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Mulher, Estado e Revolução: Algumas considerações sobre a obra de Wendy Goldman por DANIELA NASCIMENTO

Como seria organizada uma sociedade em que as mulheres tivessem ampla liberdade sobre suas escolhas, sobre inserção no mercado de trabalho e em relação à maternidade?

Este era o projeto do governo bolchevique após a Revolução de Outubro. Lutou-se pela construção de uma associação de mulheres e homens baseada em quatro preceitos: união livre, emancipação das mulheres, socialização do trabalho doméstico e definhamento da família, como sistematiza Wendy Goldman, autora do livro “Mulher, Estado e Revolução”, publicado pela editora Boitempo.
A autora nos apresenta um extenso trabalho baseado em fontes primárias de pesquisa, traduzidas dos originais russos da época, para reconstruir o contexto social e econômico frente ao qual o novo projeto de sociedade comunista foi erguido na Rússia. O trabalho de Goldman oferece subsídios para as pesquisas atuais nos campos da teoria crítica, dos estudos marxistas e de gênero e, também, para a teoria e sociologia do direito. Em sua reconstrução histórica, a autora mostra os projetos legislativos, as políticas institucionais e o conteúdo ideológico que sintetizou um período de profundas transformações sociais, cujos efeitos diretos não apenas foram sentidos na vida cotidiana das trabalhadoras e trabalhadores russos, mas se difundiram globalmente.
Até hoje, os estereótipos e a falsa idéia de unidade do chamado “socialismo real” como bloco monolítico stalinista e autoritário contribuem para a construção do imaginário social a respeito das alternativas ao sistema capitalista. Sendo assim, conhecer as primeiras idéias do período bolchevique, desconstruir os mitos do “machismo comunista”, observar os avanços legislativos propostos e seus limites, e por fim, compreender a virada ideológica conservadora do período estalinista são desafios centrais para o aprofundamento teórico dos debates críticos e para a militância por outros mundos possíveis.
A partir de temas centrais como o papel da mulher revolucionária e os arranjos institucionais para a garantia de sua libertação o livro levanta as seguintes questões: É possível que se crie total liberdade sexual para homens e mulheres? Em que condições tal cenário pode ser construído? O tema não é recente e foi um dos pontos centrais dentre as reivindicações da Revolução Russa. Para os bolcheviques, a constituição de uma sociedade igualitária perpassava preocupações relacionadas não só ao trabalho, mas também à família e aos papeis de gênero reforçados nos seus meandros. Estes são pontos umbilicalmente ligados, como se depreende da análise de Wendy Goldman. Desde o primeiro capítulo, Goldman mostra que, naquele contexto, defendia-se um novo modo de vida, uma nova organização familiar e novas relações humanas que em geral dependiam da emancipação das mulheres. Para isso, seria necessário problematizar a monogamia, a “escravidão do lar” e a divisão sexual do trabalho.
A busca por um novo modelo de relações sociais não se limitou ao campo discursivo. Foi ratificada pela legislação da época: o Código do Casamento, da Família e da Tutela (1918), regulamentação que os juristas encaravam como transitoriamente necessária. Entre outras coisas, a legislação familiar mais progressiva que o mundo havia conhecido até então, aboliu o status legal inferior das mulheres, reformulou o caráter da entidade familiar, separando-a do conceito de casamento, e prescreveu os direitos das crianças e dos jovens. Contudo, como frisou a autora, Alexandra Kollontai – entre outras lideranças feministas do partido que demonstraram especial (e prematuro) entusiasmo com o estado da família no final da guerra civil – destacou que a luta pela igualdade perante a lei e perante a vida cotidiana, que culminaria no primeiro experimento com o amor livre, não deixaria de produzir efeitos inesperados, como, em última análise, um potencial incremento da exploração das mulheres pelos homens.
Se, por um lado, a função primordial da unidade familiar – a divisão sexual do trabalho – padeceria diante de sujeitos autônomos e iguais, o que daria lugar a relações novas, não obrigatórias e baseadas tão-somente em sentimentos mútuos, por outro, o esvaziamento da instituição do casamento decorrente da emancipação das mulheres tornaria os homens livres das responsabilidades ante as mulheres, sob as quais então recairia exclusivamente o cuidado das crianças – ao menos, enquanto o Estado não arcasse com tal ônus. Ora, diferente dos homens, para as mulheres, a gravidez era um grande obstáculo para a livre expressão da sexualidade, uma vez que seus direitos sexuais e reprodutivos não eram (e ainda não são!) integralmente assegurados, o que restringe a liberdade sexual plena apenas para os homens. Embora discursivamente a união livre e a emancipação das mulheres estivessem entrelaçadas, a autora alerta que é preciso questionar as conseqüências práticas de tal alternativa ao casamento.
Goldman segue sua análise salientando que teóricas menos otimistas em suas previsões sobre o fim da família sugeriram que, apesar de a família não ser mais uma unidade de produção, ela seria a unidade primária de organização da reprodução e do consumo, garantindo o cuidado para os idosos, os doentes e os jovens, de modo que não seria possível vislumbrar a sobrevivência de mães com filhos pequenos ou pessoas inválidas sem o sistema de apoio da família, o que revelaria sua função de redistribuidora de receitas entre pessoas assalariadas e não-assalariadas. Dessa forma, mostrar-se imprescindível a implementação de políticas comprometidas com a abolição da diferenciação salarial, fornecimento de uma ampla gama de serviços sociais e a socialização do trabalho doméstico.
Após descrever a situação de abandono de crianças advinda da socialização dos seus cuidados, Goldman examina ainda mais detidamente as questões relativas à livre sexualidade e vulnerabilidade das mulheres como determinantes no rumo da política familiar soviética. Se as jovens rebeldes de classe média e alta da época lutavam por seus direitos à plenitude emocional, educação e carreiras, desdenhando do casamento, a massa das mulheres trabalhadoras soviéticas era formada por mães, sem qualificação profissional e analfabetas, para quem o casamento freqüentemente representava uma forma de segurança e sobrevivência. Diante do alto índice de desemprego, baixos salários e conseqüente forte dependência das mulheres em relação à família, tornou-se natural que o divórcio fácil garantido pela legislação da época e as uniões livres fossem dificilmente acessados por mulheres trabalhadoras, primeiras a serem demitidas, últimas a serem contratadas.
Tal como se percebe na atualidade, garantias da legislação trabalhista como a licença-maternidade remunerada ou restrições de trabalho para mulheres grávidas e lactantes incitavam administradores a demitir mulheres e substituí-las por homens, o que ganhava proporções ainda mais desastrosas considerando a escalada nos números de divórcios noticiada por Goldman. Ou seja, as mulheres não só não se encontravam em posição de exercer seu direito à “união livre”, como a fragilidade do laço matrimonial lançou às ruas centenas de mulheres, atirando-as para a prostituição para garantir seu próprio sustento, de seus filhos ou genitores. Mesmo as mulheres que trabalhavam enfrentariam problemas para subsistir, pois auferiam salários menores e tinham menos acesso à qualificação profissional, dificuldades incrementadas pela outrora mencionada maternidade compulsória.
Definitivamente, a substituição do casamento pelas uniões livres enquanto não garantida uma efetiva emancipação (principalmente econômica) das mulheres serviu tão somente para fortalecer os papéis de gênero e robustecer a exploração de mulheres por homens, seja no mercado de trabalho formal, seja na comercialização de seus corpos. Como já destacado, a questão da reprodução fora uma das preocupações centrais no período bolchevique. Refletia a preocupação em relação às estruturas econômicas mais básicas – manutenção da força produtiva – e trazia também a tentativa genuína das lideranças do partido e comitês populares de forjar novos modelos de vida e socialização coletiva que, no caso, fossem capazes de oferecer autonomia de decisão às mulheres. Nesse sentido, a questão da maternidade e do aborto constituiu uma pauta central nas fases iniciais do governo bolchevique.
Anterior à revolução de Outubro, o Código Penal russo de 1885 definia o aborto como um ato premeditado de assassinato. Estabelecia uma forte punição tanto para quem o realizasse, quanto para as mulheres que se submetessem ao procedimento. Em 1920 foi reconhecida a inutilidade da repressão e promulgado decreto que legalizava o aborto gratuito a ser realizado por médicos em hospitais. Essa regulamentação matinha, contudo, a interrupção da gravidez efetuada por parteiras ou pelas próprias mulheres, o que era muito comum na época, na ilegalidade. Entretanto, muito embora a União Soviética tenha conferido pioneiramente a todas as mulheres a possibilidade de interromper a gravidez de forma legal e gratuita, jamais reconheceu o aborto como um direito da mulher, tendo legalizado o aborto sob um ponto de vista orientado para a redução de danos: a natalidade não era entendida como uma questão privada, mas como de interesse da sociedade e do Estado, cujos interesses deveriam prevalecer sobre a vontade individual da mulher.
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que o Estado oferecia incentivos à maternidade, foram erguidos uma série de entraves, tanto de ordem burocrática, quanto de ordem física, para a realização do aborto legal. Os procedimentos realizados nos hospitais se davam sem anestesia através de um método extremamente dolorido de raspagem do útero. Goldman traz no livro, em cuidadosa retomada da voz das mulheres, diversos relatos que indicam que esta opção era a mais comum como forma de desestimular o aborto. O aborto ilegal realizado por parteiras, por outro lado, era menos agressivo e baseado em métodos simples oriundos de um saber comum feminino das mulheres russas. Apesar de sua reiterada eficácia e segurança atestadas pelo senso comum, tais métodos eram (e permanecem sendo nos dias atuais) ignorados e ridicularizados pelos médicos. Apesar da agressividade do aborto legal e da limitação penal do aborto ilegal, as taxas de aborto permaneceram elevadíssimas. Considerando as possibilidades contraceptivas da época, o aborto continuava sendo o principal método para evitar a reprodução. A pobreza e o abandono dos pais da criança eram a causa mais freqüentemente alegada para a interrupção da gravidez. Outro motivo bastante aventado, principalmente nas cidades, dizia respeito à nova dinâmica revolucionária: as mulheres conquistaram um tipo de vida que não estavam dispostas a abrir mão para criar sozinhas os filhos que não foram desejados por seus pais.
Assim, as mulheres permaneceram resistindo individualmente e sofrendo na carne as dores dos partos jamais desejados. Após o retorno da proibição do aborto em 1936, com as mudanças do regime stalinista e a implementação pelo Estado de diversos incentivos pró maternidade, a taxa de mortalidade por abortos disparou, o que demonstra que, já naquela época, o direito ao aborto era uma questão de saúde pública. Passados quase 100 anos da Revolução Russa, a ONU estima que aproximadamente 20 milhões de abortos clandestinos inseguros sejam realizados por ano no mundo, originários de cerca de 250 mil internações por complicações e 68 mil mortes de mulheres – mulheres pobres, frise-se –, dado que aquelas que possuem recursos financeiros conseguem acessar o aborto clandestino seguro em clínicas profissionalizadas.
Da leitura do livro de Goldman, percebe-se o quão atuais são os dilemas enfrentados pelas mulheres naquela época para as lutas feministas dos dias de hoje. Contudo, a complexidade desse período político trouxe efeitos sobre diferentes âmbitos da tessitura social. No último capítulo, a autora destaca a virada ideológica com a ascensão ao poder de Josef Stalin. Diante da crise do modelo econômico e do caos social, mudanças de rumo conservador foram implementadas com o objetivo, dentre outros, de controlar a questão da marginalidade infantil, o que afetou diretamente a posição das mulheres em sociedade uma vez que a retomada da família foi à estratégia adotada para suprir a falta de eficiência do Estado em oferecer condições pedagógicas e inclusão para as crianças abandonadas. Além disso, os níveis de instabilidade social chegaram ao ápice também no âmbito da distribuição de terras e dos direitos de divisão de bens.
Desde os primórdios do governo bolchevique, os juízes tiveram papel ativo em conceder proteção às mulheres judicialmente independentes das redações dos códigos de família e de terras. Esse modelo, contudo, foi fortemente e permanente questionado pelos homens, que necessitavam dividir seu salário em inúmeras pensões e também suas propriedades. Somando-se a isso, a possibilidade de divisão de bens com as mulheres significava um problema para as estruturas familiares comunais de propriedade, modelo que era preponderante em um país ainda em industrialização. O cenário que se desenhou era, para além da crise econômica e limitação da produção, a total falta de solidariedade entre homens e mulheres. Esse anseio – contrário à emancipação das companheiras – foi sentido pelo comitê central e utilizado para a formulação das novas concepções ideológicas estalinistas. Em resumo, como diz Goldman no livro, “a política stalinista em relação à família foi um híbrido grotesco: enraizada na visão socialista original, esfaimada pela terra esgotada de pobreza e finalmente deformada pela crescente confiança do Estado na repressão”.
Com sua virada conservadora, o projeto político stalinista não só impossibilitou o projeto original de desfalecimento da lei com a morte da sociedade de classes, como provocou efeitos sentidos até hoje no que diz respeito ao imaginário de outras possibilidades de ordem social. Ao reivindicar-se como herdeiro genuíno da visão socialista, e ao mesmo tempo, implementar um rol de medidas altamente repressoras – no caso das mulheres, a proibição do aborto e fortalecimento do discurso sobre a família heterossexual hierárquica – o stalinismo criou um espantalho do projeto político socialista que somente atuou em desfavor das possibilidades de luta social. Esse e outros aspectos indicam a importância e o quão fértil é o trabalho de Goldman para as discussões teóricas e militantes nos campos já mencionados. Como se deve sempre relembrar, para que a revolução um dia aconteça, ela terá de ser também feminista.

Daniela Grieco Nascimento e Silva

Doutora em Educação (Linha de Pesquisa: Educação e Artes – PPGE/UFSM). Licenciada em Pedagogia – Mestre em Educação. Diretora da ONG Royale Escola de Dança e Integração Social. Integrante do GEEDAC (Grupo de Estudos em Educação, Dança e Cultura).
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