Uma das vozes de maior destaque da poesia brasileira contemporânea, a poeta mineira Ana Martins Marques lançou, em junho do ano passado, Risque esta palavra (Companhia das Letras, 2021), que se tornou um de meus livros de cabeceira e que escolhi para comentar nesta edição da Estante.
Atenta ao que acontece ao seu redor, a poeta aborda em Risque esta palavra desde acontecimentos que poderiam ser considerados mais relevantes a “qualquer coisa que esteja posta diante dos olhos”. Apresentando procedimentos e temáticas que permeiam escritos anteriores – como o corpo, o tempo, a impermanência, a palavra, a água, a memória, a morte, a figura masculina, o mar -, essa sétima obra da poeta é o organizada em quatro partes – “A porta de saída”, “Postais de parte alguma”, “Noções de linguística” e “Parar de fumar”.
Em desde poemas de amor a outros atravessados pela perda e o luto, em “A porta de saída”, a primeira parte do livro, ao mesmo tempo em que a passagem do tempo e a morte ganham evidência, os versos dão conta da vida armando sua vingança, como afirma um verso de “Finados”. Tema recorrente, a morte aparece, além de “Finados”, em um belíssimo poema sem título (“este ano você não veio/ justo no primeiro ano de sua morte/ você não deveria faltar// estamos todos reunidos em torno/ da fogueira do seu nome”).
Palavras simples e de forte introspecção trazem o tema da infância marcando a passagem do tempo (“de minha parte matei uma criança:/ uma menina morreu em mim/ por onde vou carrego/ seu cadáver”).
Usados para desdobramentos nos poemas da autora, poetas e ficcionistas, como W.G. Sebald, Manuel Bandeira, Giuseppe Ungaretti e Philip Larkin, são citados nas epígrafes dessa primeira parte.
Um poema sem epígrafe ou dedicatória contém rastros da influência de Carlos Drummond de Andrade. O poema “Quatro pedras” traz um diálogo com o poeta, mineiro como Ana Martins Marques, em versos que dispensam citação ao autor: “No meio do caminho/ a falta da pedra/ (minerada):/ oco/ na paisagem que/ o olho/ fatigado/ (como a um cisco) / não esquece”. Drummond já marcava presença no primeiro livro da poeta, “A vida submarina”, publicado pela Scriptum em 2009 e reeditado em 2021 pela Companhia das Letras, no poema “O lutador”: “Atingidas em combate/ as palavras oferecem/sua outra face.//São poucas, eu muitos.//Da luta vã/resta a manhã”.
“Quatro pedras” também faz referência a um poema da polonesa Wislawa Szymborska, em que ela se dirige a uma pedra. Intitulado “Conversa com a pedra”, na tradução de Regina Przybycien, em Poemas (2011), ele conclui assim: “Bato à porta da pedra./ Sou eu, deixe-me entrar./Não tenho porta – diz a pedra”. Ana Martins Marques encerra o seu poema com:
“À porta da pedra/a poeta/posta-se/quer entrar/no mundo mudo/com palavras/deste mundo/ quer chamar o sem nome/pelo nome/estar de visita/onde ninguém mora/a pedra é fechada por dentro/só pode abrir-se/multiplicando-se/a poeta bate/bate repetidamente/à porta do que não tem porta.”
O tema da viagem e dos lugares permeia os poemas da segunda parte (“Postais de parte alguma”). O poema “Minas à beira-mar” revisita a fixação dos mineiros pelo mar. É irônico o olhar da poeta sobre as viagens. Não há as promessas de felicidade, de busca interior e de encontro consigo mesmo como nos anúncios publicitários, em alguns livros de autoajuda e em alguns poemas: “Não te enganes: viajar é aborrecido/ Num ponto, ao menos, todos os lugares/ se parecem: neles já se passou/ algo terrível. / As viagens cansam/ e são tristes”.
“Aqueles que nunca viram o mar/ que ideia farão do ilimitado?”, perguntava a poeta em versos de O livro das semelhanças (2015), em que também manifestava uma rejeição confessa às viagens: “Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem”.
Intitulada “Noções de linguística”, a terceira parte traz poemas relacionados com a língua, a linguagem e a tradução, que se apresenta como uma reescritura do texto estrangeiro. “Você se dá conta/ de repente/ de que muitos dos poemas que ama/ foram na verdade escritos/ por seus tradutores”. Também o potencial inventivo das traduções e da linguagem surge em poemas como: “Somos como duas línguas estrangeiras/ em contato/ influenciando uma à outra/ fazendo empréstimos e trocas há tanto tempo/ que nem sempre se sabe quem tomou emprestado/ de quem/ como é comum entre amantes/que compartilham uma biblioteca/ duas línguas cheias de palavras/ que se escrevem de forma idêntica/ e se pronunciam de forma ligeiramente diferente/ […].”
Uma irônica reflexão sobre o tema da tradução já estava presente em O livro das semelhanças (2015), no poema “Tradução”: “Este poema/ em outra língua/ seria outro poema// um relógio atrasado/ que marca a hora certa/ de algum outro lugar// uma criança que inventa/ uma língua só para falar/ com outra criança// uma casa de montanha/ reconstruída sobre a praia/ corroída pouco a pouco pela presença do mar// o importante é que/ num determinado ponto/ os poemas fiquem emparelhados// como em certos problemas de física/ de velhos livros escolares”. A ironia permeia também o poema sem título, em Risque esta palavra (2021): “Por exemplo/ alguém traduziu um poema/ e introduziu nele um vulcão/ que não havia no original/ por causa da métrica ou da necessidade/ de uma rima/ alguém acrescentou num poema um vulcão/ que antes não existia/ (ou uma mosca, uma raposa, ou foi uma cicatriz que migrou da mão esquerda para a direita/ como luvas vestidas errado/ ou maio se tornou setembro/ pelo mero acaso das localizações geográficas/ e porque para o poema era necessário/ que fosse primavera/ ou ameixas foram trocadas por lichias, porque ameixas por aqui/ quase só são consumidas secas/ e era preciso uma fruta/ doce e fria)./ É assim mais ou menos desse modo/ que as pessoas se relacionam/ com as coisas/ sempre.//
Em “Silêncio”, Ana Martins aborda a sempre problemática questão do que pode ou não ser dito por meio das palavras:
“Toda fala nasce com a cicatriz do silêncio/ que foi quebrado// Não há palavra que não seja marcada pelo silêncio/ como camisas que secaram/ presas no varal”.
No poema “Prosa (II)”, ela escreve sobre escritor chileno Roberto Bolaño. Apesar de ser reverenciado principalmente por sua prosa, que tem no livro póstumo 2666 seu reconhecimento máximo, Bolaño se considerava, antes de tudo, um poeta. “É possível que os poemas sobrevivam/ como fantasmas de poemas/ assombrando os romances”. Há nesse poema uma ironia sobre o baixo valor monetário do fazer poético: “Há quem acredite/ que o autor trocou/ a miséria da poesia/ pela mercadoria da prosa”.
A quarta e última parte (“Parar de fumar”) traz um poema em que Ana Martins Marques relembra uma foto de Wisława Szymborska, fumando na cerimônia em que a poeta polonesa recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1996: “A cabeça jogada para trás/num vestido tabaco/ escuro/ em meio à multidão um pouco/ desfocada/ com os olhos abertos/ segurando um cigarro/ ela sopra a fumaça para cima// A afronta que é uma velha/ a fumar”.
Reconhecida como um dos nomes mais importantes da lírica contemporânea brasileira, Ana Martins Marques tece uma produção que vai durar muitos anos.
* * *
Nascida em Belo Horizonte, em 7 de novembro de 1977, a escritora é doutora em literatura comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi vencedora do prêmio da Biblioteca Nacional, com Da arte das armadilhas (2011), finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012 e vencedor também do Prêmio Alphonsus de Guimaraens. Com O livro das semelhanças (2015), foi vencedora do terceiro lugar no Prêmio Oceanos.
A poeta publicou também Duas janelas (2016), em parceria com Marcos Siscar; Como se fosse a casa (2017), com Eduardo Jorge, e O livro dos jardins (2019). Esses três últimos títulos têm em comum o fato de terem sido desenvolvidos a partir de projetos formalmente estruturados.
Duas janelas surgiu de um convite da editora Luna Parque, e foi todo escrito num processo de diálogo com os poemas do Marcos Siscar, mesmo que esse diálogo nem sempre seja muito explícito. Do mesmo modo, Como se fosse a casa também se faz como uma espécie de correspondência com o poeta Eduardo Jorge. Nos dois casos, houve um processo de escrita com ou a partir das palavras do outro.
No caso de O livro dos jardins, os poemas que integram o livro foram escritos em momentos distintos, mas tematizam sobre o jardim, as plantas, o cultivo.
Já Risque esta palavra se configura enquanto uma “coletânea de poemas”. Traz textos produzidos sem um recorte temporal específico ou mesmo uma única temática.
Em 2020, Ana Martins Marques teve poemas adaptados para música e vídeo em Ensaios de Morar, iniciativa desenvolvida pelo Projeto Concha e pelo Instituto de Cultura da PUCRS.
Relançado pela Companhia das Letras em 2021, tendo sido editado em 2009 pela Scriptum, A vida submarina reúne os poemas premiados no concurso “Prêmio cidade de Belo Horizonte” nos anos de 2007 e 2008.
MARIA ALICE BRAGANÇA
alicelabirintos.blogspot.com) e participa do coletivo feminista Mulherio das Letras (RS, Portugal e Europa). Tem poemas publicados nas revistas literárias Gente de Palavra, Literatura & Fechadura, Mallarmargens, Germina e InComunidade (Portugal) e participou, neste ano, do Festival Internacional de Poesía – FIP Parque Chas Luis Luchi 100 Años (Buenos Aires, Argentina).
Nasceu em Porto Alegre, RS. Poeta e jornalista. Diplomada em jornalismo pela FABICO/UFRGS, mestre em Comunicação Social pela PUCRS, redatora e editora de emissoras de rádio e de jornais, como Correio do Povo e Zero Hora, foi também professora de comunicação social e artes visuais na Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, RS. Foi diretora de comunicação da Associação Gaúcha de Escritores (AGES), gestão 2019/2020. Publicou poemas em jornais, em antologias nacionais e em Portugal, além dos livros de poesia: “Quarto em quadro” e “Cartas que não escrevi”. Mantém, sem periodicidade, o blog “Alice & Labirintos” (