A pele gelada de Maria Simões era o aviso da náusea. O frio da pele contrastava com o morno do suor escorrendo pelo centro de sua testa. A gota salgada entrava no olho e sequer podia ser retirada, Maria estava amarrada num poste na Paróquia de Casas Novas, próximo a Coimbra. Maria Simões estava cansada, pudesse, escolheria a morte ali mesmo. Cercada por pessoas que a observavam, algumas que ela conhecia, outros não, Maria era solidão. Eram jovens, velhos, homens e mulheres, uns com tochas feitas com panos embebidos em gordura, outros apenas com sorrisos, todos querendo o mesmo: assistir a dor de Outro ser humano.
Na frente do prédio ao lado da Igreja, um padre discursava sobre o amor de Deus para com os homens, dizia algumas frases em latim enquanto algumas crianças brincavam animadamente de jogar pedras e pedaços de bosta seca de cavalo no rosto de Maria. Era 1652. Maria Simões era uma mulher viúva, tinha apenas 30 anos de uma vida feita em pobreza e medo.
Em Portugal ela era uma cristã nova, seja, uma judia recém-convertida ao cristianismo, logo, ao catolicismo. Seu pai era um tintureiro e a mãe uma dona de casa. Maria Simões estava presa pela Inquisição de Évora desde os 26 anos.
As últimas noites de torturas não foram suficientes para que eles compreendessem. Maria Simões já havia negado de tantas e diferentes formas o seu “contrato com o diabo”, mas de nada adiantava, negar era indiferente. E ela demorou para entender isso.
O povo das redondezas tinha certeza que Maria Simões era uma feiticeira poderosa. Diziam pelos becos que uma mulher com quem Maria havia discutido anos antes, logo depois morrera. E a morte seria culpa sua. Crianças recém-nascidas em São Martinho também morreram, obviamente que por causa de Maria e suas bruxarias. O povo de São Martinho de Bispo já tinha decidido: Bruxa.
Embora o arquétipo da bruxa dissesse que elas, as bruxas, eram mulheres fortes, más, com olhar de ódio e sorriso insinuante, o que se via em Maria Simões era uma pessoa frágil, pequena, com medo, enfraquecida e em pânico. Nada disso importava, pois mesmo que Maria estivesse ali, chorando e negando, implorando por sua vida, isso seria apenas mais um indicativo do ardil do pacto dela com o diabo. Tudo seria visto como uma mentira e a mentira era uma das principais características de Lúcifer e seus pactuados.
Maria Simões viu pessoas que ela julgava de confiança lhe traírem, sob juramento e diante dos inquisidores, mentiram diante dos seus olhos. No seu processo, texto feito por inquisidores do Santo Ofício na Inquisição de Évora (Processo 6823), os seus crimes são “judaísmo”, “heresia” e “apostasia”. No processo 4102 do Tribunal do Santo Ofício/Inquisição de Lisboa sua sentença consta como “Abjuração de veemente, cárcere a arbítrio, penitências espirituais, pagamento de custas.” (O processo de Maria e de centenas de outras pessoas pode ser facilmente acessado pela internet, na página do Arquivo Nacional Torre do Tombo de Portugal.)
Maria Simões foi açoitada por centenas de vezes enquanto andava pelas ruas de Coimbra. Os inquisidores portugueses não eram bestas ignorantes e iletradas. Pelo contrário, eram pessoas cultas e leitores ávidos dos manuais da inquisição. A população analfabeta acreditava em tudo que eles dissessem, afinal, eles tinham acesso ao conhecimento. Acreditava em cada pequena mentira.
Depois de açoitada, Maria Simões perdeu tudo o que tinha, casa, família, posses. Como parte da pena por bruxaria, foi degradada para o Brasil por cinco anos. Nunca mais retornou para São Martinho de Bispo.
Os inquisidores de Portugal eram leitores do Malleus Maleficarum (Martelo das Bruxas), um livro todo escrito em latim. O Malleus foi uma obra escrita em 1484 por teólogos dominicanos, também inquisidores da Igreja Católica, para servir de manual. Mas não um manual qualquer, um manual sobre como encontrar bruxas.
Noutras palavras, o “Martelo das Bruxas” era um manual da ignorância, do medo e da tortura. Malleus Maleficarum demonstra como a lógica patriarcal agia na idade média, em especial, sobre os fetiches masculinos baseados no medo ao que é diferente no ser feminino, o medo da mulher que quebrava com o padrão comportamental de uma sociedade machista e histericamente religiosa. Bastava uma mulher ter opiniões, ter atitudes, crenças ou roupas diferentes daquilo que os homens tinham como o certo e pronto, lá estava uma bruxa.
Estudos apontam que entre os séculos XIV e meados do XVII na Europa, a repressão sistemática ao espírito feminino e a liberdade queimou mais de cem mil mulheres. Uma tragédia sem precedentes, baseada em discursos de ódio e histeria moral. Mas sobretudo, ódio baseado em ignorância. Pouquíssimas pessoas tinham acesso à leitura, e se o latim era o idioma dominante na igreja, logo, também dominava as páginas dos livros. O problema é que os livros não eram coisas acessíveis ao povo, apenas uma elite religiosa concentrava o saber dos livros e, com isso, dominava o poder.
Se os livros foram responsáveis por divulgar ideias tão desumanas e que fizeram milhares de mulheres serem queimadas ou torturadas, os livros também tem o potencial oposto, a força de levar luz aos recantos mais sombrios de nossa sociedade.
Com a Reforma Protestante, o latim perdeu seu status de língua dominante e detentora do saber. Com isso, a bíblia passou a ser publicada em línguas vulgares, francês, inglês, alemão e ganhou novas interpretações. Daí, foi um pulo para que textos com temas variados surgissem, para que Shakespeare e toda uma trupe de autores levassem ao povo comum novas histórias e discussões morais. Com a gradativa universalização da leitura e a queda do latim como língua dominante nas publicações, o surgimento de novos escritores foi um processo natural de inclusão de pessoas no conhecimento.
O livro passou a ser visto como uma ferramenta para alterar a realidade humana, uma ferramenta popular e de baixo custo. “Saber é poder”, já escreveu o Francis Bacon, por isso, retirar esse poder da Igreja era uma tarefa que só poderia ser feita através da força da democratização do saber. Era preciso fracionar o poder.
Quando o conhecimento deixa de ser substrato apenas de um grupo de pessoas e passa a ser o solo fértil de uma pluralidade de indivíduos, ele se torna um poder democratizado e que vai de encontro aos discursos de pequenos grupos que tem ojeriza com tudo que é diferente.
Hoje, os livros cumprem um papel fundamental em nossa sociedade, os conhecimentos trazidos pelos estudos feministas, pelos estudos pós-coloniais, o trabalho dos historiadores, dos cientistas políticos, biólogos, físicos, neurocientistas, juristas, filólogos, filósofos e tantos outros, funcionam em rede. Uma teia de ideias, de conceitos e de visões de mundo que se conectam e se complementam em cada choque de ideias, e com isso, vão instrumentalizando as pessoas para pensar o presente, tendo como horizonte os erros do passado e o futuro como uma ideia possível.
O livro é, sem dúvida, uma das maiores invenções da humanidade, perdendo apenas para a massa de pastel uruguaio que é vendida no posto de gasolina perto de Quaraí.
Mas você deve estar ser perguntando qual o motivo de eu falar disso tudo, de medo de bruxas, de Maria Simões, sobre o poder e a importância dos livros? É que na verdade eu quero falar sobre um lugar que é importantíssimo para o conhecimento e que está sob ataque: A universidade pública.
É lugar-comum que o conhecimento deve ser a base de qualquer sociedade moderna que tenha pretensões de crescimento social e econômico em linhas democráticas. Se os livros são os portadores do conhecimento, certamente, eles devem ser de domínio público ou, no mínimo, de fácil acesso. Assim deve acontecer também com as escolas e com as universidades.
Neste aspecto, as escolas e universidades cumprem um papel fundamental na divulgação dos livros como fontes de conhecimento e na produção intelectual de novas obras. Logo, basta deixar que as pessoas acessem as universidades que elas terão acesso ao conhecimento. Certo? Não.
Acontece que o acesso ao conhecimento é um fenômeno novo na história do nosso país. Se compararmos a idade de nossas universidades com a de países vizinhos, veremos que chegamos muito tarde na dita modernidade. Por muito tempo as elites econômicas brasileiras foram uma ilha de letrados num mar de analfabetos. A ignorância como projeto político está em vigor em nosso país. A ignorância não é um dom, é um estado, uma situação que mantém inalterada a realidade para uma minoria em detrimento da maior parcela da sociedade.
Nas duas primeiras décadas dos anos 2000, o nosso país viu uma mudança drástica no perfil das pessoas que acessam o ensino superior. A inclusão de pessoas com deficiência, de pessoas pobres, de índios e de negros foi um marco em nossa ideia de futuro. Em pouco mais de uma década conseguimos modificar o perfil das pessoas que acessam o conhecimento acadêmico. Novos grupos de pessoas passaram a ocupar postos de trabalhos que eram ocupados quase que exclusivamente por pessoas de classe média e alta e com a pele branca. Mas nada disso importa.
Curiosamente, o comportamento de muitos brasileiros em relação as universidades é parecido com o comportamento das pessoas com tochas ao redor de Maria Simões. Não bastam as experiências internacionais apontando o papel central e estratégico das universidades no desenvolvimento econômico, as estatísticas que demonstram a importância social destas instituições, a inclusão, o desenvolvimento científico e tecnológico, para eles e suas tochas, tudo isso é besteira, mentira, estratégia do demônio, do comunismo, do globalismo e do Foro de São Paulo.
Em Uruguaiana, há pouco tempo um vereador bolsonarista e que hoje está deputado estadual, invadiu a biblioteca municipal para retirar um livro do “Queermuseu” que ele julgava “do demônio”. O vereador era defensor do nefasto programa Escola sem Partido, já era a amostra grátis de uma política que tomaria conta de Brasília e que tem um projeto bem claro: a ignorância e o medo como forma de manutenção do poder.
As escolas e as universidades, os professores e os cientistas são acusados de “bruxaria” ao emitir críticas em relação as políticas públicas do governo federal ou indicar a necessidade de protocolos sanitários e a valorização da vacinação.
O conhecimento científico e o saber lutam para ter voz ao lado das opiniões pessoais, religiosas e das mais absurdas teorias conspiratórias. Muitos cientistas acabam tentando demarcar território com fatos científicos, defrontando-se com a lógica da pós-verdade, onde boatos e opiniões pessoais se sobrepõe à lógica científica.
O desmonte das universidades federais e o ataque contra minorias não é uma ideia, mas um projeto em execução. Em 2012 o orçamento das IFES (Instituições Federais de Ensino Superior) ficou na casa dos 12 bilhões de reais.
Em 2022, as 69 universidades federais precisarão trabalhar com um dos mais baixos orçamentos das últimas décadas, cerca de 5,1 bilhões. Para se ter uma ideia, o valor destinado apenas para o fundo eleitoral foi de 4,9 bilhões.
Vê-se que investir em educação não é uma prioridade governamental. Para tentar chegar ao final do ano com as aulas em andamento, restará para as universidades demitir funcionários terceirizados, reduzir horários de funcionamento, contratar pessoas de forma voluntária, reduzir contratos de serviços, diminuir atendimentos comunitários em áreas como a saúde, cortar bolsas e auxílios para estudantes carentes, reduzir número de refeições em restaurantes universitários, reduzir programas de iniciação científica.
No tribunal da inquisição bolsonarista, a ciência e a universidade pública já estão condenadas desde o início do governo, independente do que aconteça, façam o que fizerem, vacinas, remédios, desenvolvimento tecnológico, inclusão social, nada disso será suficiente. Sobre as universidades federais, a política bolsonarista já decidiu: Bruxa.
No Brasil, o Governo Bolsonaro se comporta como um “Santo Ofício”. No lugar de um livro em latim, optou por ter pequenos “martelos das bruxas”, livros escritos no mais simplório português, que dão conta de teorias conspiratórias, leituras peculiares do passado, onde se dirá não houve escravidão ou holocausto, obras como as anedotas alucinógenas e de baixo calão do Olavo de Carvalho ou as memórias obscuras do torturador Ustra. Não importam os estudos científicos, vale mais a corrente do grupo da rede social que diz que vacina faz mal. Pouco importa o Aristóteles e todos que vieram depois, vale mais um desconhecido no You Tube afirmando que a terra é plana.
Bolsonaro sabe que o conhecimento histórico, político, filosófico e de tantas outras áreas do saber é um poder que apaga as chamas da fogueira da ignorância. O projeto governamental é ter sempre uma Maria Simões na praça, amarrada nas mídias, uma farinha na perna, uma declaração absurda, uma motociata, uma ida no hospital para falar da suposta facada, com isso no menu, haverá sempre pessoas com tochas nas redes sociais.
Por hora, com os escassos recursos de custeios e investimentos que estão previstos para 2022, resta que as universidades já estão na fogueira, queimando lentamente. E cada negacionista antivacina e cada terraplanista que surge é como uma bosta seca jogada na cara da ciência. No Brasil atual, a ciência já foi condenada há tempos e, ao contrário da Maria Simões, não há lugar para onde ela ser degradada. E sobre este texto, resta saber se você vai aceitar o fato de que as universidades estão sob ataque ou apenas vai acender a sua tocha.