Uma das principais lições deixadas pelo século passado é a de que a Razão não necessariamente cria um bem e nem tudo o que vem dela é benéfico à humanidade. O século XX mostrou haver um tipo de racionalidade não reflexiva, não crítica que quando levada ao extremo, se volta contra a própria humanidade.
A questão incomoda porque recorrente. Hoje, quando se percebe a série de narrativas que circulam impunemente no espaço público, constituindo discursos de ódio e outras formas de violência e, ao mesmo tempo, minimizadas por uma espécie de consentimento tácito, vive-se uma espécie de revival amargo. Pensar sobre isto coloca novamente em pauta o trabalho de Hanna Arendt, pois ele ajuda a entender a emergência do mal, principalmente no contexto político e do espaço público.
Arendt recusava o título de filósofa e preferia ser chamada de cientista política. Ela defende a ideia de que a política se faz entre as pessoas, espaço no qual a comunicação é possível, ainda que se dê de forma conflituosa, e desde que tenha em vista o bem de todos. Envolve a palavra partilhada, as opiniões, as manifestações do indivíduo situado numa coletividade. Para ela, a política é a representação da dignidade do ser humano. Portanto, não se dá em um indivíduo único e com a prerrogativa da palavra como defesa da violência.
Hanna Arendt desenvolveu o conceito de “banalidade do mal” ao grau de racionalização extrema e observação cega das leis. Para ela, trata-se de um processo de burocratização assentado no uso de técnicas, recursos jurídicos e relações de poder que mascaram a incivilidade.
O conceito foi aprofundado no seu livro Eichmann em Jerusalém: a banalidade do mal , o que lhe rendeu críticas por parte da comunidade judaica por ver equivocadamente no texto uma defesa do nazista. De fato, é necessário entender que a autora foi além da mera cobertura jornalística e da comoção que o momento gerou, desenvolvendo uma profunda reflexão sobre o que percebeu naquele tribunal.
Em 1961 Arendt fora enviada a Jerusalém pela revista The New Yorker para a cobertura do julgamento de Adolf Eichmann, tenente coronel da SS e o principal organizador do sistema de transporte de milhões de judeus da Europa para os campos de extermínio. Ele foi apontado como peça central na Endlösung – solução final do nazismo que consistia em eliminar durante o holocausto não apenas judeus, mas ciganos, homossexuais, militantes de esquerda, políticos de oposição, deficientes, tudo em busca da supremacia ariana.
Adolf Eichmann foi localizado em Buenos Aires, na Argentina, no início dos anos 60, pelo Mossad –Serviço Secreto de Israel e levado a julgamento em Jerusalém, sendo condenado à morte como um dos responsáveis pelo genocídio.
O que chocou a Arendt foi o fato de Eichmann – representado pela mídia com alguém cruel, monstruoso e insensível ao sofrimento de milhões de pessoas – , ter se revelado naquele tribunal como uma pessoa normal, um burocrata passivo, preocupado em cumprir suas rotinas e obrigações funcionais, e com uma profunda dificuldade de pensar de modo autônomo.
A construção da defesa de Eichmann se centrou na noção/fato da “obediência devida”. Sendo militar, afirmava que havia seguido ordens. E relatava o acontecido utilizando-se de um vocabulário administrativo, de planejamento de rotinas, de administração e evacuação ao tratar dos campos de concentração, das execuções e do extermínio. Arendt percebeu que quando não havia um protocolo norteador, Eichmann se desorientava. Daí concluir ser ele incapaz de refletir, de estabelecer um diálogo crítico sobre os próprios atos, ainda que tivesse a noção de todos eles. Para ela, Eichmann era um mero cumpridor de ordens, um executor que não pensava sobre suas ações e cujos atos de maldade resultaram dessa irreflexão. Ali estava um funcionário que ambicionava ascender na carreira através do bom cumprimento das suas obrigações, portanto, do seu trabalho, e que seguia à risca o regime nazista e seus chefes. Não havia espaço para a moral ou a honra no pensamento ordinário de Eichmann.
É em tal contexto que ela desenvolveu o conceito da “banalidade do mal”. Ou seja, o mal não é extraordinário, não é um monstro e não está inteiramente fora das pessoas. Arendt diz que o mal é comum, banal, é presente, está em muitos lugares. Pessoas normais, devidamente manipuladas, são capazes da maldade; são capazes de cometer as piores atrocidades. Pessoas normais psicologicamente condicionadas fazem isto. Pode acontecer.
Assim, é possível pensar que o Nazismo não foi uma exceção, não foi uma monstruosidade histórica como se divulga. Aconteceu e com o consentimento de pessoas normais. Os alemães aceitaram a solução proposta pelo regime, ainda que ela fosse a eliminação do outro. E para isto o nazismo fez o uso habilidoso do conceito do Outro como aquele que te prejudica; aquele que compete contigo, que quer tirar o teu lugar. Dentro desta lógica, o Holocausto consistiu-se em uma profunda técnica racional de extermínio, de uso racional dos dados, sustentado por uma burocratização decorrente de uma racionalidade seca, vazia.
Aconteceu e se repetiu. Em Ruanda, no ano de 1994, de abril a junho, 800 mil pessoas foram mortas num dos mais sangrentos genocídios da história.
Dias atrás reli o livro “Sobrevivi para contar” de Immaculée Ilibagiza uma jovem africana da etnia tutsi que teve quase toda a família trucidada no massacre e sobreviveu após passar 91 dias escondida num banheiro de 1mx1,5 , com outras seis mulheres, na casa de pastor hutu que as acolheu.
A guerra sangrenta em Ruanda foi consequência do desmonte da estrutura social local pelos colonizadores; primeiro os alemães, depois os belgas que instituíram um sistema discriminatório de classes com base na distinção entre as etnias. Ao fazê-lo, criaram um sistema de privilégios e romperam assim com a antiga tradição da monarquia de reis tutsis que por séculos cuidaram da paz no país.
O ressentimento histórico devidamente inflamado pelo poder do estado desencadeou a violência que levou os hutus a eliminarem os tutsis e todos aqueles que tentaram ajudá-los. Vizinhos, amigos de uma vida inteira, perseguiram, saquearam e mataram os seus próximos, numa espécie de catarse geral e ódio coletivo.
Entre os hoje condenados pelo genocídio está Valerie Bemerike, apresentadora da Rádio Télévision Libre des Mille Collines (RTLM), um dos principais meios de comunicação responsáveis por promover o genocídio em Ruanda. Condenada à prisão perpétua sob a acusação de planejar genocídio, incitar a violência e por cumplicidade em inúmeros assassinatos, Bemerike usa os mesmos argumentos de Eichmann. Estava cumprindo um dever, fazendo o seu trabalho, defendendo os “seus”.
Trata-se de uma racionalidade que rompe com a humanidade. É essa mesma racionalidade presente no argumento do governo americano para justificar a saída do Afeganistão, deixando o país à mercê do fundamentalismo do Talibã.
Constatar que qualquer pessoa, mesmo aquela que sempre foi gentil com você durante muito tempo, é capaz do mal, é algo dilacerador. Daí a atualidade do pensamento de Hanna Arendt ao dizer da ruptura com o outro, da desumanização do objeto de violência. Se torturar a um semelhante choca os valores aprendidos ou herdados, se faz necessário que esse semelhante deixe de ser humano e se torne uma categoria: judeus, comunistas, esquerdopatas, petralhas no Brasil, baratas em Ruanda, o negro da KuKluxKlan, o estrangeiro que vem roubar o trabalho, o “elemento” apontado pela polícia; a “puta” quando quer menosprezar as mulheres, o maconheiro para o sujeito fora dos padrões, etc. Há uma interminável classificação do desprezo.
Objetificar o outro facilita o controle de alguns para todos. E hoje, num cenário de modernidade em que a existência se conjuga na primeira pessoa, parece estar acontecendo de novo, bem debaixo dos nossos narizes.