Profa. Dra. Nikelen Acosta Witter
“As senhoras(…) rivalizavam em distinção e afabilidade com as das mais cultas cidades brasileiras. Não há exagero. Enquanto os homens se dividem por opiniões políticas e religiosas, pois a população de origem germânica conta com crescido número de protestantes, o belo sexo, vive em contínua permuta de obséquios.
Nos casos de enfermidade grave, ou morte de pessoa da família, não falta quem voluntariamente vá auxiliar aos cuidados do doente. O velório do cadáver, a confecção gratuita dos vestidos de luto.”
(Marchiori & Noal Filho, 1992, p.62.)
A descrição elogiosa às mulheres da vila de Santa Maria foi feita pelo advogado e político Hemetério Veloso da Silveira que passou pela região no ano de 1876.Mesmo que seu encanto pretendesse lisonjas às esposas de seus correligionários e, nesse caso, tivesse um pouco de exagero, sua descrição permite visualizar, em parte, a forma como se organizava o cotidiano das mulheres santa-marienses em meados do século XIX. Hemetério Veloso corrobora o que outros documentos e estudos apontam como realidade acerca das relações estabelecidas entre as mulheres. Isto é, a permuta de favores, obséquios e uma extensa rede de solidariedades, as quais serviam como estratégia para amenizar a existência em um mundo onde o poder e as regras eram, eminentemente, masculinos.
O cotidiano das mulheres na Santa Maria da segunda metade do século XIX era marcado pela importância que, nas agruras do dia a dia, se revestiam os laços de parentesco, comadrio e vizinhança. Estes permitiam que se estabelecesse uma ampla rede de relações, na qual, a troca de favores era a moeda que permitia a essas mulheres locomoverem-se, ampliarem suas possibilidades, negociarem com as regras hostis e poderiam, guardadas as devidas proporções, até mesmo aproximar diferentes categorias sociais. Certamente, que tais relações não eram um idílio harmônico entre todas as mulheres, em todas as situações. As reciprocidades serviam também para dar o tom das disputas, dos antagonismos e das diferenças que seus desejos — fosse a respeito de seus homens, filhos ou situação-escancaravam nos momentos de conflitos, tanto com os homens, quanto com outras mulheres.
O que para Hemetério Veloso parecia ser um índice de educação e civilidade era, provavelmente, muito mais fundamental que isso. Para aquelas mulheres, estas trocas, estes canais abertos de circulação, cuidado e amparo, eram seu estofo contra aquele mundo, sua forma de reagir, agir e escolher.
Ô comadre!: auxílio, favores e solidariedade feminina
Embora se possa inferir que esta solidariedade feminina estivesse presente em boa parte do tempo da existência destes sujeitos, a documentação demonstra que esta pode ser percebida mais facilmente em momentos bem específicos e, mormente, de perigo dentro da esfera do que era considerado “o espaço” feminino. Este “espaço” era especialmente aquele em que ficava o cuidado das doenças, os partos, o trato das crianças, no luto e no desamparo. Mães, avós, comadres, vizinhas, primas, madrinhas e afilhadas, curandeiras e parteiras pertenciam a este mundo feminino relacional, que se movia dentro do espaço da casa e dominava os saberes sobre as mazelas do corpo e da vida das outras mulheres.
Parentas e vizinhas tinham por costume revezar-se no auxílio daquela que precisasse e, dentre todas, a figura mais presente era, geralmente, a da comadre. Sua posição privilegiada de partilha a fazia participante dos momentos mais importantes da história da família: dos nascimentos, dos aniversários, das doenças e da morte. Faziam seu papel ajudando nas costuras, no preparo de comidas e remédios, nos cuidados dispensados aos doentes. Muitas vezes era também a principal conselheira, aquela com se dividia os problemas da família nuclear e extensa. Não raro, o comadrio estreitava laços de sangue ou ampliava o sentido de família para a vizinhança, fazendo da proximidade um compromisso regido por leis sagradas.
Isso tornava comum a escolha da comadre entre as pessoas mais próximas ou que poderiam ser acionadas mais facilmente. Obviamente, que isso não exclui as escolhas que pretendiam aprofundar laços políticos ou estabelecer possibilidades de auxílio social. Talvez por isso se consiga mapear, no interior do Rio Grande do Sul, (e não apenas para evitar o mal de sete dias) a figura da madrinha de bacia, ou madrinha de casa (FONSECA; BRITES,1990). Um batismo informal que pretendia ampliar a rede de pessoas a se responsabilizar pelo destino da criança nascente. As madrinhas ajudavam em todas as fases do nascimento e do crescimento do bebe. Desde as receitas para “ter leite” até o amplo trabalho de se confeccionar roupinhas e, obviamente, quase sempre elas já estavam presentes na hora do parto.
João Daudt Filho, que nasceu em 1858, relata em suas memórias a presença de sua tia e prima (que viria a ser a sua madrinha) junto ao leito de sua mãe. As duas não apenas auxiliaram a parteira como também lhe deram o primeiro banho, o qual foi enriquecido com moedas de ouro no fundo da bacia para garantir a fortuna do pequeno João. Em seu livro de mentorias, Daudt Filho apresenta sua madrinha como uma presença constante em sua vida. Dona Aninhazinha Becker Pinto ensinou seu afilhado a tocar piano, a controlar a gagueira (inclusive com a conhecida simpatia da colher de pau, sacudida pelas costas da criança). Com o marido, Dr. Pantaleão José Pinto, ela se ofereceu para custear os estudos em medicina para o afilhado. Como a oferta foi recusada pelos compadres, Dona Aninhazinha esmerou-se em convencê-los a enviar o filho para faculdade de farmácia, cujos estudos, feitos em dois anos, podiam ser custeados pelo pai vendeiro de João e sua esposa (DAUDT FILHO, 1949).
Por outro lado, o grande número de filhos, fato comum na época, permitia que a família se ampliasse. Assim, se podia incluir neste quadro de relações além das parentas, vizinhas e amigas, mulheres que exercessem influência ou pertencessem às famílias respeitadas na comunidade. A mãe de Daudt Filho, Dona Catarina, por exemplo, era comadre de Sinhá Valença, filha do capitão Valença, estancieiro e político mais influente de Santa Maria naquela época (DAUDT FILHO, 1949).
As comadres também eram presença certa nos momentos de doença e dor. Consolavam, traziam chás, indicavam mezinhas e curandeiras já testadas e aprovadas em doenças anteriores. Assumiam o serviço da casa, se isso fosse necessário, e, na hora da morte, cuidavam das crianças, faziam os quitutes do velório, emprestavam vestidos negros e traziam velas para o defunto.
Iam (as comadres ou vizinhas) para a cozinha, sopravam o fogo, arranjavam no quintal da casa ou na vizinhança. folhas de laranjeira, losna, louro ou salsa, qualquer coisa das que sabiam ou ensinavam na hora e faziam xícaras de chá fumegantes que os doentes dóceis ingeriam entre caretas e os outros cuspiam ou deixavam simplesmente à cabeceira, tapado com algum pires. (.) Nas casas dos pobres era menor a complicação, mas não o número de visitas, parentes ou vizinhos, às vezes mal conhecidos. mas sempre prestativos. Porque assim proceder era obrigação social comezinha para os graúdos, dever de solidariedade entre gente miúda, acostumada a esse amparo mútuo que era a sua valia. (CABRAL, 1958, p.186).
Esses diferentes momentos pertenciam ao que, tradicionalmente, eram as esferas de maior atuação das mulheres. Os nascimentos, as doenças, a morte, a preparação das festas se desenrolavam nos espacos onde o domínio feminino era mais perceptível. Nos quartos, onde se nascia, adoecia e morria. Na cozinha, onde se preparavam refeições, remédios, chás, e se faziam todos os trabalhos domésticos junto ao fogo. No pátio, onde “além de colherem ervas para curas (…) jogavam as águas com que limpavam as roupas sujas dos mênstruos e as águas com que banhavam os recém-nascidos e os mortos(…)”. Para a historiadora Mary Del Priore, as mulheres integravam num universo próprio seus principais momentos de existência e seus espaços de domínio mais fundamentais. Mesmo que esteja se referindo as mulheres da colônia, as reflexões de Del Priore não são estranhas ao mundo feminino que encontramos na Santa Maria da segunda metade do século XIX (PRIORE,1997).
Não eram apenas as comadres e parentas que participavam estreitamente da vida familiar. Também o faziam as mulheres que, na comunidade, possuíam saberes mais especializados como as curandeiras e. em especial, as parteiras. Estas últimas, não raro, estabeleciam importantes laços de afinidade com suas clientes e seus filhos, convertendo-se quase sempre em comadres e, muitas vezes, também nas “pediatras”, “ginecologistas” e conselheiras das mães. A confiança depositada nas parteiras era tal que se encontra casos em que “o título de parteira (era) usado para obter confiança das pessoas em outras questões” (WEBER, 1999, p.272).
A parteira participava da vida íntima das mulheres a quem atendia. De tal forma que, nas regiões rurais (afastadas dos centros das vilas) era comum as parteiras “se mudarem” para a casa das parturientes, algumas semanas antes da data prevista para o nascimento e, após, aí permaneciam cuidando do resguardo da mãe e dos cuidados do bebê. O resguardo era um momento de perigo para a mãe e exigia cuidados bem estreitos. Por quarenta dias a mãe deveria permanecer no quarto, longe da claridade, não podia molhar a cabeça e deveria se alimentar apenas de canja de galinha (FONSECA; BRITES,1990).
A importância da ligação entre as parteiras e as mulheres por elas atendidas fica clara no necrológio de Maria Carolina Schmidt, a Maria Parteira, que atuou na vila de Santa Maria por trinta e cinco anos até o seu falecimento em 1888.De acordo com a nota publicada nos jornais da época, seu caixão foi conduzido pelas mulheres a quem ajudara e que se tornaram suas amigas. A forma como atuou junto a suas contemporâneas lhe valeu o respeito e a admiração de toda a comunidade. “Dotada de muita inteligência e conhecimentos de medicina prática, ela, quando ainda a medicina não possuía representantes (no município), prestou reais serviços a esta população” (BELTRÃO, 1950). Os elogios à parteira lhe dão atributos próximos à santidade: honesta, abnegada, bondosa, sem filhos, deu seu amor aos inúmeros afilhados e aos enjeitados deixados em sua porta. A comoção causada por sua morte ilustra a posição privilegiada que essas mulheres passavam a ocupar nas comunidades da época.
Após as parentas e comadres, eram as vizinhas as pessoas mais próximas e que se poderia procurar nos momentos de dificuldade. Mas também com esta os laços de solidariedade poderiam ser reforçados, confundindo-se parentesco e comadrio. Um exemplo da disposição das vizinhas em ajudar e defender aparece no caso de Belarmina Antunes de Oliveira. Perseguida pelo pai que queria violentá-la e a coagia com um facão, a jovem de dezesseis anos encontrou na vizinha, D. Joaquina Maria de Jesus, uma agricultora de idade avançada, não apenas guarida, mas alguém disposta a enfrentar fisicamente o agressor.
Uma avaliação preliminar dos testamentos de mulheres, que viveram na Santa Maria da segunda metade do século XIX, existentes no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) Público do Estado do Rio Grande do Sul, revelou que existiam também outras formas de funcionamento desta rede solidária. Uma breve leitura demonstrou o cuidado que aquelas testadoras tinham em amparar, com seus bens, sobrinhas e afilhadas, especialmente as solteiras. Fosse reforçando o seu dote, deixando renda para que elas pudessem sobreviver ou até obrigando sobrinhos e afilhados a dividirem seus rendimentos com suas irmãs ou primas. Este, contudo, é um trabalho de pesquisa histórica ainda por ser feito. Uma das inúmeras sendas acerca da história das mulheres que merece estudo e aprofundamento a fim de corroborar esta primeira hipótese sugerida pelo olhar sobre a documentação.
Assim, o que se percebe é que longe de viverem isoladas, as mulheres elaboravam suas experiências através de uma constante troca de favores. Estes acabavam constituindo uma das partes mais importantes das estratégias femininas, isto é, da busca das possibilidades existentes para o desenvolvimento pessoal e das táticas utilizadas para se articularem e alcançarem seus objetivos pessoais. As mulheres usavam de seus contatos umas com as outras para estabelecerem pontos de troca e equilíbrio que lhes permitiam driblar um mundo de regras masculinas e lutarem para alterar seus destinos nesse mundo.
Nem tudo são flores: conflitos e estratégias num mundo hostil
Obviamente, nem todas as relações entre as mulheres desta época primavam pela mútua ajuda. Algumas vezes a amizade poderia ser abalada por desavenças e criar inimizades viscerais. Em 1878, a paraguaia Anastácia Roa acusou as irmãs Maria Manoela e Amabília Maria da Conceição de terem convencido Marcellino José Cardoso e Mathias José Ramos a atentarem contra a sua vida. A razão da briga entre as três costureiras não fica clara no processo. As duas irmãs continuam a alegar serem amigas de Anastácia e negam o envolvimento com os homens que deram um tiro na paraguaia. O caso envolve três mulheres muito pobres e, embora as duas Marias reafirmem o tempo todo o nome do pai (muito provavelmente para não figurarem como mulheres sozinhas e pouco dignas), é quase certo de que se trata de uma desavença entre prostitutas. Primeiro, porque “costureira” parece ter sido a profissão que estas alegavam nos processos-crime. Segundo, porque Anastácia declarou que Mathias e Marcelino eram seus inimigos em razão de desavenças por causa de mulheres.
Contudo, não se deve supor por isso que as solidariedades ou as desavenças estivessem ligadas a esta ou àquela faixa específica da sociedade, ambas eram facetas do cotidiano das mulheres da época.
Os estudos históricos sobre a vida das mulheres brasileiras têm revelado que, durante muito tempo, as fontes utilizadas para pesquisa eram, na maioria das vezes, os relatos dos viajantes e que tinham como principal característica a contemplação de um tipo específico de mulher: a da elite. As mulheres, que daí afloravam, eram em sua maioria sombras, escondidas dentro das casas, ensinando e aprendendo tão somente as prendas domésticas valorizadas no mercado de casamentos. A historiografia das últimas décadas tem revelado outros modelos femininos. Mulheres pobres que trabalhavam para sustentar-se e à família, algumas sendo até mesmo chefes das mesmas. Mulheres que tinham filhos fora do casamento fossem viúvas, solteiras, deixadas, casadas. Mulheres que viviam suas vidas sem “um homem por si”. Logo, esses modelos se mostraram muito mais frequentes que aqueles primeiros, deixando claro o quanto se quis ocultar na elaboração dos discursos que proclamavam na obediência feminina do século XIX, o modelo ideal de mulher.
O uso descontextualizado dos comentários dos viajantes, visões parciais e de uma realidade fugaz, foi ainda menos benéfico para construção de uma história das mulheres no Rio Grande do Sul. De fato, estes serviram para corroborar uma imagem tradicional de obediência e passividade, povoando, se formos crer apenas em suas palavras, o território gaúcho com prendas apagadas e mudas, chinas inexpressivas, e negras quase “inexistentes”.
Onde, então, se pode ver essas mulheres que não eram submissas, nem rebeldes todo o tempo? Que negociavam com as contradições e fimbrias desse sistema elaborado unicamente em benefício dos homens? Talvez, os processos-crime de Santa Maria tenham algo a dizer sobre as possibilidades de vida, mas também de escape dessas mulheres, especialmente ao demonstrarem seus conflitos com esse mundo.
Convido a voltarmos ao caso de Belarmina Antunes de Oliveira, a jovem perseguida pelo pai incestuoso, o lavrador Vidal José Machado. Não é apenas a solidariedade da vizinhança que pode ser lida neste episódio, mas uma série de elementos que nos servem para visualizar e compreender a vida das mulheres pobres que aí viviam. Obviamente que, nem todas as mulheres pobres que aí viviam precisavam valer-se do oficio de “costureira” para sobreviver. Belarmina, por exemplo, afirma diversas vezes ao longo do processo que é pobre, mas “honesta”. Quando de sua fuga do ataque do pai, a jovem carregava nos braços uma criança, filha sua com o “índio” (sic aos documentos, indígena) Jose dos Santos. Não se sabe qual foi a reação de Vidal ao descobrir a filha grávida, porém todas as testemunhas afirmam que a razão maior de seu destempero vinha do fato de a moca não querer mais lhe ceder sexualmente
Estar relação, embora cheia de repreensões morais, não parece estranha aos homens e mulheres da época e foi possível encontrá-la em pelo menos dois processos deste período. Entretanto, nenhum dos casos teve o incesto como foco e, apesar das recriminações da comunidade, jamais houve qualquer denúncia que partisse desse sentido. No outro processo encontrado. o do defloramento da menina Josefa, filha de José Luís D’Ávila, em 1875. as testemunhas acusaram o pai de manter relações com as filhas. Não se pode deixar de comentar, porém, que nos dois casos os acusados de incesto eram odiados por seus vizinhos. Voltarei a isso mais adiante.
No caso da jovem Belarmina, sua situação só parece ter vindo a público porque ela invadiu a casa de vizinhos e deixou uma criança de colo gravemente ferida. As testemunhas do processo dão a entender que o incesto era de conhecimento comum. Uma delas, o lavrador José Manoel dos Santos contou que viu quando Vidal conduzir a filha para o mato e, ao que parece, antes que a moca fugisse para a casa dos vizinhos, ninguém esboçou qualquer reação para defendê-la. A testemunha ainda afirma que, no momento em que Belarmina se evadiu, o pai rompeu em impropérios, os quais deixam muito clara a relação de ambos: “Deixa-te estar puta, que me hás de pagar, pois por causa daquele indiozinho não queres mais me servir”. É provável que Belarmina tivesse muito medo do pai. Ou até mesmo considerasse o abuso quase “normal”, porém, quando passou a ter “u homem por si”, teve coragem para negar-se aos intentos de Vidal.
Apesar dos comentários convincentes das testemunhas, não se pode afirmar que o incesto é a única leitura possível deste caso. É preciso que se tenha em mente que nem sempre o produto final dos inquéritos judiciais está muito longe da realidade que lhe deu origem. Logo, nada impede que se utilize das contradições existentes nos autos como forma de acessar diferentes interpretações.
Ao fim de todo, o pai foi absolvido e, em seu depoimento, disse que não tentou ter nenhum tipo de relação com a filha, que seu destempero se deu por ela estar saindo de casa para viver com um homem que ele desaprovava e que não quis esfaqueá-la, mas dar-lhe uma surra com a bainha da faca. Um pouco fantasioso, sem dúvida, mas a sentença, pronunciada quase três anos depois do ocorrido pelo réu ter ficado foragido, o inocentou. Frente ao Júri, Vidal afirmou ter se reconciliado com a filha, indo inclusive visitá-la sempre, na casa em que esta vive com o seu “sedutor”.
Obviamente que a história é questionável, contudo, é importante relativizar alguns pontos. Primeiro, Vidal era malquisto na vizinhança, que o considerava um homem de maus costumes (o mau conceito da vizinhança proporcionava, em geral, muitos depoimentos desfavoráveis). Segundo, os depoimentos mais incriminadores em relação ao incesto partiram de homens jovens que presenciaram a agressão, e Belarmina, aproveitou-se da fuga do pai e foi viver com José dos Santos, o pai de seu filho. De repente, a menina pobre já não parece mais tão indefesa, ela poderia ter inventado as razões escusas do pai, inclusive contando com a ajuda dos vizinhos mais próximos. Ou, mesmo que mantivesse relações com ele, ela pode ter provocado o escândalo para livrar-se de um pai abusivo e dominador. O pouco conceito de Vidal entre seus vizinhos seria um elemento amais para caracterizar a disposição destes em colocar a justiça contra o homem e reforçar o que havia de pior nos falatórios a respeito de seu caráter. Esta, inclusive, foi exatamente a mesma situação que encontrei no outro processo em que aparecem relações incestuosas entre pai e filhas.
Histórias como a de Belarmina parecem demonstrar que, mesmo em situações de violência e opressão-ordinárias às mulheres de qualquer classe social naquele período — se pode notar que existem mulheres agindo. moldando e reelaborando as situações que se lhes apresentavam. Percebe-se a busca para dar um sentido mais positivo e favorável aos seus interesses. ou seja, uma negociação aberta com as regras do mundo masculino e, até mesmo, a sua manipulação.
Para se perceber isso, podem-se considerar as contradições presentes nos processos que envolvem mulheres. Através das pequenas discrepâncias entre um e outro depoimento, entre uma versão e outra dos fatos, se pode perceber como a margem de negociação com o mundo masculino foi ampliada e manipulada. Mesmo que os resultados nem sempre tenham sido satisfatórios.
Foi este, por exemplo, o caso de Florentina Eusébia, em 1859.quando esta não quis seguir com sua família, que se mudou da Porteirinha para o Campestre (duas localidades no interior do município de Santa Maria). A moça não queria sair de perto do homem que escolhera, o lavrador José de Almeida. Seu pai, José Antonio Mendes-homem muito malquisto por seus vizinhos da Porteirinha-matou José de Almeida, por não aceitar o seu relacionamento com a filha. A parte interessante deste processo não diz respeito aos pormenores do crime, mas ao sobe e desce da idade de Florentina. Enquanto o pai informava ser ela menor de dezoito anos, a moça garantia ter vinte e seis e ser capaz de autogovernar-se. É possível que ela não tivesse nenhuma dessas idades, e que, tanto ela quanto o pai pretendiam manipular os autos a fim de conseguirem o que queriam. O dela, era condenar o pai e o dele ser inocentado, como efetivamente ocorreu.
O que se tem aqui são, portanto, duas mulheres — Belarmina e Florentina — ambas filhas de lavradores pobres, que dentro das possibilidades oferecidas pela época, demandam frente a justiça aquilo que acreditavam ser um direito seu, isto é, poder escolher os seus homens. Num tempo em que a esmagadora maioria das mulheres saía dos desmandos do pai para os do marido, a possibilidade de escolher o companheiro poderia ser encarada como uma vitória. Possivelmente, esta era uma das grandes lutas das mulheres desta época. É por esta senda que, muitas vezes, as redes de solidariedade feminina se mostravam mais atuante. Não apenas alcovitando e escondendo encontros, mas também indo a Juízo e reforçando falatórios. Afinal, a “voz corrente” tinha força de verdade nos tribunais brasileiros dos oitocentos (FARIA,1998).
Pode-se argumentar que toda essa ação, descrita acima, fosse própria apenas das gentes mais pobres, onde o trabalho e a necessidade de estabelecer contatos faziam parte do cotidiano de todos e dos quais dependia a sobrevivência. Contudo, à medida que se entra em contato com outros segmentos sociais se percebe que este é um argumento bastante simplificador da realidade.
Mobilidade e Reclusão: exceções, contexto e possibilidades
Em Santa Maria, mesmo as mulheres que podiam gozar de uma situação mais confortável que as lavradoras, carreteiras e “costureiras”, nem sempre se restringiam aos “afazeres do lar”. Algumas como Maria Elias ou as mulheres da família Pavão, pertencentes à elite, tiravam seu sustento de suas propriedades, com pouca ou nenhuma interferência dos maridos, os quais são raramente mencionados nos documentos. Logo, a ideia de que a pobreza e a necessidade empurravam as mulheres para fora de seu espaço no lar, enquanto as de condição abastada, por não necessitarem desses expedientes, teriam uma vida mais recolhida, deve ser relativizada. Sem dúvida, as mulheres pobres tendiam a movimentar-se mais na esfera pública, mas até onde se pode averiguar, condições de vida mais fáceis não determinavam, por si só, uma vida reclusa para as mulheres economicamente melhor situadas. Se estas eram exceções ou não, é preciso que pesquisas históricas mais aprofundadas venham a demonstrar qual foi o seu caso.
Entretanto, muito deste caráter recluso, que se atribui às mulheres do século XIX, vem por conta do próprio contexto regional do Rio Grande do Sul. Desde que a fronteira foi fixada em 1801, a região passou por inúmeros conflitos: Campanha Cisplatina (1825-28), Campanha contra Rosas (1851-52) e a Guerra do Paraguai (1865-70), e, claro, não se pode deixar de mencionar os dez anos de guerra civil que foram os anos da Revolução Farroupilha (1835-45).
O interior, certamente, era uma região mais insegura, com bandos de desertores e ladrões vagando em hordas que podiam ou não se seguir às batalhas, deixando a população constantemente com medo. Muitos grupos como estes, não existiam apenas nos períodos belicosos. Em tempo de paz, casas isoladas e viajantes solitários corriam igual perigo. Daudt Filho conta que, viajando com o pai para a capital, por volta da segunda metade de 1870, somente não caíram nas mãos de um bando de salteadores por um golpe de sorte, ou melhor, um golpe dado com a lança num vespeiro por um ladrão descuidado (DAUDT FILHO, 1949). Em outra ocasião, no ano de 1843 (em plena guerra farroupilha), um pequeno grupo destes bandidos de estrada entrou na vila de Santa Maria e pretendeu roubar a casa de negócios de João Frederico Niderauer e foi repelido a bala. Os memorialistas locais têm especial predileção por este episódio, que terminou com dois assaltantes mortos e com o terceiro membro do bando, uma “china”, fugindo em disparada campo a fora.
Além dos problemas causados pelas guerras, a insegurança era agravada pelas grandes distâncias existentes entre as povoações. Levando em conta tais características, ter um homem em casa, para as mulheres desta época, podia significar uma sensível diminuição nas possibilidades de elas serem estupradas (por desconhecidos) e/ou mortas. E, esconder-se dos estranhos, como as acusa Saint-Hilaire era, possivelmente também, uma medida de segurança (SAINT-HILAIRE,1997). Pois mesmo que nenhum dos viajantes tenha percebido o fato, para quem recebia sua visita, eles poderiam ser qualquer tipo de gente e ninguém que vivesse nas condições que foram descritas acima se exporia à dúvida. A reação das mulheres à sua visita pode não ter sido à mesma em outros casos.
Além disso, pode-se acreditar que o estupro fosse uma prática bastante generalizada numa sociedade como esta, mesmo porque, este não estava ausente nem mesmo nas regiões consideradas mais urbanizadas e “civilizadas” (VIGARELLO,1998). Como demonstra Vigarello, a violência sexual não era somente uma parte da ação da guerra em que se elabora a completa humilhação dos vencidos, mas também uma ação definidora de alguns elementos da masculinidade. De outra forma, como a punição para isso era ainda um fato recente, o estupro tinha a feição de uma ação ordinária que, a não ser em caso de jovens virgens ou de famílias de grande monta, não gerava nenhum tipo de punição ou perseguição dos culpados.
Apesar disso, os períodos de guerra parecem não ter cerceado, embora tenham certamente limitado, a movimentação das mulheres no espaço. O coronel Manoel Lucas de Oliveira relata em seu diário a presença e constante visita das mulheres — esposas, filhas e outras parentas dos soldados — aos quartéis e acampamentos da campanha contra o Paraguai (OLIVEIRA,1997, p.35).
Considerações finais
O que se pode concluir deste esboço sobre a vida das mulheres na Santa Mara da segunda metade do século XIX é que, longe de nos depararmos apenas com atitudes passivas ou simplesmente reativas por parte destas, podem-se perceber ações positivas e propositivas diante daquela realidade. Muito embora a dominação masculina se fizesse sentir em quase todas as esferas da vida, as mulheres souberam utilizar os espaços que lhes cabiam, ampliando e alterando as margens de negociação com as regras que o mundo dos homens lhes impunha.
Por outro lado, muito ainda há por saber, pesquisar e historiar sobre a vida das mulheres no século XIX. Seus sistemas de aprendizagem, suas ações no mundo do trabalho, suas formas de renda, suas escolhas, sua adequação e inadequado à sociedade em que viviam. Especialmente, ainda é necessários estudos que aprofundem o conhecimento sobre como eram vividas as diferenças étnicas e sociais por estas mulheres. O que era ser branca, negra, índia, “china”? Quais as implicações de ser escrava, liberta, agregada, pobre, remediada, ter posses ou ser sustentada, ser imigrante, ser solteira, viúva ou descasada? O que há para saber é ainda maior do que o que sabemos, por isso a história das mulheres no Rio Grande do Sul e na Santa Maria do século XIX é, ainda, um território em aberto.
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Nikelen Witter é escritora e historiadora. Autora de: Territórios Invisíveis, Guanabara Real e a Alcova da Morte (Prêmios Le Blanc e AGES); Viajantes do Abismo (Prêmio Odisseia, finalista do Prêmio Jabuti); Dezessete Mortos (Prêmio Açorianos); Guanabara Real e o Covil do Demônio e Silêncios Infinitos.