A experiência clínica na vida de uma psicanalista pode situar-se no campo de uma técnica, apenas. Ou pode constituir-se na expressão de uma ética. Para essa segunda opção algumas condicionantes são sustentadoras desse ofício. E uma delas é a atualização de sua práxis em consonância com a subjetividade de sua época. Essa premissa no meu caso tende a atender o alcance da política, na conceituação desta como agente de transformação de uma cultura.
Situando meu ofício neste sentido, constantemente busco lançar um olhar suspenso sob a minha formação, como psicóloga e psicanalista. Estudei clássicos, e sempre entendi que esse lugar de epistemologia denotava a importância da sustentação de um fazer.
Nesses encontros a maioria dos nomes eram homens, brancos, hetero, europeus e claro, cisgênero. As raras mulheres que fui encontrando ao longo de minha formação contribuíam com um lugar comum( e esperado pela sociedade) às mulheres(mesmo as da minha geração): a maternidade e a infância.
Ao longo dos quase 20 anos de formação fui reconhecendo uma certa reprodução do lugar social que a mulher ocupa, também na construção do saber que sustenta a minha prática. Por 16 anos colaborei na formação de psicólogos e psicólogas, em curso de graduação e pós-graduação. Na medida em que os anos passavam, reconhecia a necessidade de regressar à minha formação para encontrar outras práxis possíveis para aqueles e aquelas jovens que por mim passavam.
Minha contribuição precisava dialogar com a minha época. Passei a pensar a psicanálise através da premissa de psicanalistas mulheres, das questões que envolvem gênero e seus desdobramentos como por exemplo o racismo.
Na busca por essas condições arejadas de um saber, e consequentemente um fazer, encontrei resistências. Críticas opressoras. E inclusive alguns embates violentos. Por vezes, percebi a construção de um diálogo a partir da experiência como mulher psicanalista como ameaçadora. E de fato era. E é. Pois desconstrói um lugar de poder que representa o ímpeto de uma tradição.
Não me refiro aqui apenas( o que já é muito) a tradição machista, patriarcal e falocentrica. Mas também(e principalmente) a cultura colonizadora que organiza a sociedade brasileira.
Numa cultura que observa a invasão territorial, a violência étnica e os conchavos políticos como garantias de direitos e sustentação de um país; o que se pode dizer sobre a violência que as mulheres sofrem? O que se pode dizer sobre o descaso, a opressão e a negligência que mulheres negras, lesbicas, bissexuais e transexuais sofrem? O que se pode dizer de uma cultura que sustenta o lugar de posse, de tomada de um lugar, e opressão do diferente como garantia de existência?
Na escuta clínica por vezes se escuta uma frase incômoda, em tom de questionamento: será que isso acontece comigo porque sou mulher?!? O “isso”, nesse caso, geralmente é observado como lugar de descaso, desvalorização, destituição de um saber e/ou opressão de um ideia desbravadora de saberes. A política afirmativa que embasa a função das mulheres na sociedade, e especialmente no mundo do trabalho, tem dado à elas(a nós) a condição de chegarmos a determinados lugares. Estabelecermos determinadas frentes e posicionamentos. Mas não encontra eco na interlocução com aqueles que poderiam, ali na lida diária oferecer o lugar da construção. O lugar da diferença. O lugar do crescimento e reposicionamento desse saber colonial que habita o lugar que as mulheres e tudo aquilo que expressa o feminino, poderia ocupar em nossa cultura.
Movimentos sociais tem papel primordial na busca pela sustentação desses lugares. Os feminismos são força preponderante neste contexto. Mas reconhecer a importância do acolhimento na diferença seria ponte estrutural renovada, frente a importância das desconstruções opressoras. Onde estão os homens, e as expressões masculinas no debate público sobre as violências de gênero?
Invariavelmente vemos os homens acuados frente à possibilidade de acolhimento de uma mulher, na batalha por sobrevivência(seja física, seja psiquica). Os homens apreendem sobre sua sexualidade, na maioria das vezes, com outros homens. Ou seja, há uma construção do que seria “seu papel” a partir do lugar de semelhança.
Isto não poderia ser diferente, num mundo que reconhece seu lugar como central (falocêntrico). Sem que ao homem aja uma exigência maior do que o percurso de buscar seus ideais. Isto em especial ao homem branco, cis, hetero, de classe média. Aliás,exatamente como os clássicos aqueles que eu apontei como fazendo parte da minha formação. Mesmo eles, homens de vanguarda na psicanálise, deixaram escapar de si, em muitos momentos da história, a experiência de crescimento a partir do debate com a diferença das mulheres e do feminino.
Ao homem coube na história da humanidade oprimir as mulheres. Ou, abster-se de reconhecer um lugar de acolhimento e luta, ao lugar legitimo de direitos e conquistas que as mulheres podem, querem, merecem e tem direito de ter. E se uma mulher está na eminência de sofrer violência, ou está em situação de violência, frente ao grupo de homens, a tendência a falar mais alto é a broderagem masculina. Tudo em nome de justificativas que passam pelo lugar social que os seus “colegas” ocupam, seja pela idade, seja pelo respeito à liberdade de expressão,ou ainda o lugar paterno que alguns podem vir a ocupar.
A condição de transformação social, que sustenta o meu lugar ético, enquanto psicanalista, reconhece a importância da diferença para bancar a luta das mulheres por dignidade, vida e condições básicas de existência. Por isso, enquanto além de violentar as mulheres, os homens que assistem as violências, permanecerem calados, seja por uma condição ou por outra, a transformação social não ocupará o lugar de “virar o jogo”.
Precisamos todos, todas, falarmos e debatermos sobre feminismos. Precisamos todos e todas, desbravarmos condições de existência. Precisamos todos e todas do reconhecimentos que somos sim condescendentes com a dor nas/das mulheres. Não fosse assim, a ciência já teria avançado efetivamente em adoecimentos da vida sexual das mulheres. Mas… precisamos acima de tudo que os homens reconheçam o seu papel opressor e conivente com essa condição.
Os homens precisam romper seus lugares narcisicos melancólicos, e assumirem suas falhas medíocres. A condição de Reis ou de filhos oprimidos não lhes cabe mais. Já caiu por terra. Está demodê. Porque nós mulheres só desejamos ser mães de nossos filhos e filhas , ou pet’s, ou projetos e, ainda assim, por escolha e não por opressão.
Enquanto isso seguimos dizendo, gritando e subvertendo a violência explicita, velada, ou conivente: estupro é tortura! E não aceitamos mais nenhum tipo de tortura!
Afinal, sou porque somos!
Graziela Miolo é Psicóloga e Psicanalista. Especialista em Clínica Psicanalítica, Mestre em Psicologia Clínica. Experiência na docência superior por 14 anos, entre cursos de graduação e pós graduação. Amante de leitura e de música. Sou inquieta com tudo que mobiliza e toca o ser humano e suas complexas formas de expressão. Me considero alguém atenta à vida. Mulher e mãe.