Os mugidos. Eu me lembro dos mugidos. Logo cedo, antes do sol despontar no horizonte, os mugidos eram como uma sinfonia. Um conjunto de diferentes timbres que se iniciava sem maestria alguma. Não havia nenhum motivo, tampouco tinha planejamento aparente. Era natural. Ao fundo do conjunto de vozes, como num interlúdio, apenas o acompanhamento improvisado do cantar dos galos e dos quero-queros. Sem perceber, o recital madrugador terminava por ter uma função nada singela: acordar a estância para o dia que se iniciava. Aos poucos a vida se despertava, os cães latindo, uns terneiros correndo de um lado para o outro, enquanto outros guachos ficavam parados chamando pelas tetas das mães.
O cheiro dos fogões à lenha, os sons das casas abrindo suas janelas de madeira, as cuias sendo limpas e os mates refeitos. Assim era o nosso amanhecer na estância.
No campo, na metade do caminho entre as casas e o horizonte do pampa, dava para ver um casal de zorros curiosos que ficava sempre observando de longe, pareciam imaginar a vida sem a presença dos cachorros ovelheiros, sem as casas, sem os homens. E no dia seguinte, tudo se repetia. Ah, como era bom ter aquela rotina do despertar ao som dos mugidos. E quando as coisas reduziam os sons, depois da gadaria em orquestra, uma sensação de calor que eu me lembro é do sol. No início, fraco, um facho tênue, depois, crescendo, subindo, aquecendo e luzindo vida por sobre tudo. Lembro da minha mãe. Que saudades sinto da minha mãe. Muitas vezes eu via ela quieta, indiferente ao mundo da estância, como se estivesse bem longe, numa distância de sentimentos que só pode ser medida pela régua do olhar vazio.
Na metade da manhã, ela ficava parada perto da porteira, observando o campo, buscando por algo que nunca entendi. Talvez, esperasse pelo retorno do meu pai. Quem sabe, estivesse buscando pelo meu irmão.
Se vocês tivessem conhecido ele, o meu irmão, certamente ficariam impressionados. Ele era o mais forte. O mais corajoso. O mais inteligente. O mais rápido. Mas de nada adiantou todas as suas qualidades. Embora minha mãe acreditasse que ele ficaria para sempre na estância, terminou que ele foi outro que também sumiu na estrada durante um inverno.
Não conheci meu pai. Quando eu nasci, ele já tinha partido com os homens e a tropa. Minha mãe, assim como as outras que ficaram na estância, teve por remédio para a ausência o mesmo que as demais, apenas a ilusão da espera. Meu pai foi o primeiro. Saiu andando de cabeça erguida, minha mãe ficou na porteira, com o olhar nele, até que ele sumiu no horizonte. Um tempo depois, foi a vez do meu irmão partir. E ela ficou na porteira de novo. Esperando e esperando. Dia após dia eu vi seu olhar distante. Diariamente ela esperou na porteira por meu pai e meu irmão. Eles nunca mais voltaram. Quando eu e meu outro irmão tivemos idade e ganhamos corpo, também pegamos o rumo da estrada. Essa era a nossa sina, a tropa e a estrada.
A minha mãe, coitada, no dia em que a gente partiu, ela foi caminhando ao nosso lado. Andando pelo outro lado da cerca, ela foi desviando dos cupinzeiros, tropeçando nos galhos, pisando nas urtigas. E ela foi nos olhando quieta, um olhar cego, como se enxergasse nosso futuro. Num caminhar triste, ela foi seguindo a cerca e foi se despedindo do jeito dela. Quando chegou na divisa do campo, desolada, sem poder mais nos acompanhar, imóvel, ficou nos olhando. E ela não disse nada.
Parada no canto da cerca. Tenho certeza que ela sabia. E por saber é que ela preferiu ficar calada.
Adão, o capataz, chamou um velho peão posteiro, o Januário, que organizou todo o grupo. Saímos pela porteira do piquete do banhado. Quando pequeno, muito brinquei ali naquele lugar encantado. Nossa, como era bom de ficar as tardes no banhado, correndo, pulando. No banhado havia várias touceiras de capim-dos-pampas. Sabe o capim que tem as partes longas, finas e amareladas? Pois no campo do banhado eles dominavam tudo, com suas hastes douradas e cumpridas que contrastavam com o pasto verde. Lembro quando o sol iluminava as pontas do capim, deixando-o brilhante e jogando sobre a estância um sentimento de tranquilidade. E na tropa, nós seguimos pelo meio do campo do banhado, numa linha reta até a estância vizinha. Eu fui segurando o passo, não queria andar na frente e nem pelos lados, nunca gostei de ficar na lateral do grupo. Assim, ninguém percebeu quando eu me coloquei na parte de trás. Meu irmão, chamei-o com o olhar, mas ele não quis ir junto comigo, preferiu ir pelo lado direito da tropa.
Pelo caminho, sempre tinha alguém tentando voltar, desertar daquela injusta tropa. Mas era o tempo de correr e logo um dos homens do Januário fazia voltar. O Preto, filho da minha tia, tentou fugir antes do pontilhão do Camotim, foi laçado com precisão pelo Euclides, que era peão caseiro até o início do inverno, e ganhou três relhaços no lombo. Voltou contrariado, mas voltou.
O nosso grupo foi ganhando tamanho. Conforme nossa coluna cruzava os campos, íamos arregimentando outros que, assim como nós, precisavam enfrentar a dura jornada. Cheios de medo eram os olhares dos novatos. Medo e coragem amanunciados pelo caminho, é bem verdade. Pois a coragem é aquilo que a gente faz quando tem medo. Agora, olhando para trás, percebo quão ingênua era a coragem que achávamos existir em nossos corações.
Na Estância do Pindaí, o filho do Coronel Bento se uniu ao grupo. O Coronel Bento era veterano de batalhas acontecidas lá nos anos 1883, tinha lutado com o avô do capataz, o Adão. O filho do Coronel não tinha experiência com nenhuma guerra, era de uma geração anterior a de Adão. Seria a primeira vez dele naquele tipo de jornada, substituindo o pai, que tinha viajado para Cruz Alta. Junto do filho do Coronel Bento, mais 180 se juntaram ao cerne da tropa. No total, depois de cruzarmos por cinco estâncias, nosso grupo chegou aos mil.
Nos deslocamos sem parar até o anoitecer. Os homens estavam cansados, todos estávamos exaustos. As risadas, já eram escassas.
Alguns dos homens, com suas capas pretas, moviam-se de um lado para o outro, mantendo a tropa sempre organizada. As capas, longos ponchos feitos de lã, além de proteger os corpos contra o frio da jornada, estendiam-se também sobre o lombo dos cavalos e, na hora do acampamento, serviam como cobertor sobre os corpos gelados. O nosso deslocamento era lento e planejado, sempre que chegávamos nos locais dos acampamentos, tudo já estava pronto. Na frente da tropa, sempre estava um grupo de três homens que ia numa carroça, levando a comida, a água e os demais suprimentos. Eles chegavam no lugar da parada, montavam o acampamento e esperavam pelos demais com o fogo aceso e a comida pronta.
A primeira noite foi extremamente fria. Noite de lua cheia e poucas nuvens. E como um farol no céu, a lua deixava o campo todo num clarão.
Eu quase não consegui dormir, embora estivesse cansado, fiquei a maior parte do tempo acordado. Era como se meu corpo não conseguisse relaxar. O meu coração estava angustiado. Sentia saudades de casa, sentia falta da minha mãe, tinha medo pelo meu irmão. É curioso como as coisas são, quando eu estava na estância, queria ganhar o mundo, sair pelos campos, conhecer outros lugares. Agora que saí, sinto saudades do que eu tinha, sinto-me preso nesta vastidão de campo.
Na segunda noite, depois de atravessarmos dois arroios, chegamos todos molhados ao local do acampamento. Por conta disso, o fogo foi feito com bastante lenha de angico seco e espinilho verde. A fogueira se transformou num grande luzeiro que podia ser visto a quilômetros de distância. Do fogo, tive apenas a fumaça, não senti nada do seu calor. Quando amanheceu, uma camada branca de geada cobria toda a planície pampeana. No horizonte, para o lado em que o sol nascia, dava para ver um risco no campo, era uma estrada. Ela estava distante, toda tomada pela polvadeira. O pó que se erguia era do caminhar de um outro grupo que seguia na nossa frente, era uma tropa do tamanho da nossa e que, pelo jeito, decidiu sair antes do sol despontar. Certamente, tinham hora certa e data para chegar no final da viagem. Do nosso acampamento, víamos a grande nuvem de poeira ficando iluminada pelos raios de sol, lembrei-me das pontas do capim-dos-pampas. Tudo parecia tão lento. De longe, era muito bonito de se ver.
Alguns de nós, os mais jovens, ficaram impressionados com a imagem dourada. Eu não. Não fiquei impressionado, pois eu já havia estado ali. Já tinha feito esse caminho e visto outras nuvens de poeira parecidas com aquela. Exatamente um ano antes. Sim, no último inverno eu também tinha partido da estância, também me despedi da minha mãe. Tomamos o rumo do campo logo após uma noite inteira de temporal. Pois era assim que deveria ser, “Deus fez o mundo assim”, era o que diziam os peões. O nosso destino de ir para a estrada é para manter os nossos em casa, “bem protegidos dentro da estância”, eu tinha a ilusão de acreditar. E agora eu estava de novo ali. Pernoitando no mesmo lugar em que, primeiro, o meu pai e, depois, o meu irmão dormiram. Debaixo das mesmas estrelas e em cima dos mesmos pastos. Eu gostava de pensar que no final desta jornada, encontraria eles. E assim, com esperança, eu subi aquela mesma coxilha. A diferença é que na minha primeira vez, subi numa manhã de chuva e muito barro.
Naquele dia de chuva, muitos de nós, vendo a dificuldade da marcha, tentaram fugir, correr para o campo, mas como sempre, foram trazidos de volta. Quando chegamos do outro lado da coxilha, deparamo-nos com uma visão que eu nunca tinha presenciado. Era um rio enorme, totalmente cheio. O famoso rio Quaraí tinha se transformado, de um rio pequeno, ele avolumou-se de tal forma que nem suas curvas eram visíveis. Nas margens, via-se os campos alagados até o alto das coxilhas. A enchente era tão grande que, ao nos aproximarmos, fomos cruzando por muitos animais fugindo na direção oposta. Os bichos cruzavam pela tropa com os olhos assustados. Eram raposas, mulitas, cobras e zorrilhos. Todos fugiam em desespero. Nas árvores costeiras, cujas copas ficavam quase cobertas pelo rio, dava para ver inúmeros animais afogados, trancados em galhos. Uns restos de casas cruzavam pela correnteza. Não havia o que fazer, senão voltar para a estância, o rio Quaraí não permitiu nossa passagem. Não foi desta vez.
Um ano se passou e aqui estou eu de novo. Meu irmão é mais jovem do que eu, mas não demonstra menos galhardia. Ele segue firme com a tropa. Às vezes, tenho a impressão que ele está se divertindo. A jornada até aqui foi privativa de várias coisas que sempre tivemos, comida, água e uma boa noite de sono.
Aqui, livres no meio do campo, estranhamente, encontramo-nos privados dela, da liberdade.
Quando iniciamos a subida da estrada da polvadeira, o sol do meio dia já castigava nossas costas, por vezes, até esquecíamos que de noite tínhamos padecido de frio. Um dos nossos mais novos, que por conta das manchas na pele era chamado de Malhado, caminhava tranquilo, distraído com os próprios pensamentos. Ele andava ao lado do meu irmão, foi quando enfiou o pé num buraco no chão, quem vinha atrás não percebeu e vários se amontoaram e o empurraram para a frente. Eu, que andava uns seis corpos atrás na fila, consegui escutar o som do osso da canela se quebrando. Foi horrível. O filho do coronel e o nosso capataz ficaram com ele, enquanto seguíamos subindo a coxilha. A tropa não pode parar, diziam os homens. Cerca de uns dez minutos depois, quando já descíamos do outro lado da coxilha, ouvi o som de um tiro. Nunca mais vi o Malhado.
Quando chegamos na beira do rio Quaraí, ele estava muito baixo, corria calmo. Um rio muito diferente do que eu tinha visto no ano anterior. Havia uma marca bem nítida por onde as tropas cruzavam, um trajeto feito de pasto seco e amassado pelas pisadas. No rio, a água turva denunciava o caminho pela mancha de barro do fundo. Fomos cruzando aos poucos. Para organizar o grupo, nas margens do rio, uma fileira de cavalos de homens de capas pretas faziam um corredor. A tropa foi cruzando com cautela, mas bastou que o primeiro se aventurasse com velocidade que todo o resto cruzou. Era o efeito da manada.
Eu vinha sem pressa, andando por último. Quando cheguei bem no meio do Quaraí, onde o canal do rio faz seu leito, eu pisei numa pedra e escorreguei para o lado, em seguida, caí num buraco. Fui até o fundo, quando eu voltei, fui empurrado na direção da margem pelo cavalo do capataz. Assim que toquei no chão novamente, consegui andar com firmeza. Aquele passo do rio Quaraí era milenar, coisa antiga, mas ainda assim, um lugar muito perigoso. Na volta, bem que poderíamos cruzar por outro lugar, pensei enquanto caminhava completamente molhado.
Depois do rio, andamos por seis horas sem parar. O campo linear, o horizonte sempre distante e a falta de matos ao redor davam a impressão de que quase não tínhamos nos movimentado. A terceira noite começou cedo. Acampamos pouco depois do meio da tarde, pelo que pude perceber, a ideia do capataz era descansarmos bem e nos alimentarmos bastante. Aquele era um bom lugar, tinha água e sombra. Os peões jogaram cartas e fizeram comida em meio ao som de uma gaita. Quando o sol se pôs, a temperatura despencou rapidamente. Eu não liguei, nenhum de nós ligou. Estávamos tão cansados que dormimos a noite inteira.
Quando amanheceu, partimos num passo firme e acelerado. O céu avermelhado indicava o lado. O nosso destino era seguir os homens da frente. Meu irmão, que há muito eu não enxergava, fez-me andar preocupado pela sua ausência intempestiva. Onde estará ele? Procurei-o por bastante tempo, quando de repente, ele surgiu do meu lado. Ele estava ofegante e tinha o olhar assustado. Com o movimento do pescoço, pediu para que o seguisse.
Andei com ele até a lateral da tropa, fomos empurrando e passando. Somente ao chegar na última fileira, foi quando eu vi o campo. Era bonito e ao mesmo tempo assustador. Era como se no verde do pasto até o horizonte, tudo estivesse pintado de branco. Cada ponto branco que eu enxergava era um osso, um pedaço de alguém.
A impressão era de que os ossos tinham sido jogados no campo, esparramados num grande cemitério à céu aberto. Crânios, fêmures, costelas ainda com restos de carne, tudo exposto ao sol. Milhares. Milhares não, centenas de milhares de ossadas.
Era um cemitério onde o túmulo era o campo. Caminhávamos em silêncio por uma trilha larga de chão batido, deslocávamo-nos como se a tropa fosse um corpo único andando por entre as ossadas. E de quando em quando, algum pedaço de esqueleto era chutado ou esmagado sem querer, quebrando o silêncio. Quando percebemos, o campo das ossadas já tinha ficado para trás e estávamos cruzando por uma porteira branca. Os homens pareciam felizes, afinal, tínhamos chegado no destino.
Cruzamos por um grande piquete e fomos deixados num local próximo de dois galpões. Por estarmos na lateral da tropa, eu e meu irmão acabamos ficando bem na frente da porteira. De repente, três homens chegaram onde estávamos e separaram a tropa em quatro grandes grupos. Eu e meu irmão fomos colocados no primeiro grupo e, depois de sermos conduzidos pela porteira, ficamos parados e esperando por bastante tempo. Nenhum de nós entendia o motivo de tanta espera. De repente, o Januário apareceu e nos levou para outro lugar, mas agora em pequenos grupos de cinco, tive a impressão que estávamos sendo contabilizados. Fomos caminhando em fila. “Será que nos darão água e comida?” Eu me questionava. Meu irmão estava com muita sede e a minha boca também estava seca. Alguns de nós estavam bastante eufóricos. Afinal, nunca, ao menos os que saíram comigo lá no início da jornada, tinham chegado tão longe.
Em nossas vidas, jamais imaginei que eu e meu irmão pudéssemos ficar tão distantes da nossa mãe e da estância.
Enquanto éramos levados junto com mais três, era possível ver os homens conversando, pareciam tranquilos. E tudo foi ficando diferente conforme nosso grupo foi andando. No ar pairava um cheiro estranho, um odor de urina, às vezes, um cheiro de fezes e mais alguma coisa que eu conhecia, mas não sabia identificar. Havia uma grande estrutura, um prédio parecido com o galpão lá da estância, só que bem maior. Ao lado do prédio, deparamo-nos diante de um corredor com cercas de madeira e um pequeno portão. Meu irmão e eu fomos seguindo o fluxo da fila.
Assim que um de nós andava, o portão se fechava e não era possível ver mais nada do que acontecia do lado de lá dele. Os homens com suas capas pretas, formavam pequenos grupos, eles cantavam e davam gargalhadas. Quando percebi, meu irmão cruzou pelo portão, que se fechou rapidamente na minha frente.
Havia uma sensação de mal-estar que lentamente foi tomando conta de mim. No chão tudo estava úmido, o estranho é que não tinha chovido, no entanto, muitas poças se acumulavam no barro.
Ao lado da cerca de madeira, Adão, Januário e o filho do Coronel Bento conversavam amistosamente com um outro homem. Ao fim da conversa, apertaram as mãos. Depois disso, não consegui mais ver o Januário. Adão apareceu na beira da cerca, ficou me olhando. Ele me encarava, parecia ter o mesmo olhar da minha mãe. Um olhar cego, triste, distante. Foi quando eu percebi que eu não pisava em poças de água. O cheiro que se misturava no odor de fezes e de urina era, realmente, um odor conhecido. Era o cheiro de sangue.
Eu pisava em sangue. Muito sangue. O portão se abriu, senti a ponta de uma madeira cutucar minhas costas. Dei dois passos e o portão se fechou atrás de mim.
Após uma curva, entrei numa área bem apertada, com muros de tijolos dos lados. Foi quando consegui ver o meu irmão, ele estava parado mais à frente, num pequeno brete. O corredor em que ele estava era muito apertado, era impossível para ele tentar olhar para trás ou virar o corpo. Meu irmão parecia assustado, ele tentava caminhar para de volta, mas não conseguia, tinha uma madeira que o impedia de retornar. Havia um homem sobre o brete, pisando no alto dos dois muros. O homem estava com as pernas abertas, o meu irmão estava parado embaixo dele. De repente, o homem levantou os braços em direção ao céu e baixo com muita força, batendo com uma marreta na testa de meu irmão, que caiu no chão com os joelhos dobrados. Vi seu corpo tremendo e vi ele ser arrastado por cordas para uma área aberta no fim do corredor.
Senti uma dor forte ao ser empurrado por um ferro pontiagudo na direção do brete. Eu era o próximo.
Enquanto andava, pude ver vários corpos no chão, as barrigas sendo abertas, as vísceras, o cheiro do sangue tomando conta de tudo. E eu me enxerguei pequeno, correndo numa tarde ensolarada pelos campos do banhado. Eu vi minha mãe me cuidando, alimentando-me na sombra do umbu. Vi ela parada em silêncio ao lado da porteira. Vi ela fazendo isso por anos. Anos e anos, observando as tropas partindo da estância e levando os seus filhos. E num repente, os animais todos começaram um lamento. Jamais esquecerei o som dos mugidos.
Os mugidos eram a parte íntima da sinfonia triste de uma marcha fúnebre. Cada mugido, como uma nota melancólica destoante, era a vida em desafino no timbre das despedidas. E por uma fração de segundos, respirando em meu último minuto, eu vi na minha frente, novamente, o campo da minha infância, o campo do banhado colorido pelo capim-dos-pampas iluminado.
Senti o cheiro do entardecer lento da estância, o cheiro da fumaça dos fogões. E então eu compreendi a minha sina. Ela era triste, deveras, sempre foi assim. E tudo ficou tão claro quanto a última noite de lua. E eu entendi o motivo que fez a minha mãe não nos dizer nada. Ela sabia quem nós éramos. Ela sabia o destino da tropa. Ela sabia que ali era a charqueada e que nós tínhamos almas sob os couros.