguaio foram recebidas com violência, Honório mandou que uma carga de cavalaria fosse jogada para cima dos borgistas, que em posição de defesa agrupam-se num baixio do terreno, depois, linhas de atiradores maragatos abriram fogo. A cavalaria se retirou em seguida e, depois de se reorganizar, retornou para nova investida. Daí, o que se viu no Ponche Verde foi uma luta brutal. Das coxilhas, depois de muitas horas de espera, surge a 3° Brigada Libertadora. A batalha campal se desenvolve no chão, sem cavalos ou metralhadoras, homem contra homem, no facão e na espada. Cerca de cem soldados da cavalaria descem dos animais e também vão a pé para o confronto. Muitos soldados uruguaios abandonaram o campo de batalha. Derrotados, os chimangos são aprisionados e executados ali mesmo.

E Alceu Wamosy estava entre os presos. Ferido com um tiro que entrou pela clavícula e furou um dos pulmões. Na fila da degola, o poeta ouvia os degoladores pedindo para que os prisioneiros falassem “quero-quero”, quem não conseguisse pronunciar, sabido seria que era uruguaio e a degola era a resposta. De repente, Alceu foi reconhecido por um dos filhos de Vasco Alves, o homem com quem seu pai havia discutido anos antes e com o qual demonstrou respeito e honradez diante de duas cidades que esperavam uma luta. Em seguida, Honório Lemes é avisado que o poeta estava entre os feridos, mandou que Batista Luzardo fosse ver como ele estava. Todos pareciam incrédulos com o fato de um poeta que escrevia sobre o amor, um intelectual, estar ali, no meio de tanto sangue e mortes. Honório Lemes dá ordens para que Alceu seja poupado e levado para um hospital em Santana do Livramento. Dias depois, chega Dona Maria Wamosy, sua mãe, ela vai até o hospital e lá se deica em cuidar do filho, junto dela, a jovem Maria Bellaguarda, namorada do poeta, com quem se casaria ainda no hospital.

No dia 13 de setembro de 1923, dez dias depois de ser ferido em Ponche Verde, a morte de Alceu Wamosy é comunicada e choca toda uma comunidade. Dois anos depois, um de seus textos chamou a atenção de muitos de seus admiradores. Wamosy, quando criança, gostava de brincar de fazer adivinhações com cartas de baralhos, mas ele acabou fazendo a maior de suas adivinhações numa poesia, intitulada “Idealizando a Morte”, como numa premonição sem cartas, ele diz:

“Morrer ouvindo a voz de minha mãe e a tua,
rezando a mesma prece, ao pé do mesmo santo,
vós, ambas tendo o olhar estrelado de pranto,
e no rosto, e nas mãos, palidezes de lua.

Morrer com a placidez de uma flor que se corte,
com a mansidão de um sol que desce do horizonte,
sentindo a unção do vosso beijo ungir-me a fronte,
– beijo de noiva e mãe, irmanados na morte.”

Após a batalha do Ponche Verde, em novembro, começaram as tratativas para o armistício. A paz entre chimangos e maragatos só foi oficializada em 14 de dezembro, com as assinaturas de Borges de Medeiros e Assis Brasil. Estima-se que mais de mil pessoas morreram naqueles poucos meses de 1923, e o poeta foi um dos tantos que se aventurou na violência como forma de se fazer política. Os restos mortais de Alceu Wamosy permaneceram em Livramento e, depois de muitas discussões entre as cidades, só foram enviados para Uruguaiana em 1953, colocados dentro de uma caixa de ferro, junto com um livro, onde seriam enterrados por décadas no esquecimento de uma praça. Até que em 2017,  sem querer, os ossos de Alceu foram encontrados debaixo de um busto feito em sua homenagem na Praça Barão do Rio Branco. Não era um “enterro de dinheiro”, como pensou o trabalhador que retirava o busto do lugar, o que ele tinha encontrado era o enterro de um poeta num anônimo túmulo público. Era a vida esquecida de Alceu Wamosy.

No próximo dia 23 de setembro de 2023, completaremos cem anos de sua morte, espero que ele nunca mais seja enterrado em nenhum túmulo esquecido, mas revivido constantemente em homenagens e na leitura de seus textos e poesias.

 

 

 

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana, também é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.
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ENTREPAPO por JOÃO VITOR LIMA | Você valoriza ou já valorizou a ancestralidade e luta de uma mulher negra? https://redesina.com.br/entrepapo-por-joao-vitor-lima-voce-valoriza-ou-ja-valorizou-a-ancestralidade-e-luta-de-uma-mulher-negra/ https://redesina.com.br/entrepapo-por-joao-vitor-lima-voce-valoriza-ou-ja-valorizou-a-ancestralidade-e-luta-de-uma-mulher-negra/#respond Tue, 25 Jul 2023 15:29:26 +0000 https://redesina.com.br/?p=61923 Hoje, dia 25 de julho, celebramos o Dia da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, que aqui no Brasil se celebra especificamente como Dia de Tereza de Bengela e da Mulher Negra, evidenciando ainda mais figura e ancestralidade desta mulher que diante da sua luta e travessia, faz com que outras mulheres e a negritude …

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Hoje, dia 25 de julho, celebramos o Dia da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, que aqui no Brasil se celebra especificamente como Dia de Tereza de Bengela e da Mulher Negra, evidenciando ainda mais figura e ancestralidade desta mulher que diante da sua luta e travessia, faz com que outras mulheres e a negritude em geral, se espelhe e continue a combater o preconceito racial nas suas mais diversas formas.

Tereza de Benguela foi uma líder quilombola que deu visibilidade ao papel da mulher negra na história brasileira. Ela liderou por 20 anos, a resistência contra o governo escravista, na época, e coordenou as atividades econômicas e políticas do Quilombo Quariterê, localizado na fronteira do Mato Grosso com a Bolívia. Tereza se tornou a rainha do quilombo após a morte do companheiro, José Piolho, e, sob sua liderança, a comunidade negra e indígena resistiu à escravidão por duas décadas, sobrevivendo até 1770, quando o quilombo foi destruído e a população foi morta ou aprisionada.

Ao longo da história em que vivemos, a mulher negra passou e ainda passa por diversas discriminações e opressões que, sempre de maneira direta ou indireta, tentaram diminuir a sua devida relevância que até hoje, nunca estave instalada de forma digna em nossa sociedade.

Celebrar não só acima de tudo a luta, mas, celebrar a esperança de dias melhores no respeito a ancestralidade, o reconhecimento e valorização da história em geral, na sociedade, instituições e nas escolas.

Honrar a memória dessas figuras que tem suas histórias conhecidas publicamente, mas também as várias não conhecidas que muitas outras mulheres passaram, é valiosíssimo! Manter viva a chama da luta contra a escravização, as opressões colonialistas, das que “modelaram nossas culturas e tradições”, que ainda é infligida. Que neste dia possamos celebrar a resistência dessas mulheres, suas vivências e conquistas, para que tudo isso seja uma luz de expectativas positivas num breu tão doloroso de incoerência e Intolerância que atualmente temos.

Feliz Dia, Mulheres!

 

 JOÃO VITOR LIMA

Comunicador, estudante e produtor de conteúdo. Desde 2018 tem um canal no YouTube direcionado à entrevistas, receitas e dicas. Desde 2020 a 2022 apresentou a live/programa `João Entrevista’, onde promoveu de forma remota entrevistas ao vivo em sua página no Instagram, com personalidades da arte, cultura, política e televisão. A cantora já falecida Deborah Rosa, a diretora do Theatro Treze de Maio – Ruth Pereyron, a judoca Maria Portela, o cantor Agostta, a cantora nativista Oristela Alves e atriz global Nívea Maria e muitos outros já foram entrevistados por ele. Também, em 2021 apresentou o programa `Radar Social’, veiculado mensalmente pela plataforma Rede Sina, onde discute várias pautas políticas-sociais com diferentes convidados e debatedores. No ano de 2022, ganhou o Prêmio Destaques da Cultura, do Diário de Santa Maria e Revista Mix, como “Revelação do Ano” referente à 2021, no júri popular e especializado. Também recebeu o certificado “Amigo da Diversidade” no Troféu Triângulo Rosa, em homenagem feita pela Ong Igualdade.

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UM OLHAR SOBRE O CENÁRIO DE CINEMA-VÍDEO DE SANTA MARIA/RS – DE 2002 A 2007 https://redesina.com.br/um-olhar-sobre-o-cenario-de-cinema-video-de-santa-maria-rs-de-2002-a-2007/ https://redesina.com.br/um-olhar-sobre-o-cenario-de-cinema-video-de-santa-maria-rs-de-2002-a-2007/#respond Sat, 19 Nov 2022 22:43:53 +0000 https://redesina.com.br/?p=19584 Compartilho com vocês a pesquisa que realizei sobre a história do cinema de Santa Maria-RS no período de 2002 a 2007, resultado de trabalho de conclusão de curso de graduação em Jornalismo na UFN – Universidade Franciscana. MONOGRAFIA (clique na imagem para rolar a paginação) ARTIGO (clique na imagem para rolar a paginação)  

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Compartilho com vocês a pesquisa que realizei sobre a história do cinema de Santa Maria-RS no período de 2002 a 2007, resultado de trabalho de conclusão de curso de graduação em Jornalismo na UFN – Universidade Franciscana.

MONOGRAFIA

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ARTIGO

Artigo 02_Dani_Melina

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E ELES TORTURAVAM ALI, NA CABECEIRA DA PONTE, ENQUANTO OS FILHOS DORMIAM EM SEUS CAIXOTES. por ROGER BAIGORRA MACHADO https://redesina.com.br/e-eles-torturavam-ali-na-cabeceira-da-ponte-enquanto-os-filhos-dormiam-em-seus-caixotes-por-roger-baigorra-machado/ https://redesina.com.br/e-eles-torturavam-ali-na-cabeceira-da-ponte-enquanto-os-filhos-dormiam-em-seus-caixotes-por-roger-baigorra-machado/#respond Fri, 01 Apr 2022 13:58:08 +0000 https://redesina.com.br/?p=18018 Eu fui criança nos anos 80 e, como boa parte delas, cresci ouvindo histórias do tempo em que meu pai e meus tios eram militares do Exército, lá pelo período entre os 60 e 80. Estas narrativas de quando eles estavam no “quartel” continham histórias de todo tipo, umas engraçadas, outras nem tanto, mas eles …

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Eu fui criança nos anos 80 e, como boa parte delas, cresci ouvindo histórias do tempo em que meu pai e meus tios eram militares do Exército, lá pelo período entre os 60 e 80. Estas narrativas de quando eles estavam no “quartel” continham histórias de todo tipo, umas engraçadas, outras nem tanto, mas eles sempre deixavam um mesmo sentimento passar, o medo. Todos sempre relatavam que havia uma tensão com a invasão argentina e com os comunistas.

Sim. Nos anos 70, mais precisamente, depois de 1976, os adolescentes uruguaianenses que estavam no exército eram bombardeados com o medo da invasão argentina e com o pânico moral em relação aos comunistas brasileiros. Esse medo foi tão profundo na psiquê destes jovens, que mesmo depois de adultos, nas histórias que contavam, deixavam transparecer a tensão com que viviam as rotinas militares, os serviços e as rondas.

Mesmo sendo criança, isso nunca me fez sentido algum. Como assim? Os argentinos queriam invadir o Brasil? Eles viriam por onde? Seria pela ponte? De barco? Qual o motivo?

Eu conhecia os argentinos, ora, eu os via quase todo mês, quando cruzava a ponte para ir nos “Buraco” com meus pais. Quem lembra dos “Buraco”, assim mesmo, no singular, tem como eu boas lembranças. Lá eu descobri que os argentinos faziam o melhor doce de leite, as melhores balas de leite, tinham os torrones e o tatin, era sempre uma alegria voltar de Paso de Los Libres. Os argentinos eram pessoas boas, sempre sorridentes, por que cargas d’água em algum momento eles se tornaram inimigos que queriam invadir o Brasil?

Com o tempo, conversando, lendo, estudando e pesquisando, fui compreendendo que nunca houve nenhuma tentativa de invasão por parte dos coirmãos, salvo, as rusgas territorialistas do século XIX. A única coisa que tinha invadido, ambos os países, eram os militares argentinos e brasileiros, ávidos pelo poder político, armados e propagadores de teorias conspiratórias importadas do norte da nossa América.

Do lado brasileiro, o golpe militar ocorrera antes que do lado argentino, em 1964. Do outro lado da ponte, os argentinos só conheceriam a tragédia de uma ditadura civil-militar em 1976. Os argentinos morreram aos milhares, até hoje mães e avós andam pela Praça de Maio em busca dos corpos de seus filhos e netos.

A violência extrema é um dos traços mais assustadores das ditaduras latino-americanas e das ditaduras mundo afora, seja de que lado estiverem no espectro político.

Em Buenos Aires, os alvos do terrorismo de Estado eram professores, estudantes, políticos, líderes sindicais, mulheres grávidas, adolescentes, qualquer alguém que falasse algo no bar, todo tipo de gente que pudesse ser visto como “opositor” e “subversivo”. Pois estas pessoas eram torturadas, espancadas, depois de presas por dias, eram colocadas em aviões militares.

Empilhadas com as cabeças raspadas, eram despidas e drogadas. Os aviões sobrevoavam o mar, as portas traseiras se abriam e os corpos vivos e inertes eram jogados lá do alto. Os “voos da morte” sobrevoavam regularmente o oceano, estima-se que os militares argentinos mataram mais de 4 mil pessoas.

A “invasão argentina” que os milicos uruguaianenses temiam nos anos 70 era, na verdade, uma fuga em desespero de outros seres humanos. Diante do terrorismo dos militares argentinos, a maneira de sobreviver era fugindo. Se jogando no rio, tentando passar pela ponte dentro de um táxi. Escondido num ônibus. A crueldade de tudo isso é que eles fugiam para o Brasil, país dominado pela mesma ideologia militar de morte, tortura e perseguição. Os argentinos pulavam da frigideira e acabavam caindo na fogueira.

Quando eu ainda era estudante de História na Universidade Federal de Santa Maria, depois da aula, eu fui para o bar do Seu Zé, lá pelos idos de 2003/2004. O Seu Zé era um português gente bueníssima, dono do Café Cristal. O bar ficava ao lado do Taperinha, prédio onde eu morava. Ou seja, eu sempre passava na frente, quando não parava para um café, era para um vinho no final do dia. Naquela noite, parei para tomar um vinho, como ainda não tinha nenhum conhecido, fiquei no balcão para conversar com o Zé.

No balcão, quando cheguei, lá já estavam dois senhores sentados, cujos nomes eu não lembro, e se lembrasse, por obviedades jurídicas, não diria. Eu já os havia visto no bar, mas sempre sentavam no fundo, nunca no balcão. Os dois tinham cabelos brancos, rostos de vovôs, jeito de pessoas tranquilas, queridas. Ali, entre um gole e outro de um bordô colonial, um deles me perguntou de onde eu era. – De Uruguaiana, respondi de voleio. Os dois se olharam e riram. Parece que eu havia disparado um gatilho nas memórias. Sentaram numa das mesas do canto da parede de madeira, eu sentei junto, ao lado da mesa do Osmann e do Glênio, outros dois senhores, meus amigos de bar. O Osmann já nos deixou, era aposentado da UFSM e o Glênio, que espero ainda esteja conosco, era ferroviário aposentado.

“Bah, passei por poucas e boas em Uruguaiana!”, afirmou um deles. Começaram a falar do tempo em que ambos serviram em Uruguaiana, um deles havia servido na cidade como Fuzileiro e o outro como Sargento do Exército. Os dois haviam servido bem na época das memórias e do medo da “invasão dos argentinos”. Bem na época das histórias da minha infância.

Eu me preparei para rir, afinal, se as histórias forem iguais àquelas histórias dos meus tios, do meu pai, vai ser diversão garantida. Mas a lembrança da minha infância se desfez tão logo eles começaram a contar as histórias deles. Como vocês sabem, “in vinu veritas”. Ou como diria um amigo, “o álcool entra e a verdade sai”.

Na última, a pior de todas, o senhor que foi sargento em Uruguaiana na metade dos anos 70, contou-me que uma vez uma família de argentinos tentou passar pela ponte, mas foi detida por policiais brasileiros e pela Polícia do Exército. A família estava só com a roupa do corpo, sem documentos e só diziam que estavam indo ver parentes no lado brasileiro. O sargento ficou encarregado de levá-los até o prédio que fica na cabeceira da ponte, ao lado das torres de entrada, onde até hoje tremulam de vez em quando as bandeiras de Brasil e Argentina. De acordo com o que ouvi, lá trabalhavam agentes do SNI (Serviço Nacional de Inteligência) e outras pessoas responsáveis pela migração.

Nesse prédio que fica na cabeceira da ponte, a família toda foi torturada. Um homem, uma mulher, um menino de uns doze anos e uma adolescente. Entre um gole de vinho e outro, o Sargento, afirmou que não participou da tortura, que jamais participou, que apenas os agentes do SNI espancaram os quatro argentinos.

No entanto, ele sorriu várias vezes, enquanto contava para o outro senhor sobre os gritos que a mulher dava. O fuzileiro falou das vezes em que prendeu argentinos em barcos e chalanas que cruzavam o rio noite a dentro, lembrou que sempre levava os presos para o mesmo prédio. O prédio ao lado da entrada da ponte. Depois, os presos eram entregues para a Gendarmeria argentina. Os dois riam, como que se lembrassem de uma época boa e divertida das suas vidas.

Ao perceberem meu mal estar, ambos mudaram de assunto, fizeram piada sobre a dupla Grenal, um deles reclamou da rua onde morava em Camobi e eu mudei de mesa.

E eles torturavam bem ali, bem na entrada da ponte. Depois daquela noite, anos depois eu voltei para Uruguaiana e ainda hoje, sempre que passo por ali, pela cabeceira da ponte, eu me calo. Eu me entristeço. Brasileiros e argentinos foram torturados naquele prédio.

Na Argentina, os torturadores foram julgados e receberam prisão perpétua. No Brasil, eles envelheceram, parecem avôs simpáticos, ainda estão por aí, escreveram livros de suas memórias, andam nos bares, bebendo e rindo.

Agora, antes que você diga “eu fui militar na ditadura e não vi nada disso” ou “sou filho de militar e nunca ouvi falar disso”, siga lendo.

DEBAIXO DO CAIXOTE: OU SOBRE COMO FILHOS DE MILITARES POUCO SABEM SOBRE A DITADURA.

Vejam, esse título é só um exercício, não um dogma, quão muito é uma afirmação universal. Ele, na verdade, ocorreu-me hoje, antes do almoço, enquanto conversava com minha esposa. Falava para ela que eu havia bloqueado um número grande de pessoas no meu perfil do Facebook, em sua maioria, por ofensas, por defenderem golpes militares, negarem as torturas, tanto aqui quanto na Argentina.

O curioso, é que vários destes “bloqueados” apresentavam uma mesma lógica nas suas falas. Muitos usavam a seguinte argumentação:

“Eu sou filho(a) de militar, cresci nos anos 70 e nunca ouvi falar de tortura em Uruguaiana”.

A primeira parte da minha argumentação é simplória, parte da obviedade: Nem todos os militares se envolveram com tortura, assim como, nem todos os brasileiros foram torturados. Logo, foi uma prática realizada por grupos de militares contra grupos específicos de brasileiros.

Dito isso, quero deixar claro que se você, que está lendo este texto, é filho de militar, isso não quer dizer que seu pai praticou tortura em alguém. Ser militar entre os anos 60/70 não significa ser torturador. Eu acredito nos ex-militares da época que vieram no meu perfil e afirmaram não terem ouvido ou visto tortura. Acredito.

No entanto, a lógica inversa também é válida, se naquela época você era filho de alguém que era militante político de esquerda, certamente seu pai passou por alguma situação ruim causada por militares.

Noutro dia, um colega de universidade me relatou que o seu pai, professor universitário, era semanalmente retirado de casa, geralmente de madrugada, e levado para o antigo prédio do QG de Uruguaiana (onde hoje é o Centro Cultural Dr. Pedro Marini) e lá ficava toda a madrugada. Nunca apanhou, mas era privado do sono, forçado a ficar confinado numa sala enquanto o questionavam sobre sua vinculação com o PCB. Nem sempre a tortura era uma violência física.

Agora quero que você vá comigo para o cinema italiano, para um filme do Roberto Benigni, chamado “A Vida é Bela”. É uma obra de 1997 e que deu o Oscar de melhor ator para Benigni. O filme se passa na Segunda Guerra Mundial, narra a origem de uma família e também a sua tragédia. Começa com um casal se apaixonando e termina com uma família sendo levada para um campo de concentração alemão.

A mãe, Dora, é levada para uma parte do Campo, enquanto que o pai, cujo nome é Guido, e o pequeno Giosué, o filho, passam a viver junto com outros judeus. Em boa parte do filme, existem momentos engraçados que só nos pioram a sensação de impotência. É que Benigni consegue fazer graça diante da desgraça, como andar atrás de um soldado alemão, imitando sua forma de caminhar.

A estratégia de Guido é não deixar que o filho, uma criança de uns cinco anos, perceba o tipo de mundo onde ele está. Assim, Guido cria aventuras, faz imitações, brinca, faz caretas, tudo para que Giosué não perceba que ambos estão no pior lugar do mundo, vestidos com as roupas listradas que os judeus tinham de vestir, sofrendo agressões, torturas, vendo pessoas desaparecendo diariamente, mortas, de fome, de doença ou de tiro. A missão de Guido está dada.

A personagem de Benigni se esforça para alienar o filho de tudo que acontece ao redor. Giosué não percebe nada, o campo de concentração é uma bela vida infantil de diversões. Guido faz brincadeiras diante das piores situações. Enquanto Giosué é alienado pelo pai, Guido tenta fazer contato com a esposa. Num dia, sorrateiramente, consegue falar no rádio dos alemães “buongiorno principessa!”. Sua voz é ouvida em todos alto-falantes do campo de concentração. “Buongiorno principessa” era a forma como ele falava com sua amada antes de serem presos.

Mas o terror é o que ronda a história de A vida é Bela. Os alemães quando derrotados, começam uma matança e fuzilam os judeus. Enquanto o caos toma conta, numa última brincadeira, Guido diz que se Giosué quiser ganhar um “grande prêmio”, ele deve ficar escondido debaixo de um caixote de madeira. “Só saia quando estiver silêncio”. Enquanto o filho está escondido, Guido revira o campo de concentração em busca de sua esposa. Mas ele não encontra Dora.

No entanto, ele acaba sendo abordado por soldados alemães. Ao ser levado preso e ao perceber que estava passando diante do caixote onde Giosué estava escondido, Guido faz continência para o filho e marcha em um passo escrachadamente militaresco e engraçado. Era a marcha para sua morte, ali, diante dos olhos do filho que espiava tudo por uma fresta, debaixo do caixote.

Guido é fuzilado logo adiante, mas longe dos olhos do filho.

Agora a segunda parte do meu pensamento. Antes, saiam do filme do Benigni e voltem para Uruguaiana e para a história que ouvi lá no Café Cristal de Santa Maria. Voltemos para os argumentos que tive de ler ontem e hoje: “Eu sou filho de militar e nunca ouvi falar de tortura”.

Os filhos, cujos pais militares viveram nos anos de ditadura civil-militar, tem razão em me afirmar que quando crianças jamais ouviram falar em tortura. Eles jamais poderiam saber de nada. Não faz sentido que saibam.

Se soubessem sobre as torturas, seus pais teriam falhado vergonhosamente na tarefa de serem pais. Até mesmo os torturadores são pais. Hoje, adultas, muitas daquelas crianças sequer devem compreender o que significa “Golpe Civil-Militar” ou “período de exceção”. Eles não viveram isso. E “tortura”, obviamente, é palavra vazia de sentido, pois não fez parte do cardápio das palavras cotidianas dos churrascos em família. Os filhos dos militares pouco sabem sobre as atrocidades da ditadura militar. O Motivo? Eles estavam dormindo protegidos debaixo do caixote.

Já no filme “A Vida é Bela”, quando Giosué sai de debaixo do seu caixote, o pai já estava morto. Os tanques e soldados americanos estão invadindo, vitoriosos, o campo de concentração. O “grande prêmio” de Giosué foi um passeio na carroceria de um tanque de guerra.

Para outras crianças, incapazes de sair de debaixo da caixa, o prêmio foi uma vida em ignorância histórica. No entanto, é possível saber. Um início pode ser o trabalho de Sabrina Steinke, ” A repressão política na fronteira Uruguaiana – Paso de los Libres no final da década de 1970″, Tese defendida na Universidade de Buenos Aires. Existem muitos outros livros, dissertações e teses sobre a Operação Condor, as rotas de fugas, os torturadores em Uruguaiana, as torturas nas fronteiras com a Argentina, só que é preciso sair de debaixo do caixote…

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana.É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.

 

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UMA BRUXA NA FOGUEIRA. por ROGER BAIGORRA MACHADO https://redesina.com.br/uma-bruxa-na-fogueira-a-universidade-em-chamas-por-roger-baigorra-machado/ https://redesina.com.br/uma-bruxa-na-fogueira-a-universidade-em-chamas-por-roger-baigorra-machado/#respond Fri, 04 Feb 2022 19:39:20 +0000 https://redesina.com.br/?p=17525 A pele gelada de Maria Simões era o aviso da náusea. O frio da pele contrastava com o morno do suor escorrendo pelo centro de sua testa. A gota salgada entrava no olho e sequer podia ser retirada, Maria estava amarrada num poste na Paróquia de Casas Novas, próximo a Coimbra. Maria Simões estava cansada, …

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A pele gelada de Maria Simões era o aviso da náusea. O frio da pele contrastava com o morno do suor escorrendo pelo centro de sua testa. A gota salgada entrava no olho e sequer podia ser retirada, Maria estava amarrada num poste na Paróquia de Casas Novas, próximo a Coimbra. Maria Simões estava cansada, pudesse, escolheria a morte ali mesmo. Cercada por pessoas que a observavam, algumas que ela conhecia, outros não, Maria era solidão. Eram jovens, velhos, homens e mulheres, uns com tochas feitas com panos embebidos em gordura, outros apenas com sorrisos, todos querendo o mesmo: assistir a dor de Outro ser humano.

Na frente do prédio ao lado da Igreja, um padre discursava sobre o amor de Deus para com os homens, dizia algumas frases em latim enquanto algumas crianças brincavam animadamente de jogar pedras e pedaços de bosta seca de cavalo no rosto de Maria. Era 1652. Maria Simões era uma mulher viúva, tinha apenas 30 anos de uma vida feita em pobreza e medo.

Em Portugal ela era uma cristã nova, seja, uma judia recém-convertida ao cristianismo, logo, ao catolicismo. Seu pai era um tintureiro e a mãe uma dona de casa. Maria Simões estava presa pela Inquisição de Évora desde os 26 anos.

As últimas noites de torturas não foram suficientes para que eles compreendessem. Maria Simões já havia negado de tantas e diferentes formas o seu “contrato com o diabo”, mas de nada adiantava, negar era indiferente. E ela demorou para entender isso.

O povo das redondezas tinha certeza que Maria Simões era uma feiticeira poderosa. Diziam pelos becos que uma mulher com quem Maria havia discutido anos antes, logo depois morrera. E a morte seria culpa sua. Crianças recém-nascidas em São Martinho também morreram, obviamente que por causa de Maria e suas bruxarias. O povo de São Martinho de Bispo já tinha decidido: Bruxa.

Embora o arquétipo da bruxa dissesse que elas, as bruxas, eram mulheres fortes, más, com olhar de ódio e sorriso insinuante, o que se via em Maria Simões era uma pessoa frágil, pequena, com medo, enfraquecida e em pânico. Nada disso importava, pois mesmo que Maria estivesse ali, chorando e negando, implorando por sua vida, isso seria apenas mais um indicativo do ardil do pacto dela com o diabo. Tudo seria visto como uma mentira e a mentira era uma das principais características de Lúcifer e seus pactuados.

Maria Simões viu pessoas que ela julgava de confiança lhe traírem, sob juramento e diante dos inquisidores, mentiram diante dos seus olhos. No seu processo, texto feito por inquisidores do Santo Ofício na Inquisição de Évora (Processo 6823), os seus crimes são “judaísmo”, “heresia” e “apostasia”. No processo 4102 do Tribunal do Santo Ofício/Inquisição de Lisboa sua sentença consta como “Abjuração de veemente, cárcere a arbítrio, penitências espirituais, pagamento de custas.” (O processo de Maria e de centenas de outras pessoas pode ser facilmente acessado pela internet, na página do Arquivo Nacional Torre do Tombo de Portugal.)

Maria Simões foi açoitada por centenas de vezes enquanto andava pelas ruas de Coimbra. Os inquisidores portugueses não eram bestas ignorantes e iletradas. Pelo contrário, eram pessoas cultas e leitores ávidos dos manuais da inquisição. A população analfabeta acreditava em tudo que eles dissessem, afinal, eles tinham acesso ao conhecimento. Acreditava em cada pequena mentira.

Depois de açoitada, Maria Simões perdeu tudo o que tinha, casa, família, posses. Como parte da pena por bruxaria, foi degradada para o Brasil por cinco anos. Nunca mais retornou para São Martinho de Bispo.

Os inquisidores de Portugal eram leitores do Malleus Maleficarum (Martelo das Bruxas), um livro todo escrito em latim. O Malleus foi uma obra escrita em 1484 por teólogos dominicanos, também inquisidores da Igreja Católica, para servir de manual. Mas não um manual qualquer, um manual sobre como encontrar bruxas.

Noutras palavras, o “Martelo das Bruxas” era um manual da ignorância, do medo e da tortura. Malleus Maleficarum demonstra como a lógica patriarcal agia na idade média, em especial, sobre os fetiches masculinos baseados no medo ao que é diferente no ser feminino, o medo da mulher que quebrava com o padrão comportamental de uma sociedade machista e histericamente religiosa. Bastava uma mulher ter opiniões, ter atitudes, crenças ou roupas diferentes daquilo que os homens tinham como o certo e pronto, lá estava uma bruxa.

Estudos apontam que entre os séculos XIV e meados do XVII na Europa, a repressão sistemática ao espírito feminino e a liberdade queimou mais de cem mil mulheres. Uma tragédia sem precedentes, baseada em discursos de ódio e histeria moral. Mas sobretudo, ódio baseado em ignorância. Pouquíssimas pessoas tinham acesso à leitura, e se o latim era o idioma dominante na igreja, logo, também dominava as páginas dos livros. O problema é que os livros não eram coisas acessíveis ao povo, apenas uma elite religiosa concentrava o saber dos livros e, com isso, dominava o poder.

Se os livros foram responsáveis por divulgar ideias tão desumanas e que fizeram milhares de mulheres serem queimadas ou torturadas, os livros também tem o potencial oposto, a força de levar luz aos recantos mais sombrios de nossa sociedade.

Com a Reforma Protestante, o latim perdeu seu status de língua dominante e detentora do saber. Com isso, a bíblia passou a ser publicada em línguas vulgares, francês, inglês, alemão e ganhou novas interpretações. Daí, foi um pulo para que textos com temas variados surgissem, para que Shakespeare e toda uma trupe de autores levassem ao povo comum novas histórias e discussões morais. Com a gradativa universalização da leitura e a queda do latim como língua dominante nas publicações, o surgimento de novos escritores foi um processo natural de inclusão de pessoas no conhecimento.

O livro passou a ser visto como uma ferramenta para alterar a realidade humana, uma ferramenta popular e de baixo custo. “Saber é poder”, já escreveu o Francis Bacon, por isso, retirar esse poder da Igreja era uma tarefa que só poderia ser feita através da força da democratização do saber. Era preciso fracionar o poder.

Quando o conhecimento deixa de ser substrato apenas de um grupo de pessoas e passa a ser o solo fértil de uma pluralidade de indivíduos, ele se torna um poder democratizado e que vai de encontro aos discursos de pequenos grupos que tem ojeriza com tudo que é diferente.

Hoje, os livros cumprem um papel fundamental em nossa sociedade, os conhecimentos trazidos pelos estudos feministas, pelos estudos pós-coloniais, o trabalho dos historiadores, dos cientistas políticos, biólogos, físicos, neurocientistas,  juristas, filólogos, filósofos e tantos outros, funcionam em rede. Uma teia de ideias, de conceitos e de visões de mundo que se conectam e se complementam em cada choque de ideias, e com isso, vão instrumentalizando as pessoas para pensar o presente, tendo como horizonte os erros do passado e o futuro como uma ideia possível.

O livro é, sem dúvida, uma das maiores invenções da humanidade, perdendo apenas para a massa de pastel uruguaio que é vendida no posto de gasolina perto de Quaraí.

Mas você deve estar ser perguntando qual o motivo de eu falar disso tudo, de medo de bruxas, de Maria Simões, sobre o poder e a importância dos livros? É que na verdade eu quero falar sobre um lugar que é importantíssimo para o conhecimento e que está sob ataque: A universidade pública.

É lugar-comum que o conhecimento deve ser a base de qualquer sociedade moderna que tenha pretensões de crescimento social e econômico em linhas democráticas. Se os livros são os portadores do conhecimento, certamente, eles devem ser de domínio público ou, no mínimo, de fácil acesso. Assim deve acontecer também com as escolas e com as universidades.

Neste aspecto, as escolas e universidades cumprem um papel fundamental na divulgação dos livros como fontes de conhecimento e na produção intelectual de novas obras. Logo, basta deixar que as pessoas acessem as universidades que elas terão acesso ao conhecimento. Certo? Não.

Acontece que o acesso ao conhecimento é um fenômeno novo na história do nosso país. Se compararmos a idade de nossas universidades com a de países vizinhos, veremos que chegamos muito tarde na dita modernidade. Por muito tempo as elites econômicas brasileiras foram uma ilha de letrados num mar de analfabetos. A ignorância como projeto político está em vigor em nosso país. A ignorância não é um dom, é um estado, uma situação que mantém inalterada a realidade para uma minoria em detrimento da maior parcela da sociedade.

Nas duas primeiras décadas dos anos 2000, o nosso país viu uma mudança drástica no perfil das pessoas que acessam o ensino superior. A inclusão de pessoas com deficiência, de pessoas pobres, de índios e de negros foi um marco em nossa ideia de futuro. Em pouco mais de uma década conseguimos modificar o perfil das pessoas que acessam o conhecimento acadêmico. Novos grupos de pessoas passaram a ocupar postos de trabalhos que eram ocupados quase que exclusivamente por pessoas de classe média e alta e com a pele branca. Mas nada disso importa.

Curiosamente, o comportamento de muitos brasileiros em relação as universidades é parecido com o comportamento das pessoas com tochas ao redor de Maria Simões. Não bastam as experiências internacionais apontando o papel central e estratégico das universidades no desenvolvimento econômico, as estatísticas que demonstram a importância social destas instituições, a inclusão, o desenvolvimento científico e tecnológico, para eles e suas tochas, tudo isso é besteira, mentira, estratégia do demônio, do comunismo, do globalismo e do Foro de São Paulo.

Em Uruguaiana, há pouco tempo um vereador bolsonarista e que hoje está deputado estadual, invadiu a biblioteca municipal para retirar um livro do “Queermuseu” que ele julgava “do demônio”. O vereador era defensor do nefasto programa Escola sem Partido, já era a amostra grátis de uma política que tomaria conta de Brasília e que tem um projeto bem claro: a ignorância e o medo como forma de manutenção do poder.

As escolas e as universidades, os professores e os cientistas são acusados de “bruxaria” ao emitir críticas em relação as políticas públicas do governo federal ou indicar a necessidade de protocolos sanitários e a valorização  da vacinação.

O conhecimento científico e o saber lutam para ter voz ao lado das opiniões pessoais, religiosas e das mais absurdas teorias conspiratórias. Muitos cientistas acabam tentando demarcar território com fatos científicos, defrontando-se com a lógica da pós-verdade, onde boatos e opiniões pessoais se sobrepõe à lógica científica.

O desmonte das universidades federais e o ataque contra minorias não é uma ideia, mas um projeto em execução. Em 2012 o orçamento das IFES (Instituições Federais de Ensino Superior) ficou na casa dos 12 bilhões de reais.

Em 2022, as 69 universidades federais precisarão trabalhar com um dos mais baixos orçamentos das últimas décadas, cerca de 5,1 bilhões. Para se ter uma ideia, o valor destinado apenas para o fundo eleitoral foi de 4,9 bilhões.

Vê-se que investir em educação não é uma prioridade governamental.  Para tentar chegar ao final do ano com as aulas em andamento, restará para as universidades demitir funcionários terceirizados, reduzir horários de funcionamento, contratar pessoas de forma voluntária, reduzir contratos de serviços, diminuir atendimentos comunitários em áreas como a saúde, cortar bolsas e auxílios para estudantes carentes, reduzir número de refeições em restaurantes universitários, reduzir programas de iniciação científica.

No tribunal da inquisição bolsonarista, a ciência e a universidade pública já estão condenadas desde o início do governo, independente do que aconteça, façam o que fizerem, vacinas, remédios, desenvolvimento tecnológico, inclusão social, nada disso será suficiente. Sobre as universidades federais, a política bolsonarista já decidiu: Bruxa.

No Brasil, o Governo Bolsonaro se comporta como um “Santo Ofício”. No lugar de um livro em latim, optou por ter pequenos “martelos das bruxas”, livros escritos no mais simplório português, que dão conta de teorias conspiratórias, leituras peculiares do passado, onde se dirá não houve escravidão ou holocausto, obras como as anedotas alucinógenas e de baixo calão do Olavo de Carvalho ou as memórias obscuras do torturador Ustra. Não importam os estudos científicos, vale mais a corrente do grupo da rede social que diz que vacina faz mal. Pouco importa o Aristóteles e todos que vieram depois, vale mais um desconhecido no You Tube afirmando que a terra é plana.

Bolsonaro sabe que o conhecimento histórico, político, filosófico e de tantas outras áreas do saber é um poder que apaga as chamas da fogueira da ignorância. O projeto governamental é ter sempre uma Maria Simões na praça, amarrada nas mídias, uma farinha na perna, uma declaração absurda, uma motociata, uma ida no hospital para falar da suposta facada, com isso no menu, haverá sempre pessoas com tochas nas redes sociais.

Por hora, com os escassos recursos de custeios e investimentos que estão previstos para 2022, resta que as universidades já estão na fogueira, queimando lentamente. E cada negacionista antivacina e cada terraplanista que surge é como uma bosta seca jogada na cara da ciência. No Brasil atual, a ciência já foi condenada há tempos e, ao contrário da Maria Simões, não há lugar para onde ela ser degradada. E sobre este texto, resta saber se você vai aceitar o fato de que as universidades estão sob ataque ou apenas vai acender a sua tocha.

 

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.
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OLHA A FACA DE BOM CORTE: OLHA O MEDO NA GARGANTA! por ROGER BAIGORRA MACHADO https://redesina.com.br/olha-a-faca-de-bom-corte-olha-o-medo-na-garganta-por-roger-baigorra-machado/ https://redesina.com.br/olha-a-faca-de-bom-corte-olha-o-medo-na-garganta-por-roger-baigorra-machado/#comments Fri, 10 Dec 2021 14:02:06 +0000 https://redesina.com.br/?p=16925 Os homens estavam exaustos. Depois de dias cercados por tropas maragatas, sem comida e sem água, a rendição parecia o melhor caminho. Cerca de 300 soldados Pica-paus foram presos e postos dentro de um cercado de pedra, um curral destes antigos, estrutura feita para conter os animais, construído por escravos. Do lado de fora, no …

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Os homens estavam exaustos. Depois de dias cercados por tropas maragatas, sem comida e sem água, a rendição parecia o melhor caminho. Cerca de 300 soldados Pica-paus foram presos e postos dentro de um cercado de pedra, um curral destes antigos, estrutura feita para conter os animais, construído por escravos. Do lado de fora, no calor de novembro, uns tragos de canha eram engolidos entre risos pelos vitoriosos maragatos.

Debaixo da sombra do angico, um homem afiava uma faca, a lâmina chiava sobre a dureza crua da pedra. Dentro do curral, apenas a angústia do silêncio e a incerteza da vida. Tão logo o primeiro homem foi retirado do potreiro, o silêncio logo deu lugar aos gritos de desespero. Alguns, diante da morte iminente, eram laçados feito bois e arrastados para o lado de fora, agarrados pelos cabelos. Debatendo-se, uns iam tentando se segurar no pasto ralo da terra seca da mangueira. Esperança vã. Era um potreiro de almas abandonadas que padecia nas margens tranquilas da Lagoa da Música.

Fora do cercado de pedra, o soldado que havia sido retirado para sofrer a degola, era obrigado a se ajoelhar. O homem com a faca vinha sem pressa, passando o fio da lâmina contra a unha do polegar, queria ter certeza de não ter que deslizar a faca mais de uma vez contra a carne. Queria um corte limpo. Alguns, quando postos de joelhos, tentavam apertar o queixo contra o peito, uma busca instintiva por proteger o pescoço. Os olhos se arregalavam, o coração mergulhava em taquicardia enquanto a respiração era um ofegante e contínuo movimento.

Como forma de levantar a cabeça e expor o pescoço, um dos soldados que auxiliava o degolador enfiava a ponta de uma faca na narina e empurrava para cima. Muitos narizes foram cortados, quase todos os queixos se erguiam. Uma vez que o pescoço estivesse exposto, o olhar da vítima enxergava o céu azul do pampa gaúcho, uns pássaros cruzando longe, o canto do quero-quero misturado com o vento quente, umas nuvens calmas e, antes delas, o rosto do degolador.

E o fio da lâmina fazia um corte que começava perto de uma das orelhas, cruzava todo o pescoço, rompendo as carótidas e terminava perto da outra orelha. Esse corte era conhecido como a “degola criolla”. Tinha outro tipo de degola, era a “degola brasileira”, onde o corte era menor, a cabeça não chegava a cair para trás. O degolado tinha tempo de mover as mãos e sentir o sangue entre seus dedos, que inutilmente tentavam estancar a vida pelo buraco da faca. Restava a queda no chão, as tentativas de jogar ar para os pulmões, o corpo se debatendo em pânico e tudo terminava depois de umas dúzias de segundos de sofrimento. Era novembro de 1893.

Em dezembro de 1977 em Uruguaiana, no palco da Califórnia da Canção Nativa, em sua sétima edição, Apparício Silva Rillo e Mário Barbará Dornelles apresentavam uma das obras mais poderosas do nosso cancioneiro. Ela se chamava “Colorada”. Uma canção que fazia o oposto daquilo a que estávamos acostumados em boa parte da nossa produção artística, em vez do ufanismo diante dos caudilhos do passado, onde o gaúcho era visto como o detentor das melhores qualidades humanas e onde a elite pecuarista guardava na estância os melhores valores da sociedade, “Colorada” vinha nos lembrar de um tempo em que o gaúcho tinha rasgado a nobreza e estava em luta contra ele mesmo. E no espelho do passado, a imagem refletida era bem diferente daquela que a maioria das canções nativistas mostrava. “Colorada” vinha nos lembrar dos anos de barbárie, de um Rio Grande do Sul onde a degola era a regra e a vingança se escrevia com sangue nas paredes.

“Olha a faca de bom corte,
Olha o medo na garganta!
O talho certo e a morte,
No sangue que se levanta.”

A letra toda é uma poesia que se sustenta em sua riqueza histórica. Sempre que eu ouço “Colorada” eu me gelo, tipo quando era guri, na beira do fogão a lenha ouvindo as histórias de assombração da minha avó. Os versos de “Colorada” cortam fundo na nossa história e eu sempre sinto como se uma lâmina de fato tocasse meu pescoço. Rillo e Barbará nos levam para outro século, para um outro Rio Grande do Sul, feito de campos planos de medo e morte, o tempo “das revolução, das guerra braba de irmão contra irmão”.

Um tempo de extremismos, de violência e morte banalizada. O tempo da Revolução Federalista ou, como muitos chamam, a Revolução da Degola. Nos fins do século XIX, nosso povo se matou de formas tão violentas que dariam inveja a muitos ditadores.

Para quem não sabe muito sobre esse período, cabe dizer que nosso Estado era um lugar muito instável politicamente nos anos 1890.

Historicamente, no colégio, sabemos um pouco sobre a Revolução Farroupilha, outro pouco sobre a Guerra do Paraguai e quase nada sobre a Revolução Federalista de 1893. Esse hiato escolar, creio, até que ajudou no trabalho tradicionalista de imaginarmos o gaúcho como um ser honrado e cordial. No entanto, o que se viu em 1893 foi bem diferente. Em pouco mais de dois anos (fevereiro de 1893 a setembro de 1895) cerca de 12 mil gaúchos se agrediram e se mataram, destes, mais de mil morreram da mesma maneira: degolados. Vizinhos lutando contra vizinhos. Parentes contra parentes. Amigos contra amigos.

O Estado estava dividido entre duas correntes políticas. De um lado, os Republicanos, ou os Pica-paus, afeitos ao Positivismo e liderados por Júlio de Castilhos, membros do Partido Republicano Rio-Grandense.

Do outro lado estavam os Liberais, do Partido Federalista Brasileiro, os Maragatos, liderados por Gaspar Silveira Martins, com seus lenços vermelhos no pescoço. A querida Sandra Pesavento, falecida historiadora, já escreveu bastante sobre esse período e tornou claro o que cada lado queria.

Os Republicanos queriam que uma elite de intelectuais e de sábios fosse a promotora de um desenvolvimento capitalista para todo o Estado. No entanto, também queriam que este Estado, no intuito de fomentar essa mudança, fosse autoritário e opressor com os descontentes.

Os Federalistas, acostumados ao protagonismo, queriam que a elite da região da Campanha fosse a força política principal, uma aristocracia pecuarista cujo poder remontava aos tempos do Brasil Império e que, historicamente, estava ligada ao contrabando nas regiões de fronteiras e a criação de gado.

Dois modelos de sociedade que, sem conseguir dialogar, conduziram nosso povo ao sangue, ao ódio e à guerra civil. Para distinguirem-se, usavam lenços de cores diferentes, os Maragatos vinham com seus lenços vermelhos e os Pica-paus com lenços brancos, mas que no fim, diante da degola, como bem nos lembra Rillo, os dois lenços ficavam iguais.

“Onde havia o lenço branco,
Brota um rubro, de sol pôr.
Se o lenço era colorado,
O novo é da mesma cor.”

De tempos em tempos, Júlio de Castilhos gostava de demonstrar que ele era o poder e, para isso, utilizava da violência; e os caudilhos que o apoiavam eram a ponta de lança que estocava seus opositores. Pela região da Campanha e Fronteira Oeste, diversos eram os pequenos exércitos paramilitares comandados por estancieiros. Sabendo que um vizinho tinha posição política contrária, um estancieiro adepto de Júlio de Castilhos não pensava duas vezes para agir. Com isso, estâncias eram invadidas, mulheres eram estupradas, casas eram pilhadas, desafetos políticos perseguidos e mortos. Tudo sempre era feito sob as vistas grossas das autoridades locais, todas adeptas ao castilhismo. Tais ações foram criando um cenário de brutalidade e revanchismo constante entre estancieiros e apoiadores de ambos os lados.

“Era no tempo que os morto votava,
E governava os vivo até nas eleição.”

Em Bagé, no inverno frio de 1892, José Bonifácio da Silva Tavares, conhecido como Zeca Tavares, fazendeiro conhecido na região, recebia em sua estância, a Estância do Limoeiro, a visita de três homens que eram ameaçados de morte pelos Pica-paus de Júlio de Castilhos. Sabendo dos riscos de hospedá-los, resolveu levar os três para Bagé, para a casa de um conhecido, enquanto isso, sua esposa Umbelina, ficaria sozinha cuidando da estância.

Durante a noite, diversos homens liderados por outro estancieiro, Maneco Pedroso, vindo de Piratini, cidade vizinha, invadiram a Estância do Limoeiro. Nada fizeram com Umbelina e as crianças, no entanto, depredaram o que puderam, roubaram pertences e animais, quebraram coisas e, por fim, mataram um porco. Numa sala da casa grande, o escritório, havia uma cadeira onde Zeca Tavares gostava de sentar ao final do dia para falar de política e pensar nos seus afazeres. Nela, Maneco ordenou que colocassem o porco sentado, morto, degolado. Na cabeça do porco, colocaram um chapéu que era de Zeca Tavares e estava pendurado num chapeleiro. Com o sangue do porco, na parede do escritório ao lado, escreveram a seguinte frase: “A tua cabeça será nossa.”

Umbelina, apavorada, enviou telegramas para diversos jornais, denunciando a barbárie a que fora submetida sua família. No Rio de Janeiro, o Jornal do Brasil publicava um de seus telegramas: “Forças de Pedroso continuam perseguindo meu marido, Zeca Tavares. Minha fazenda Limoeiro foi arrasada. Levaram gado, cavalos e ovelhas. Casa e móveis estragados. Pergunto a quem devo fazer responsável por tais atos de vandalismo?”

Pronto. Estava firmado em sangue, na parede, o contrato de ódio entre duas famílias, o clã dos Tavares e o clã dos Pedroso: Zeca Tavares, um maragato, e Maneco Pedroso, um Pica-Pau, eram a definição do ódio. Um ano depois, em 1893, os maragatos, cansados da violência castilhista, iniciaram uma guerra para retirar do poder Júlio de Castilhos e todos seus apoiadores.

Antes da Revolução ter seu início, Zeca Tavares teve que deixar a família e fugir para o Uruguai. Estava jurado de morte pelos Pedroso. Permanecer em Bagé era colocar em risco a Estância do Limoeiro e sua família.

O irmão de Zeca era o General João Nunes da Silva Tavares, o Joca Tavares, ex-combatente da Guerra do Paraguai e da Revolução Farroupilha. Por sinal, naqueles anos, a maioria dos homens adultos já haviam participado de alguma guerra, boa parte começava cedo, seja no Rio Grande do Sul, Paraguai, ou no Uruguai e Argentina. Por isso, com intuito de aumentar o efetivo de homens, tanto os Maragatos quanto os Pica-paus, contratavam soldados mercenários nestes países. A mão de obra era farta.

“Era no tempo das revolução,
Das guerra braba de irmão contra irmão,
Do lenço branco contra os lenço colorado,
Dos mercenário contratado a patacão.”

Zeca e Joca Tavares, sabendo da necessidade de organizar forças para a Revolução Federalista, ao retornarem para a região de Olhos D´Àgua, localidade aos arredores de Bagé, começaram a recrutar pessoas para compor seu exército. E não era difícil encontrar alguém disposto a aderir ao exército maragato, cujo um parente não tivesse sido assassinado ou tivesse tido a propriedade saqueada pelos Pica-paus. A maioria das pessoas que se alistava não ingressava nas forças maragatas por ideais ou questões políticas, alistavam-se mesmo era por vingança e ódio contra àqueles que lhes fizeram mal. Zeca e Joca já haviam organizado um bom exército na região de Bagé e contavam também com a ajuda de Adão Latorre.

Adão era major no exército federalista, um homem negro e livre, homem de confiança e também capataz das estâncias dos irmãos Tavares. Nascido no Uruguai, Latorre já havia participado de várias batalhas, desde os 16 anos de idade, quando se alistou no exército do Partido Blanco. Nas guerras uruguaias, lutou junto com Aparício e Gumercindo Saraiva. Aprendeu táticas de guerrilha e se destacou na cavalaria ligeira. A cavalaria ligeira era caracterizada por ter homens capazes de ficar o dia inteiro no sol, cavalgando com lanças e espadas, eram bons no tiro e ótimos no manejo do “ferro branco”, facas e facões. E no trato com os cavalos eram especialistas, não se importando em dormir em qualquer lugar, na chuva, na lama, no frio, sempre ao lado dos seus animais.

“Era no tempo dos combate a ferro branco,
Que fuzil tinha muy pouco e
Era escassa a munição.”

Adão Latorre era o típico gaúcho do século XIX. Hábil com a faca, sabia carnear qualquer tipo de bicho e o lombo do cavalo era extensão do próprio corpo. Habitava o pampa como se nele não houvesse nenhum aramado, cruzando de um lado para o outro das fronteiras como se elas não existissem. Assim, dominava o portunhol, sem ter frequentado escolas, pouco sabia de ler e escrever. Por ser pobre e mestiço, descendente de escravos, Adão Latorre sabia, desde jovem, a importância da sobrevivência.

Durante o século XIX, a sina de uma criança pobre no Rio Grande do Sul e Uruguai era pender ou para a lida do campo, trabalhando como peão de estância, aprendendo o manejo da faca e do cavalo, ou para a lida militar, pois guerras, assim como o gado, também não faltavam para se trabalhar. Adão Latorre conseguiu sobreviver em tempos de guerras e também nos tempos de paz. No Brasil, depois das lutas pelo Exército Blanco no Uruguai, trabalhava na lida do campo, como capataz de estância em Bagé e era tido como um membro da família Tavares, sempre que chegava na Estância do Limoeiro, as portas estavam abertas. Tinha em Olhos D’Àgua uma chácara onde morava com a mulher, o pai e uma filha. Dizem que certa feita, quando Adão andava com os irmãos Joca e Zeca Tavares, tropeando bois para o Uruguai, seu rancho foi invadido por um grupo de soldados Pica-paus. A casa foi saqueada, a filha e a mulher foram estupradas diante dos olhos de seu velho pai. Salvo a amizade de Adão pelos irmãos Zeca e Joca, talvez esse acontecimento também tenha contribuído para que ele se alistasse junto aos Maragatos.

Sempre que podiam, Adão, Zeca e Joca destruíam trilhos da ferrovia para evitar que munição e armas fossem enviadas para a cidade de Bagé, onde estavam as tropas comandadas por seus desafetos, Maneco Pedroso e seu irmão, Antero.

Em outubro de 1893, depois de assumir o comando da força castilhista, o Marechal Isidoro Fernandes resolveu ir para Bagé. Com ele foram soldados, cavalos, canhões e armas. Isidoro queria fazer da cidade de Bagé um reduto para os lenços brancos, já que ali estava o maior foco das tropas maragatas. Dominar a região de Bagé seria um grande trunfo para a vitória dos Pica-paus.

Isidoro decidiu repartir as forças em três locais diferentes. Os irmãos Maneco e Antero Pedroso ficariam junto com Isidoro, dando proteção a estação férrea Rio Negro (hoje no município de Hulha Negra). Outra parte dos soldados ficaria em Bagé e uma terceira parcela ficaria na região do Quebracho Grande, sob liderança do Capitão Bento Gonçalves da Silva Filho, descendente do líder farroupilha, General Bento Gonçalves.

Os irmãos Joca e Zeca Tavares fizeram diversas investidas contra o grupo da estação Rio Negro, foram enfraquecendo lentamente os Pica-paus. Num dia, Maneco Pedroso tentou sair com um pequeno grupo para pedir ajuda para o restante das tropas que estavam em Bagé ou Quebracho Grande, mas não conseguiu passar pelos lanceiros maragatos e teve de voltar. Antero, irmão de Maneco, tentou convencer o irmão a fugir durante a noite, visto que Joca e Zeca estavam em grande vantagem. Foi em vão. Maneco disse que jamais abandonaria seus soldados ali. Antero partiu sozinho, enquanto Maneco, depois do Marechal Isidoro Fernandes se render, ficou isolado com seus soldados.

“Era no tempo do inimigo não se poupa,
Prisioneiro era defunto,
E se não fosse era exceção.”

O Marechal Isidoro, não se sabe se por falha ou má-fé, condicionou a rendição: queria que todos os oficiais militares fossem poupados e recebessem tratamento digno. Maneco não era um oficial de carreira, seus soldados não eram militares. Eram civis, peões, trabalhadores, uns eram argentinos, outros uruguaios, uns eram mercenários que haviam sido contratados para lutar ao lado de Maneco. Todos foram deixados para trás pelo famoso marechal.

Maneco e seus soldados foram presos e colocados na mangueira de pedra. O triste e famoso “Potreiro das Almas”. Zeca Tavares e Maneco Pedroso, dois dos maiores desafetos da Revolução Federalista, enfim, estavam postos um na frente do outro.

Zeca, mesmo diante da negativa do irmão, ordenou que a degola começasse. Queria que alguém de confiança fizesse o trabalho, alguém que honrasse o ocorrido na Estância do Limoeiro. Chamou Adão, seu major, capataz e amigo. Adão Latorre, até então, jamais havia sido associado ao triste assombro da degola, mas como peão que era, cumpriu a ordem do patrão. O primeiro a ser retirado da cerca de pedra foi ele, Maneco.

“Quem mata chamam bandido,
Que morre chamam herói.
O fio que dói em quem morre,
Na mão que abate não dói.”

Na lenda que se reza, diz-se que houve um diálogo entre Adão, o degolador, e Maneco, o degolado. Uma conversa feita entre dois gaúchos, homens que em nome da política lutavam de lados opostos e que em vida moravam lado a lado, campereando pelos mesmos pastos e sorvendo mates da água dos mesmos rios e sangas.

– Adão, quanto é que vale a vida de um homem valente e de bem? Perguntou Maneco, ainda em pé diante de Adão.
– Valente, sim. De bem, não sei.  Respondeu Adão, com sua faca de cabo de prata em mãos.
Depois de um tempo, Adão prosseguiu:
– A vida de um homem vale muito, mas a tua não vale nada, tanto é que ela está aqui no fio da minha faca, não há dinheiro que pague.
– Então degola! Vai, degola, negro filho da puta!

Maneco, irritado com a ofensa, teria dado um soco em Latorre, que logo em seguida deu um tapa com o dorso da mão na cara de Maneco, derrubando o chapéu do coronel no chão.

– Para onde tu vais, não vais precisar de chapéu. Sentenciou Latorre.

Os relatos desse dia dão conta que não houve mais nenhuma fala, nenhum pedido de clemência por parte de Maneco. Ajoelhado, posto diante do degolador, levantou o queixo, como que tentando facilitar o trabalho de Latorre.

“Botavam nele a gravata colorada,
Que era o nome da degola
Nesses tempos de leão”

Os Pica-paus foram sendo retirados do curral de pedra, uns eram laçados e puxados para fora. Os gritos, as orações, as súplicas, nada fazia diferença. Dizem que entre os degolados, Adão encontrou os homens que visitaram sua Chácara em Olhos D’Àgua, eram os mercenários correntinos que estupraram sua filha e esposa.

A faca de Adão Latorre, de acordo com Joca Tavares, degolou 26 homens naquele dia. A imprensa castilhista divulgou que foram mais de trezentos os homens degolados. Os corpos, tão logo parassem de se mover, eram empilhados num canto, depois foram jogados nas águas da Lagoa da Música. Nunca se soube de fato quantos foram mortos naquele dia de novembro na Estação Rio Negro.

Adão Latorre foi alçado pelos jornais governistas ao posto de maior vilão da Revolução Federalista, embora outros degoladores tenham feito pior e matado muito mais pessoas, mas eles não eram negros como Adão. Em 05 de abril de 1894, no Boi Preto, perto de Palmeira das Missões, o Coronel Pica-pau, Firmino de Paula, fez 370 maragatos como prisioneiros. Enquanto rumava com todos amarrados em direção a cidade de Cruz Alta, foi degolando aos poucos e enfileirando os corpos ao longo da estrada. Chegou em Cruz Alta sem nenhum prisioneiro. Antes, Firmino já havia feito pior, 800 maragatos prisioneiros, crianças, velhos e mulheres. Quase todos degolados.

Depois de 1895, já com sessenta anos, Adão voltou para a sua chácara. Depois de perder um filho e esposa, viveu como um homem do campo normal, casou de novo, criou os filhos, viu os netos, carneou ovelhas, tomou chimarrão. Evitava falar dos tempos de guerra e, sobretudo, evitava os olhares revanchistas no bolicho da vila. Adão sabia que muitos queriam lhe matar, mas poucos tinham coragem de tentar.

Em 1923, Adão Latorre estava com 88 anos, montava seus tordilhos com facilidade e conseguia ainda empunhar uma espada, por isso ele não pensou duas vezes em participar da Revolução de 1923. Não passava pela sua cabeça ficar em casa, enquanto seus companheiros maragatos estavam numa batalha. O Coronel Adão Latorre foi cavalgando em seu tordilho em direção a Dom Pedrito. Lá estava o exército dos antigos Pica-paus, agora conhecidos como Chimangos e duas de suas lideranças republicanas: Oswaldo Aranha e o coronel José Antônio Flores da Cunha, intendente de Uruguaiana.

O frio que fazia em 15 de maio de 1923 nas margens do Rio Santa Maria Chico era tamanho que recebeu até menção no diário de batalha de Flores da Cunha, escreveu ele que do lado Chimango as patas dos cavalos quebravam o gelo da geada cada vez que se movimentavam. Do outro lado, os jovens maragatos se embebedavam para combater o medo e mascarar o frio. Muitos não entendiam o que Adão estava fazendo ali, na véspera de uma batalha. Aquele velhote de corpo franzino, face gorda e barba branca deveria estar na beira de um fogão a lenha. Adão Latorre estava quieto, debaixo do seu poncho, pronto para o dia seguinte.

Mal a geada havia desaparecido e as metralhadoras governistas fuzilaram os jovens maragatos. Muitos fugiam enquanto a saraivada de tiros ia varrendo tudo. Adão e seu tordilho permaneceram em posição, na tentativa de motivar os que ainda não sabiam o que fazer. A modernidade tinha chegado e a guerra já não era mais a mesma de antes. Os maragatos ainda acreditavam nas guerras feitas no lombo do cavalo, com facas, rifles e espadas. Já Borges de Medeiros tinha armado a Brigada Militar com metralhadoras e os novos Mausers.

O tordilho de Adão jamais voltou para chácara em Olhos D’Àgua. Foi morto a tiros. Latorre, caído no chão, entre os sons de tiros e os gritos dos feridos, ainda tentou seguir pelejando, ao pegar outro cavalo, mas foi novamente atingido por tiros de rifle. Morreu aos 88 anos, com uma espada na mão e com um lenço vermelho no pescoço, lutando pelos maragatos.

Em Olhos D’Àgua, no alto de uma coxilha, perdido no meio do pasto alto, ainda resiste o seu túmulo, erguido em 1926. Nilson Mariano, autor de “Um tal Adão Latorre: A degola na Revolução de 1893”, visitou o local, encontrou uma lápide quebrada, talvez por uma marretada. Adão até na morte seguiu nas terras dos Tavares.

A Estância do Limoeiro ainda existe e segue pertencendo a família Silva Tavares. Firme com suas construções antigas, seus móveis e sua arquitetura espanhola. Dentro da Casa Grande, até hoje está a cadeira onde Zeca Tavares viu um porco morto com seu chapéu. A estância é patrimônio cultural do Estado, tem museus e uma pousada onde recebe visitantes.

E eu, no calor de novembro em Uruguaiana, olho para o céu azul do pampa que tantos olharam pela última vez, vejo suas nuvens lentas, as marrecas voando no vento quente em direção as lavouras de arroz. Estendo o meu braço e agarro a minha faca de bom corte, passo a lâmina lentamente na carne e retiro um pedaço da costela de ovelha que repousava sobre a brasa de espinilho. Sem antes, é claro, aumentar o volume do meu toca-discos para ouvir novamente a voz de Mário Barbará cantar ela: “Colorada”.

Indicação de livros: Para os que gostariam de saber mais sobre a Revolução de 1893, além das diversas teses e dissertações sobre o tema, indico as obras de Nilson Mariano, “Um tal Adão Latorre. A degola na Revolução de 1893” e o recente livro de Ricardo Ritzel, “As cinco tumbas de Gumercindo Saraiva e outras histórias de guerras gaúchas”.

 

Roger Baigorra Machado é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.
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O CURTA “CORPO MUDO” É O VENCEDOR DO PRÊMIO REDE SINA NO SMVC https://redesina.com.br/o-curta-corpo-mudo-e-o-vencedor-do-premio-rede-sina-no-smvc/ https://redesina.com.br/o-curta-corpo-mudo-e-o-vencedor-do-premio-rede-sina-no-smvc/#respond Sun, 19 Sep 2021 03:16:14 +0000 https://redesina.com.br/?p=16053 Neste sábado, o Festival de Cinema e Vídeo de Santa Maria – SMVC, divulgou os vencedores do Festival. O curta “Corpo Mudo” de Marcela Schild foi o vencedor do Prêmio Rede Sina e também foi escolhido pelo júri da Mostra Nacional como Melhor Documentário. “O curta traz dor e muita coragem por parte de todas …

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Marcela Schild diretora de “Corpo Mudo”

Neste sábado, o Festival de Cinema e Vídeo de Santa Maria – SMVC, divulgou os vencedores do Festival. O curta “Corpo Mudo” de Marcela Schild foi o vencedor do Prêmio Rede Sina e também foi escolhido pelo júri da Mostra Nacional como Melhor Documentário.

“O curta traz dor e muita coragem por parte de todas que estão contando sua histórias de vida sem esconderem seus rostos. Revela com muita sensibilidade os traumas de abusos sofridos durante a infância. Parabéns a Marcela, toda equipe e mulheres que prestaram depoimento por esse filme tão necessário”, afirma Melina Guterres, fundadora da Rede Sina.

A Rede Sina recomenda que sejam assistidos também os curtas com temática social que estiveram participando da seleção no SMVC: Afeminados, A voz de Adélia, Bicha Bomba, Copacabana Madureira, Enquanto está quente, Fica em casa Rafael, João e Maria na cidade, Seremos Ouvidas, “Um, Oito, Sete”, Tô Viva, Tambor ou Bola, Você tem os olhos tristes. Assista no canal no YouTube do SMVC.

Corpo Mudo (Documentário, 13 minutos, 2020, Santa Cruz do Sul – RS)

Direção: Marcela Schild
Sinopse: Diretora, que sonhava em ser astronauta na infância, visita o universo de outras mulheres para tentar entender o que criou um buraco negro em cada uma.

Marcela Schild é Profissional Multimídia. Realizadora Audiovisual. Bacharel em Comunicação Social – habilitação Jornalismo. Possui experiência em produções audiovisuais, redação, análise de mídias sociais, produção de conteúdo, assessoria de imprensa e campanhas publicitárias. Mais sobre ela em: https://www.clippings.me/users/marcelaschild

 

CURTAS VENCEDORES DO PRÊMIO REDE SINA:

2021

“CORPO MUDO” DE MARCELA SCHILD (SMVC)

“NEGUINHO” DE MARÇAL VIANNA (ROTA FESTIVAL)

“ERA UMA VEZ EM SÃO PAULO” DE IZAH NEIVA (ROTA FESTIVAL)

2020

“Gilson” de Vitória Di Bonesso (ROTA FESTIVAL)

2019

“Procuram-se Mulheres” de Rozzi Brasil (SMVC)

“Vinde como Estais” de Rafael Ribeiro e Galba Gogóia (ROTA FESTIVAL)

2018

“O Vestido de Miriam” de Lucas Rossi (SMVC)

“Vidas Cinzas” de Leonardo Martinelli (ROTA FESTIVAL)

 

 

 

VEJA TAMBÉM:

Conheça os vencedores do SMVC e homenageados:

PREMIAÇÃO DO SMVC E BATE-PAPO COM HOMENAGEADOS

Conheça as sinopses de todos curtas selecionados:

E COMEÇA O 14º SANTA MARIA VÍDEO E CINEMA – SMVC

 

 

 

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