Dias atrás visitei o sítio arqueológico de Troia (na atual Turquia), a “soberba cidade, (…) destinada à ruína quando abrigasse o cavalo de pau, esconderijo dos melhores soldados”, conforme narrado na Odisseia. Fazia uma excursão cultural focada em lugares significativos da antiga Civilização Grega e o local foi incluído no roteiro.
Se a famosa guerra entre gregos e troianos for mais que uma lenda com primorosa versão literária (os poemas homéricos), Tróia não era uma cidade grega quando enfrentou a terrível liga dos aqueus liderada por Agamenon. O episódio ocorreu no século XII a.C. e, naquele tempo, a cidade era um reino oriental muito próximo ao Império Hitita e não uma sociedade helênica como Homero a apresenta. Uma cidade asiática originária do final do Terceiro Milênio (2.920 a.C.), com diversas formas de ocupação desde então.
Segundo a arqueologia, o local abrigou distintos assentamentos, com vestígios materiais específicos cada um: a Tróia I, originária, seguida por outras nove cidadelas, sendo a Tróia VII aquela que foi governada por Príamo e destruída pelos gregos. Séculos depois, no período arcaico, os gregos a reergueram, ampliando-a no período helenístico e transformando-a em centro religioso (com templo dedicado à deusa Atena no interior das muralhas). Os romanos também dominaram o local e equiparam a cidade ao seu modo, deixando vestígios identificáveis até hoje.
No ano 500 d.C. ocorreu um terremoto e a cidade (então integrada ao Império Romano do Oriente) foi abandonada. Nos séculos XII e XIII os bizantinos a reocuparam, mas com o domínio otomano foi novamente esquecida. A cidadela só foi recuperada no século XIX, por europeus apreciadores de Homero, o inglês Frank Calvert (que atuava na região como cônsul) e o alemão Heinrich Schliemann (que se associou a Calvert nas escavações, a partir de 1868).
Como se vê, uma história longa e complicada. Caminhei pelas ruínas sem entender muita coisa, mas nem por isso menos fascinado. Difícil distinguir os diferentes assentamentos, mesmo lendo as placas explicativas colocadas ao longo do sítio, e só consegui montar o quebra-cabeça (a sequência das diversas cidadelas) quando li um livro de divulgação que adquiri na lojinha do sítio: Troya, ciudad de mitologia y arqueologia, de Rüstem Asla (Istambul, 2018, 138 pag.).
Enquanto perambulava pelo sítio, estava mais interessado no imaginário do lugar do que em qualquer outra coisa – afinal estava no território privilegiado de qualquer leitor médio da Civilização Ocidental, no cenário da Ilíada e dos seus guerreiros, os grandes heróis da Antiguidade. Num determinado momento, porém, parei diante de uma rampa (vestígio da Tróia II, informava uma placa) e ouvi o guia da excursão (o helenista Francisco Marshall) explicar que fora naquele espaço que Schliemann encontrara o “Tesouro de Príamo”. O famoso e polêmico tesouro descoberto em 1873 (que certamente nunca foi de Príamo), contrabandeado para Atenas e encaminhado ao Museu de Berlim.
Naquele momento, ouvindo as informações do professor (sobre as diferentes estratificações do sítio arqueológico e os tesouros encontrados), tive a impressão de que o ruído das armas de Aquiles e Heitor cessaram… Foi como se eu me desprendesse da memória mítica do lugar e caísse na realidade. Não perdi de vista o imaginário, claro – nem o do leitor médio da nossa civilização, nem o pessoal (o do guri que lia publicações infanto-juvenis sobre a Guerra de Troia, do estudante que buscava traduções inteligíveis de Homero e do professor que falava do assunto em sala de aula). Apenas acrescentei outras memórias e continuei perambulando pelo sítio. Passei a mão em algumas pedras, vestígios de Tróia, Grécia e Roma, e senti que um universo distante (mítico, embalado em boa literatura e cinema) se tornava próximo: o fascinante e terrível mundo dos deuses do Olimpo, dos bravos guerreiros que não se mixam – Aquiles, Heitor e Ulisses – e que, por vezes, são amparados por divindades. Em silêncio, prestei minha homenagem a essa gente.
VITOR BIASOLI
Foto: Dartanhan Baldez Figueiredo