A Califórnia da Canção Nativa é uma marca da cultura e do nativismo gaúcho, um festival musical que lançou algumas das mais icônicas melodias de nosso cancioneiro.
Começou em 1971 em Uruguaiana e teve nos anos 80 e meados dos 90 a sua época de ouro. Durante a Califórnia, milhares de pessoas se acomodavam sob a fumaça de churrascos, em centenas de barracas, construções passageiras que eram erguidas no Parque Agrícola e Pastoril, lado a lado, como casas, formavam uma verdadeira cidade. A Cidade de Lona.
E era em meio a fumaça de churrasco, garrafas de cerveja e canha, que as pessoas acampavam para ouvir música nativista, fosse nas barracas, nos palcos ou nas tertúlias. Juntavam-se debaixo das lonas para tocar, e também, para ouvir rock and roll, MPB e Blues. Tudo podia. A Califórnia era mais que um festival nativista, era um encontro das diferenças, um encontro das artes e das vidas.
A classe artística caminhava entre as barracas e se fundia na classe média, a classe média se acreditava também parte da elite rural e se aventurava em tertúlias com agropecuaristas que churrasqueavam lado a lado com o trabalhador da construção civil, com o taxista ou com o peão de estância. As classes sociais estavam todas lá, com suas diferenças econômicas e, ao mesmo tempo, não estavam.
A Cidade de Lona era a arte cumprindo seu papel, o de aproximar os espíritos e, mesmo que momentaneamente, horizontalizar questões de classe e as diferenças sociais em função de um mesmo objetivo: a música.
Diante da arte as pessoas esqueciam suas diferenças, desarmavam-se ao som de uma milonga e, entre um sapucai e outro grito qualquer, trastejavam as cordas bêbadas dos violões.
Na Cidade de Lona todos eram humanos ao redor do fogo, todos estavam humanos, sentados diante da arte. Hoje, muitas vezes, sequer conseguimos nos aproximar de maneira não virtual, quem dirá conversar sem que ofensas sejam a regra, sem que a confusão ou o extremismo seja o norte.
Em 2019, quando eu estava indo para o trabalho, fiz a foto que emoldura esse texto. Nos anos 80, quando a Califórnia estava no seu auge, Jorge Dias Soares, esse senhor envelhecido que aparece na fotografia, então aos 52 anos, estava na adolescência. Jorge nasceu e viveu sempre em Uruguaiana. Quando ainda era um guri, foi escoteiro do grupo Adventista Os Desbravadores. Foi quando ele viu a Cidade de Lona pela primeira vez. A música, as pessoas, a alegria dos sorrisos, tudo era como uma miragem, destas de deserto, que a arte pintou nas retinas rasas de Jorge. As barracas eram o presente e o intangível. A Cidade de Lona ficou no Jorge, no seu imaginário.
Jorge me disse que o mais perto que chegou da Califórnia e de suas lonas foi quando frequentava o Parque Agrícola e Pastoril para fazer exercícios físicos junto com os demais escoteiros. A miragem estava lá, centenas de barracas de lona, coloridas, pessoas indo e vindo, mas Jorge nunca conseguiu entrar numa, sequer as tocou. Contou-me emocionado, que por duas vezes caminhou até a entrada do Parque, ouviu a música trazida pelo vento, disse-me convicto de que era a voz de Mercedes Sosa, falou que sentiu o cheiro da fumaça dos churrascos, mas não teve dinheiro para entrar. É que as classes sociais estavam lá, sempre estiveram, e o Jorge sabia, mesmo que lá dentro, isso fosse esquecido.
Não quis pular a tela, achava errado, ficou ao lado do caminho. A Cidade de Lona de Jorge era outra coisa, nela não tinha bebidas, nem blues, era uma construção da sua imaginação em uma pequena utopia de aceitação, não ser invisível diante dos outros. Sentir-se parte de algo.
Jorge nunca ouviu uma tertúlia, disse-me ele que sonhava em “ir na Cidade de Lona para ouvir Pedro Ortaça e César Passarinho”. Jorge, fisicamente, nunca entrou na Cidade de Lona, mas deve ter estado nela diversas vezes, em cada olhar marejado que me deu. Na vida, Jorge foi vendedor ambulante, foi trabalhador rural, foi alcoólatra, perdeu os pais, brigou com os irmãos e na pobreza hereditária da sua vida, desempregado, virou morador de rua.
Naquele dia de 2019, quando voltava do trabalho, foi que eu vi pela primeira vez o Jorge. As lonas pretas, amarradas, estavam ali há meses, mas só depois de uma olhada mais demorada foi que percebi o que havia vida debaixo delas. No Trevo que dá acesso para a Unipampa, vi um senhor e seus cães, brincando no vento frio do meio dia.
Parei o carro, desci. Nem havia me apresentado e o Jorge já me jogava um sorriso de boas vindas. Nos olhamos por alguns segundos, não sei o que ele viu. Eu, bem, vi um outro ser humano, olhei para uma pessoa amarrada miseravelmente na invisibilidade de sua lona preta. Um homem escondido na cegueira dos olhos de uma sociedade que não se importa com as lonas pretas destas cidades que crescem dentro das nossas cidades. Cidades de lonas debaixo de marquises, nas sombras das pontes e viadutos, nas vilas, em esquinas e nas praças.
- “Onde fica o palco da tertúlia?”, perguntei enquanto me aproximava.
- “Bah! Tu é do tempo da Califórnia! Pior que isso aqui, parece a Cidade de Lona mesmo!”, respondeu-me, antes de soltar uma gargalhada.
O Jorge, que nunca foi numa Califórnia, agora tinha sua barraca. Ele morava numa barraca de lona, lona preta, rasgada pelo vento e amarrada entre dois eucaliptos que se moviam como se fossem cair a qualquer momento. Era nesse lugar que Jorge vivia, todo ano ele voltava e ficava ali uns meses, dormindo no chão frio do inverno, sobre pedaços de cartão e folhas encharcadas da chuva, ali ele se se alimentava dos alimentos deixados em oferendas religiosas postas no Trevo ou daquilo que conseguia comprar com o dinheiro da venda dos materiais recicláveis que catava. O crack era quase um amigo, a cachaça uma aliada.
De uma carcaça de micro-ondas improvisou um fogão. Da vida solitária fez seus melhores amigos em quatro cães. Diferente da Cidade de Lona da Califórnia, sem arte e sem milongas como mediadores, nossa conversa teve a vida como fundo musical e a cidade de lona do Jorge foi tocando a canção da realidade.
Afinal, é na Cidade de Lona onde precisamos lembrar que somos iguais, mesmo estando tão diferentes. A Cidade de Lona do Jorge não era diferente.
Da vida do Jorge eu nada sei, sei apenas o que conversamos naquele dia, em pouco mais de vinte minutos. Não sei dos seus acertos, nem dos seus erros, dos seus vícios, dos seus heroísmos ou de suas covardias, só sei da sua humanidade. Sei que a vida dele é igual a minha, precisa de ar, calor, comida e dignidade. Sei que ele é um ser humano vivendo como um ser humano jamais deveria estar vivendo. E como ele ainda existem tantos. Vidas e mais vidas sobrevivendo no frio da invisibilidade das cidades de lonas pretas. A miséria, a fome e a pobreza se fortaleceram com o Mito.
No ano seguinte o Jorge não apareceu entre os dois eucaliptos, nunca mais soube dele. Se ainda vive, se sobrevive, se em vida ainda morre, se morreu, se viveu de fato. Não sei. Sei que a lona onde ele morava ficou ali por mais de um ano, até que o vento levou para longe dos olhos, fazendo dela não menos invisível. Na semana passada, enquanto cruzava pelo trevo em direção à universidade, eu lembrei do Jorge, pois no rádio tocava “Negro de 35”, de César Passarinho: “Porque o amor não tem cor, sem cor é a fraternidade”. Tomara que o Jorge, pensei em voz alta, longe das lonas invisíveis, também esteja ouvindo. Nesse dias de tanto frio, precisamos de menos barracas de lona e mais fraternidade, muita fraternidade.
Roger Baigorra Machado
é formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM. Foi Coordenador Administrativo da Unipampa por dois mandatos, de 2010 a 2017. Atualmente trabalha com Ações Afirmativas e políticas de inclusão e acessibilidade no Campus da Unipampa em Uruguaiana. É membro do Conselho Municipal de Educação, do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico do Município de Uruguaiana e é conselheiro da Fundação Maurício Grabois. Em 2020 passou a compor o Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação, no âmbito do município de Uruguaiana/RS. No resto do tempo é pai do Gabo, da Alice e feliz ao lado de sua esposa Andreia.