Um conto de Maria Fernanda Elias Maglio
Eu poderia contar do homem mais feio do mundo, com suas escápulas de anjo caído e o nariz repleto de furúnculos inflamados. Poderia dizer da mulher de setenta e oito anos, sem filhos e sem memória, morrendo devagar em uma maca de um hospital público.
Poderia falar do camelo indesejado que não tinha autorização para entrar e no fim morre indesejado e triste, na borda de fora do deserto. Poderia falar dos bêbados, dos limpadores de caixa de gordura, da prostituta manca que não consegue andar rebolando. Do homem internado em um manicômio judicial por quase trinta anos, que perdeu todos os dentes e chupa o bife no almoço, nas raríssimas vezes em que tem bife no almoço. Da mulher rica, de aliança de brilhantes, que por ser rica, de aliança de brilhantes, se diverte mandando a faxineira dizer iogurte e grava na câmera do celular a faxineira de sessenta e dois anos dizendo constrangida, iorgurte, depois compartilha com a amiga rica, de aliança de brilhantes, que ri e censura com afetação, você não presta, Marisa, para em seguida pedir: grava ela falando mortadela. Poderia contar da velha que vive sozinha com trinta e seis gatos e um dia morre sem motivo, porque gente velha não precisa de motivo para morrer, uma vizinha percebe o cheiro, um bombeiro chamado Ernesto arromba a porta e encontra o cadáver em putrefação, os gatos famintos roendo o osso da tíbia direita, que já aparece branca no meio da carne ulcerada. Do índio viciado em crack, que fuma vinte e cinco pedras por dia e é pego arrombando a vitrine de uma loja de relógios. Poderia contar da dona da loja de relógios que se chamaria Carla ou Ana ou Maria do Socorro e não teria a perna direita porque perdeu em um acidente de moto aos vinte e dois anos. Do morador de rua excluído por seus pares, porque tem o cacoete de furtar pertences, o nome poderia ser Anderson, poderia ter apelido de Um Cinco Cinco, poderia ser agredido violentamente por três GCMs, até ter o baço rompido pelos chutes desferidos por pés uniformizados de coturnos. Poderia contar da moça que vive cercada de sapos, que trata como se fossem galinhas, distribuindo insetos como se oferece milho seco, dizendo pi, pi, pi, pi, enquanto tira dezenas de besouros vivos de uma sacola plástica. Do palhaço esquizofrênico, do motorista de ônibus portador de hiperidrose, que troca a camisa quatro vezes por dia, poderia falar do adolescente viciado em Coca-Cola que não tem nenhum amigo e ri fazendo barulho pelo nariz. Da cor que não tem lugar no arco-íris, nem nas bandeiras dos países todos e dos países que nem foram inventados, que não consta nas caixas de lápis de cor, nem nos sinaleiros, nas paletas das aquarelas, nem nas diversas tonalidades do mar em dia de tempestade. Eu poderia contar do escafandrista errante, vagando a cidade submersa, lendo cartas que não foram destinadas a ele, abrindo armários de mogno repletos de crustáceos e cavalos-marinhos bebês.
Mas esta é história a de um menino de oito anos, chamado Mateus. A mãe chama-se Lourdes e é merendeira de uma escola pública de uma cidade de trinta mil habitantes.
O sinal troveja, as crianças interrompem a brincadeira de roda, amarelinha, de barra-manteiga, polícia-ladrão e se organizam em fileiras. Mateus é o penúltimo da fila da quarta série D, atrás dele está a Ana Fonseca, neta do borracheiro, que chegou atrasada, porque o avô está no hospital. As crianças entoam o hino nacional e Mateus mexe a boca enquanto cantam fulguras, ó Brasil, florão da América, porque nunca na vida vai conseguir decorar fulguras, ó Brasil, florão da América. A bandeira é hasteada e ninguém bate palmas, porque a professora já explicou que não pode. Seguem para a sala de aula ainda em fila, a mochila do garoto da frente tenta acertar o rosto de Mateus, ele sabe que é de propósito, mas finge que não. A cada vez que o menino sacode as costas para trás, Mateus desvia o corpo feito um boxeador escapando do soco, mas o movimento que faz não lembra nem de longe um boxeador se movendo para longe do alcance do golpe, mas sim uma minhoca se contorcendo no chão duro, tentando cavoucar o cimento como se fosse terra.
A professora é muito branca e o giz é muito branco, as paredes não, as paredes têm nódoas de mofo e de cabeças encardidas. Em cima da carteira de Mateus, um caderno com capa de motocicleta e um estojo de zíper arrebentado. Os dois lápis roídos nas pontas e o pedaço de borracha estão presos dentro do estojo por um elástico de dinheiro. Tinha também um estilete improvisado: uma lâmina de apontador presa na ponta derretida de uma caneta sem carga. Agora não tem mais porque a professora confiscou, onde já se viu trazer faca pra escola, moleque? A professora trata os outros alunos pelo nome e, quando não se lembra de como se chamam, diz, menino, menina. Moleque, só mesmo o Mateus.
A professora escreve na lousa e pede que copiem: EEPG Coronel Evandro Duarte Dias. Mateus desenrola o elástico com cuidado para não arrebentar, pega um lápis, abre o caderno, cuja capa é um homem de capacete vermelho em cima de uma moto empinada, e começa a escrever. A letra é irregular e não é possível distinguir o E do L minúsculos. Morde a extremidade do lápis, chupa o suco da madeira triturada. A professora dá as costas para a lousa, vê Mateus sugando o lápis e grita: porco, enquanto joga o giz branco em direção ao rosto do menino. O giz cai no chão antes de acertar o alvo e Mateus poderia se sentir feliz, em uma só manhã, livrou-se da mochila e do giz, mas não, porque a sala inteira gargalha, inclusive a menina chamada Ana Fonseca, que deve ter se esquecido do avô morrendo no hospital. Mateus vê o giz quebrado no chão, bem em frente a sua carteira e tem vontade de pegá-lo. A mãe diz para jamais levar o que não seja dele, ainda que uma agulha, uma lasca de unha roída. Mas ele nunca teve um giz só seu. Das únicas vezes em que segurou um, estava de frente para a lousa, a professora severa e branca esperando que ele escrevesse o resultado da conta, 45 + 62 e ele não sabe, os quatro estados da água e ele não sabe, a capital do Estado de Pernambuco e ele não sabe, a data em que se comemora o dia do índio e ele não sabe. Fulguras, ó Brasil, florão da América, ele nunca vai saber. A professora está escrevendo uma fábula na lousa e pede que copiem, uma história de uma raposa que rouba o queijo de um corvo. Mateus estica a perna direita na tentativa de alcançar o giz com o pé. Se ele tivesse um só dele, ainda que quebrado ao meio, nunca que escreveria números ou letras. Desenharia uma nuvem de chuva e um sorvete de três camadas com uma cereja em cima e uma árvore de natal cheia de bolas e de repente desenhava um dinossauro de pescoço comprido comendo um queijo, uma professora e vinte e oito crianças.
Mateus calça trinta e um, a sandália que usa é dois números menores, por isso os dedos, com exceção dos dedinhos, estão fora dos limites dos sapatos e é com o dedão direito que ele alcança o giz. Escorregou o corpo na carteira, está quase deitado, se a professora dá as costas para a lousa neste instante, ele vai para a diretoria, deve tomar até suspensão, dois dias sem poder ir à escola e não entende como isso de ficar em casa pode ser castigo. A casa em que mora com a mãe é um quarto. Fica nos fundos do quintal da tia-avó, a quem ele chama de vó, ainda que saiba que não é. A avó de verdade morreu quando a mãe tinha nove anos. Exatamente a idade que ele tem agora, e não tem nada no mundo de que tenha mais medo, do que da mãe morrer.
A professora já terminou de escrever a fábula, agora desenha um pedaço de queijo furado e pede que copiem. Mateus segura o giz na garra dos dedos dos pés e ajeita o corpo. Bem na hora. Por muito pouco a professora, que já terminou o queijo, não o vê quase deitado na carteira e ainda que seja bom pegar suspensão, ficar na casa que não é casa, é quarto, não quer desagradar a mãe.
A professora pede que se organizem em duplas. O giz ainda nos dedos do pé direito que transpira muito, Mateus não sabe o que fazer. Nunca consegue ficar no próprio lugar quando a professora manda formar duplas, porque ninguém diz, ei, Mateus, posso sentar aí com você? Permanece na cadeira, os dedos do pé dão choques de câimbras. E se o giz se desmanchar com o suor? Nunca esteve tão perto de ter um só seu, estava quase cruzando a perna para que a mão alcançasse o giz, quando a professora deu as costas para a fábula, o queijo de buracos e disse, façam duplas.
Barulho de carteiras sendo arrastadas e vozes de meninos e meninas. O moleque continua em silêncio. Cruza o pé direito sobre a coxa esquerda e pega o giz, esconde na mão fechada. Está farelento e quente, ainda assim é um giz. Guarda no bolso dos shorts e pensa ufa que ninguém viu. A sala tem número ímpar, todo mundo já achou dupla, a mesa de Mateus é a única que não está emendada em outra. A professora percebe e diz, vai, moleque, arruma alguém pra sentar. Mateus se levanta, o giz pesando no bolso, do lado esquerdo, a carteira da Flávia colada na carteira do Fabrício, a mão da Flávia colada na mão de Fabrício e a professora não vê. Do lado direito, a Ana Fonseca e a Regina, Mateus cria coragem e pergunta, posso fazer dupla com vocês? Regina reponde que dupla é de dois e a Ana Fonseca ri, e de novo se esqueceu do hospital, o avô quase morrendo toda hora. Olha para trás e o Eduardo está com o Henrique, Mateus não comete o mesmo erro de falar da dupla, pergunta, posso sentar com vocês e Eduardo levanta os ombros de uma só vez, Mateus sabe que não é um sim, mas um tanto faz, o que já é suficiente para que tenha permissão de arrastar sua própria carteira.
Eduardo e Henrique discutem a fábula, a professora quer que cada dupla defina a moral da história. Eduardo acha que a moral é que não se deve roubar nada do outro e Henrique diz, não, é que não podemos deixar o outro roubar o que é nosso. Eles não perguntam o que o Mateus acha e se perguntassem ele não saberia, porque o giz no bolso pesa demais. Ainda assim, está feliz, nunca teve um só dele e se a mãe perguntar, se revistar o bolso dos shorts, vai dizer que achou no lixo.
O sino toca avisando o recreio, as crianças correm para fora da classe de professora severa e paredes encardidas, dizendo, êeeeeee. Mateus não corre e nem diz êeeeeee, deixa a sala em silêncio, atravessa o corredor que dá para o pátio. Algumas crianças brincam de roda, amarelinha, barra-manteiga, polícia-ladrão, outras comem sanduíches desembrulhados de papel alumínio e bebem limonada açucarada em garrafinhas térmicas. A fila da merenda vai até a metade do pátio, porque hoje é dia de macarrão com salsicha e em dia de macarrão com salsicha entra na fila mesmo quem pode trazer sanduíche encapado em alumínio.
Mateus é o último da fila e na outra ponta, distribuindo a comida, está a mãe, que se chama Lourdes e é merendeira da escola pública da cidade de trinta mil habitantes. As crianças vão saindo com os pratos de plástico lotados de macarrão alaranjado, cinco ou seis rodelas de salsicha em cima. Quando Mateus se torna o primeiro, é para ele que a mãe estende o prato com um sorriso, um buraco no lugar do primeiro molar esquerdo. Mateus quer devolver o sorriso, mas o giz pesado no bolso. Come sentado em um dos bancos de cimento, passa o indicador do fundo do prato para pegar o óleo, chupa o dedo com a gula de quem suga a madeira do lápis.
A professora fala sobre os números, diz que alguns são chamados primos e Mateus não tem primo nenhum, só a mãe, a avó que não é avó, a casa que não é casa. O giz. O sinal toca de novo e agora, antes de correrem, gritando êeeeeee, as crianças enchem as mochilas com os materiais. Mateus atravessa o corredor até o pátio, todos já foram embora, as serventes varrem o chão de papel de bala, bolinhas de alumínio, farelos de pão, chicletes escuros colados no cimento. A mãe está lavando as imensas panelas e Mateus espera sentando em um banco, pega uma bolinha de papel de alumínio antes que varram e brinca, passando de uma mão para a outra.
Já chegaram na casa-quarto e a mãe fala que vai ao mercado comprar cenoura e batata para a sopa, diz para o filho fazer a lição direitinho, volto já, já. Mateus arruma o caderno em cima da mesa, lápis, a fatia de borracha, a professora mandou grifar os adjetivos da fábula, sublinha: esperta, corvo, verde, bico e queijo.
O giz lateja como um coração. Enfia a mão no bolso, retira e olha, um toco branco e úmido. Leva até o nariz e aspira: cal e suor. Estica a língua e é um gosto que não sabe, serragem, vinagre, tijolo, piruá de pipoca. Coloca na boca e não mastiga, os dentes cerrados, deixa derreter devagar. Junta a saliva a engole de uma vez, como se fosse remédio. Mas não toma água depois, porque não quer nunca limpar o gosto abrasivo e salgado. Agora dentro dele para sempre. Um giz.
Maria Fernanda Elias Maglio
Nasceu em Cajuru-SP, em agosto de 1980. É escritora e defensora pública, trabalha fazendo a defesa de pessoas pobres que estão cumprindo pena. Seu primeiro livro, “Enfim, imperatriz” (Patuá, 2017), venceu o Prêmio Jabuti 2018 na categoria contos. Publicou também o livro de poesias “179. Resistência” (Patuá, 2019), vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional de 2020.
Parabéns!!!